O lugar, a memória e suas representações

Para Ana Fani Carlos, as referências do lugar não são específicas de sua forma ou função, mas dos sentidos que ficam pelo uso. Crédito: Marcos Colón/Amazônia Latitude

[RESUMO] Autor aborda o lugar como uma construção social alicerçada nas relações espaciais diretas do cotidiano, como um elemento em que as experiências e as vivências são tecidas, construídas e apreendidas. Mas essas experiências cotidianas só são rememoradas e (re)buscadas quando se recorre à memória, o lugar onde é guardado o encontro entre o vivido e o visto. O objetivo é abordar brevemente o papel do lugar na memória como elemento de representação simbólica individual e coletiva.

Tanto a nossa vida coletiva quanto a mental são feitas de representações individuais e sociais, e toda propriedade se traduz por manifestações que não se reproduziriam se tal propriedade não existisse, pois é através dessas manifestações que ela se define. Com base nessa afirmação de Émile Durkheim no primeiro capítulo de Sociologia e Filosofia, publicado pela Forense Universitária em 1970, podemos relacionar o lugar e a memória como elementos que se enquadram nessas representações sociais e individuais que traduzem a experiência do indivíduo enquanto ser no/do mundo.

O lugar reside na memória e a memória se volta sempre para um lugar de onde se podem abstrair sentimentos, lembranças, imagens, fatos, cenas que somente a memória pode guardar e trazê-los como em relance.

Em consonância com o pensamento de Durkheim, queremos discutir a questão do Lugar e sua representação na Memória como reflexo das representações simbólicas e afetivas. Para embasarmos as nossas considerações, tomamos como referência os pensamentos de Durkheim na abordagem sobre a memória e uma fundamentação teórica sobre o Lugar com “A natureza do espaço. Técnica e Tempo. Razão e emoção”, de Milton Santos, e “O lugar no/do mundo”, de Ana Fani Alessandri Carlos.

No primeiro momento, discutiremos a noção de lugar, sua conceituação, sua apreensão e sua importância na rememoração de cenas e fatos e na construção do significado que esse lugar apresenta como representação social e individual. Em seguida, enfatizaremos a questão da memória e sua relação na representação entre passado e presente. Por fim, analisaremos o papel do lugar na memória a partir de uma entrevista feita com a senhora Merandolina Caetano Ferreira, na época com 81 anos, em visita à comunidade de Lago Central, em Santarém (PA), que relata suas experiências de ter deixado o lugar onde morou durante 70 anos para viver em Santarém por motivos alheios a sua vontade.

A noção de lugar nas relações sociais

O lugar pode ser compreendido como uma construção social, fundamentado nas relações de espaço, no cotidiano, na interação e na cooperação entre indivíduos. Compreender esse lugar significa situá-lo nas acepções teóricas. Assim, há dois caminhos a serem percorridos para podermos caracterizar esse lugar. Tais caminhos são complementares, embora pareçam traçar rumos distintos, acabam chegando à mesma encruzilhada.

O primeiro caminho é traçado pela Geografia Humanística, para quem o lugar está associado à ideia de região e de localização geográfica. De início, buscava-se estudar a conexão entre os elementos presentes no meio, recorrendo ao empirismo raciocinado, ou seja, intuição a partir da observação. Mais tarde, com posturas mais críticas, passa-se a associar o lugar ao espaço vivido numa forma de explicar a construção do mundo, uma vez que o lugar é entendido aqui como o mundo da vida marcado pela experiência e pela percepção. Esse lugar passa a ser signo de experiência, de envolvimento com o mundo, onde se dá a construção de raízes de segurança; lugar é, neste fio de pensamento, espécie de cenário de desenvolvimento de atividades, em que há manifestação de sentidos, que liga o homem ao mundo como um elo afetivo com o meio em que se vive.

Aqui acabe a ideia de Yi-Fu Tuan, para quem o lugar é marcado por três palavras-chave: a percepção, a experiência e os valores. Para o autor, os lugares guardam e constituem-se como núcleos de valores, por isso podem ser intensamente apreendidos através de uma experiência total, englobando relações internas (insides) e relações externas (outsides). Para o mesmo autor, espaço e lugar não são sinônimos. O espaço pode transformar- se em lugar, na medida em que se atribui a ele valor e significado. O lugar não pode ser compreendido e entendido sem ser experienciado. E é justamente essa experiência, a vivência, que torna o lugar um elemento simbólico na memória e no imaginário das pessoas. O Lugar, portanto, constitui-se como uma espécie de cenário de desenvolvimento de atividades, havendo uma manifestação de sentidos que liga o homem ao mundo, existindo um elo afetivo com o meio em que vive.

O segundo caminho que se trilha na definição do lugar é aquele através do qual percorre a Geografia Crítica, para quem o lugar deixa de ser apenas o espaço vivido e passa a ser considerado uma construção social. Segundo Milton Santos, o lugar abarca uma permanente mudança, decorrente da própria lógica da sociedade e das inovações técnicas que estão sempre transformando o espaço geográfico, como o autor escreveu em A Natureza do espaço:

É o lugar que atribui às técnicas o princípio de realidade histórica, relativizando o seu uso, integrando-as num conjunto de vida, retirando-as de sua abstração empírica e lhes atribuindo efetividade histórica. E, num determinado lugar é a operação simultânea de várias técnicas, por exemplo, técnicas agrícolas, industriais, de transporte, comércio ou marketing, técnicas que são diferentes segundo os produtos e qualitativamente diferentes para um mesmo produto, segundo as respectivas formas de produção. […] São todas essas técnicas, incluindo da vida, que nos dão a estrutura de um lugar.

Para David Harvey, em Justiça, Natureza e a Geografia da Diferença, de 1996, o lugar é uma construção social que deve ser compreendida como uma localização e como uma configuração “de permanências relativas internamente heterogêneas, dialéticas, dinâmicas contidas na dinâmica geral do espaço-tempo de processos socioecológicos”.

Santos endossa a ideia de Harvey quando afirma que “todos os lugares existem em relação com um tempo do mundo, tempo do modo de produção dominante, embora nem todos os lugares sejam atingidos, obrigatoriamente, por ele”. Ainda, para Santos, o lugar pode ser visto como um intermédio entre o Mundo e o Indivíduo, uma vez que a lógica do desenvolvimento dos sistemas sociais se manifesta pela unidade das teorias opostas à individualidade e à globalidade.

O mundo, porém, é apenas um conjunto de possibilidades, cuja efetivação depende das oportunidades oferecidas pelos lugares. Esse dado é, hoje, fundamental, já que o imperativo da competitividade exige que os lugares da ação sejam globais e previamente escolhidos entre aqueles capazes de atribuir a uma dada produção uma produtividade maior. Nesse sentido, o exercício desta ou daquela ação passa a depender da existência, neste ou naquele lugar, das condições locais que garantam a eficácia dos processos, de acordo com Santos.

Já Ana Fani Carlos diz que “são os lugares que o homem habita […] que dizem respeito a seu cotidiano e a seu modo de vida onde se locomove, trabalha, passeia, flana, isto é, pelas formas através das quais o homem se apropria e que vão ganhando o significado dado pelo uso”.

O lugar expressa, desde o começo da história social do planeta, a cooperação e o conflito, a permanência e a mudança, a criação e a recriação das dinâmicas impostas pelas forças internas e externas do mundo. Na obra de Milton Santos, o lugar define condições de vida e os processos de sua evolução. É o palco dos acontecimentos. Ou, como diz o autor, o depositário final, obrigatório do evento. O lugar apenas pode ser entendido, para Ana Fani Carlos, em suas referências, produzidas por um conjunto de sentidos imprimidos pelo uso.

Para Ana Fani Carlos, as referências do lugar não são específicas de sua forma ou função, mas dos sentidos que ficam pelo uso. Crédito: Divulgação/Amazônia Latitude

A memória como representação social

Enquanto o lugar é a instância das vivências e experiências humanas, ou onde é produzida a existência social dos seres humanos — como diz Ana Fani Carlos —, a memória se encarrega de guardá-las e trazê-las à tona sempre que necessário.

A memória, seus atributos e seu papel na vida individual e coletiva têm suscitado inúmeros estudos, ainda que em recortes específicos, de diferentes áreas do saber. Entre as tantas interrogações sobre o papel da memória, está aquela que coloca em cena o papel da memória como representação na vida social. Durkheim afirma que se a vida for considerada, como muitos estudiosos afirmam ser, uma combinação de partículas minerais, há que se destacar um fato que escapa a essa consideração: o fato de se considerar a memória como sendo um fato orgânico. Tal ideia permite afirmar que certas situações vividas deixariam de existir sem deixar qualquer vestígio.

Mas, se isolada, a impressão orgânica que precedeu essa representação não desapareceria por completo: restaria uma certa modificação do elemento nervoso que se encarregaria de manter essa representação e se disporia a vibrar de novo como antes, desde que houvesse um motivo para que isso acontecesse e fizesse reaparecer na consciência o estado psíquico que já se reproduziu, nas mesmas condições, quando da primeira experiência. Durkheim atribui, nesse caso, o papel da memória como fator principal para que as experiências vividas no passado pelas pessoas possam vir à tona.

A ideia que se tem de memória é primariamente aquela propriedade particular de conservar informações, o que remete a um conjunto de funções psíquicas dos campos da psicologia, da psicofisiologia e da neurofisiologia. Daí o fato de Durkheim levantar o questionamento sobre o fato de a memória ter função propriamente orgânica: “[…] a memória não é um fato puramente físico, que as representações como tais são suscetíveis de se conservar”, lembra Durkheim.

Podemos conceber a memória na interseção sujeito/cultura, o que nos leva a perceber que seu papel não é apenas conservar informações, mas em maior suporte, o de reconstrução de experiências passadas, uma vez que é esta uma forma encontrada pela sociedade para pensar a si própria e sua relação com o passado.

Mas memória não é memorização, para Ângela Barreto, uma vez que é menos uma função nata e mais uma função social criada pelo homem. Para a pesquisadora, não podemos ver a memória como um hábito de repetir imagens, mas como um fenômeno inconsciente que se torna útil à necessidade presente. Memória articula-se com a representação simbólica.

Durkheim diz que as coisas representadas no passado só podem vir à tona, em nossa lembrança, graças à memória. Para ele, o processo de rememoração se dá através da exercitação do cérebro, que reativa as marcas deixadas no próprio órgão. “Aquilo que nos dirige são as poucas ideias que ocupam presentemente nossa atenção; são, isto sim, os resíduos deixados por nossa vida anterior; são os hábitos contraídos, os preconceitos, as tendências que nos movem sem que disso nos apercebamos, são, em uma palavra, tudo aquilo que constitui nossa característica moral”, disse o francês.

Para outros estudiosos do assunto, como Milton Santos, a memória é o resultado do entrelaçamento das experiências de um tempo vivido. Ela é uma espécie de “guardiã” da integridade de cada indivíduo, que assegura a sobrevivência de acontecimentos que marcaram uma época e garante a partilha desses acontecimentos entre os indivíduos de um grupo afim, um tipo de “cimento indispensável à sobrevivência das sociedades” e à “elaboração do futuro”.

A memória enquanto acervo das lembranças, não é um produto qualquer resultante do acúmulo de vivências, mas um processo que se faz no presente para atender às necessidades desse presente. É por isso que podemos afirmar que o passado não é conservado pela simples evocação das lembranças, mas reconstruído numa dimensão presente. Daí dizer que a memória trabalha sobre o tempo, não um tempo qualquer, mas aquele experienciado pela cultura.

Nela, revivenciam-se experiências, reconstrói-se o tempo e ressignifica-se o sentido da existência. Na rememoração, recostura-se, tece-se o passado no presente, compondo tramas, entrelaçam-se novas experiências existenciais. Foi o fio desse pensamento que Walter Benjamin percorreu ao destacar o papel da memória na rememoração e como uma espécie de “salvadora” do passado.

Antes da sociedade escrita, destacavam-se os “homens-memória”, encarregados da missão de manter a coesão dos grupos. Eram idosos, chefes de famílias, religiosos. A memória era transmitida pelo aprendizado, mas não era uma memorização de palavra por palavra, um produto de rememoração exata, mas uma evocação inexata.

Ecléa Bosi, ao se reportar às narrativas dos velhos em “O tempo vivo na memória. Ensaios de psicologia social”, lembra que “a memória opera com grande liberdade, escolhendo acontecimentos no espaço e no tempo não arbitrariamente, mas porque se relacionam por meio de índices comuns. São configurações mais intensas quando sobre elas incide o brilho de um significado coletivo”.

O aparecimento da escrita produziu grandes transformações na memória coletiva. Com o romance, livros interferiram na conversa diária, aquela que transmitia experiências e conselhos em forma de poesia oral. Com as grandes revoluções tecnológicas, a memória parece ter sido substituída pelas páginas escritas ou pelas variadas páginas online atualizadas a cada segundo.

Interessa aqui destacar a memória enquanto representação simbólica, enquanto processo dinâmico e interativo que se desenrola no cotidiano social, que leva os sujeitos a expressarem experiências e o retorno ao passado, o que, aliás, é ao que remete a memória.

Jovens da comunidade do Lago Maicá, em Santarém-PA. Comunidade é ameaçada por empreendimento de porto. Crédito: João Romano/Amazônia Latitude

Entre o passado e o presente

Não se pode falar sobre o lugar presente na memória sem destacar o papel do cotidiano na construção da vida das pessoas, sejam elas moradoras dos centros urbanos ou dos mais recônditos lugares no meio das florestas, como é o caso da entrevistada cujo depoimento dá base para este trabalho.

Cleide Silva Papes, ao discorrer sobre o cotidiano, provoca uma reflexão sobre o olhar que se deve ter ao se analisar as práticas cotidianas e as condições do homem no tempo e no espaço, destacando que todos, nos centros urbanos quanto ou afastados deles, ainda que em posições diferentes, travam uma luta incansável pela sobrevivência. No livro “A vivência e a invenção na palavra literária”, diz que homens e mulheres articulam estratégias cotidianas, “transformando o espaço e o tempo, ou as formas de viver, para preencher o vazio das ações e das deformações da vida social”.

A autora lembra que, embora o cotidiano se refira à luta diária para superar a dureza da vida, levando o homem a suportar e a vencer obstáculos diversos, ele está ligado ao nosso interior, pois cada um se vê obrigado a resgatar a força necessária para executar as tarefas diárias de acordo com a sua capacidade de inventar e reinventar formas de superação e de marcar a sua existência no lugar onde vive.

“O cotidiano é a história vivida que nos entrelaça nestes espaços, que nos enrodilha nos lugares comuns e sociais, que nos oprime e impele à ação para abrirmos novos caminhos, criando novos espaços de resistência e fruição do tempo”, afirma na obra. Define que o cotidiano se forma a partir de lutas e bagagens que refletem o passado, ao passo que este conjunto projeta o futuro.

Na vida cotidiana, o passado é como um mundo à parte em convívio com o presente, em um tempo contínuo, sobreposto de presente, passado e futuro. O passado que recordamos é ao mesmo tempo pessoal e social, mesmo nas lembranças mais íntimas há um componente coletivo da memória, pois em qualquer situação vivenciada por nós há um todo há muito construído.

Dona Merandolina Ferreira, cujas lembranças serão apresentadas aqui, deixou transparecer momentos de sua vida marcada no tempo. Ela buscou no tempo, através da sua memória, as experiências de vida num passado ora distante ora não tanto distante. Foi justamente a maneira como ela teceu esse passado com o presente, recordando marcas do lugar em que viveu, Lago Central, um pequeno povoado entre os rios Amazonas e Tapajós, situado cerca de 30 quilômetros de Santarém, que nos levou a abordar o Lugar e sua representação na memória.

Enquanto ela relatava suas experiências de vida, algumas situações que lhe vinham à memória traduziam um misto de alegria, momentos de felicidade; outros, dor, angústia, tristeza. Em certos momentos, lágrimas escorriam pelo rosto, demonstrando o quanto o lugar, ainda vivo na memória, as imagens que lhe vinham à lembrança, marcaram sua vida. Alguns dos fatos mereceram ser destacados por ela, pois lhe representavam algo bom; outros foram citados por força das perguntas, já que representaram momentos difíceis da vida da entrevistada.

Essas árvores serviram como nossa casa. A gente passava o dia aqui. A gente nem via o tempo passar. Elas eram como parte da família”

O significado das imagens do passado paralisadas no tempo leva o indivíduo a refazer várias vezes o trajeto entre o passado e presente. Esse passado só existe porque o presente nos leva a recordá-lo. Bosi lembra que, ao ouvir e observar com atenção o narrador que revive os momentos cruciais de sua vida consegue distinguir uma fala que produz imagens e um sentimento de tempo dos ocorridos

Quem está atento à escuta da voz e do pathos do narrador oral, que revive os momentos cruciais de sua vida, consegue distinguir uma fala que, ao mesmo tempo, produz imagens e conota sentimento do tempo enquanto duração. “… O que se lembra são momentos vividos, respostas pessoais, em suma, a melodia do passado interpretada pelo presente… A duração do relato coincide com o Tempo relembrado que assim é intuído por dentro”, afirma Bosi.

A relação entre o que lembramos e a maneira como pensamos no presente fazem do passado algo que vive entre o que aconteceu e a forma como vemos o acontecimento. “Mas tudo já passou, a gente cresceu. É coisa do passado. Só resta lembrar daquele tempo bom. Hoje tá todo mundo velho; alguns até já morreram, e os que ainda estão vivos acho que nem lembram mais do que a gente fazia aqui. É passado, e passado só serve para lembrar”, conta Merandolina.

Relembrar é reescrever ou reler os acontecimentos vividos. Ao mesmo tempo em que o passado representa alegria, pode traduzir tristeza, perda, uma certa distância entre o dito e o vivido. No caso da entrevistada, o lugar representa a realização, no passado, das brincadeiras, da vida da infância, das atividades em grupo, e também experiências não mais vividas no presente pelas pessoas. As árvores simbolizam a infância da entrevistada, quando ela rememora acontecimentos sob as mangueiras.

“Debaixo destas mangueiras a gente brincava, ouvia histórias. Aqui a gente descobriu muitas coisas que já não fazem parte do cotidiano dessa juventude que está aí. […] Essas árvores serviram de nossa casa. A gente passava o dia aqui. A gente nem via o tempo passar. Elas eram como parte da família (risos). Muitas delas têm marcas feitas por nós. A gente tinha os galhos preferidos, onde a gente gostava de ficar”, lembra.

Milton Santos diz que o lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade.

Passado e presente representam a preciosidade com que dona Merandolina Ferreira guarda o lugar em que nasceu e viveu durante 70 anos. Ao lembrar o passado, ela volta aos acontecimentos que lhe marcaram: as imagens lhes parecem vivas na lembrança. Essa mesma imagem ora parece se encaixar na paisagem que a rodeia, ora parece desfigurada, apresenta uma cor que destoa daquela presenciada pela entrevistada em outros tempos. O lugar serve de encontro entre o passado e o presente. Esse encontro se faz entre os acontecimentos da infância, da juventude: as brincadeiras, as atividades que se realizavam debaixo das mangueiras, as experiências em grupo.

Bosi fala que esse encontro, por mais nítido que pareça, não é a mesma imagem da época, porque nossa percepção se alterou, assim como nossas ideias, nosso juízo de realidade e de valor. A diferença entre passado e presença se coloca em forma de pontos de vista.

O presente aparece como o diferente; é como aquela fotografia em preto e branco, desbotada pelo tempo, que representa algum momento da vida de quem a tirou, mas o tempo se encarregou de desbotá-la. Assim percebe-se o presente-passado da entrevistada: como aquilo que se mostra desfigurado, um quadro marcado pelo tempo, lembranças misturadas com lapsos da memória.

“Aqui a caça vinha comer na beira do terreiro. A gente pegava peixe com as mãos, à noite. Ouvia gritos de onças, dos encantados. Isso eu vi e eles também presenciaram. Hoje se a gente conta para esses jovens, eles acham que é mentira, coisa da imaginação, conversa de velhos. Mas não é não. Eu vivi esse tempo”, afirma dona Merandolina.

O passado, além de marcar no presente a perda, também reflete as mudanças necessárias que se fazem no lugar. Acostumada com uma vida pacata, marcada quase que por situações repetitivas, habituais, a entrevistada vê o lugar onde viveu ainda como um refúgio, diferente daquele do que encontrou na cidade, onde, para ela, não há sossego, não há liberdade. “Lá (na cidade) a gente não pode viver em liberdade. A vida da gente é limitada por muros, grades. Carros. Aqui não tem nada disso”.

Essa é uma questão própria de quem deixa seu lugar de origem e vai para outro, na leitura de Milton Santos, onde terá que conciliar seus costumes de vida com um novo ritmo. Adaptar-se a um novo estilo de vida, marcado pela pressa, pelo barulho dos carros e demarcado por muros, diferente daquele vivido e aprendido no passado.

Vir para a cidade grande é, certamente, deixar atrás uma cultura herdada para se encontrar com uma outra. Quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação.

Na vida de Dona Merandolina, o passado entre as mudanças do mundo rural para o mundo urbano reflete uma espécie de queixa. As atividades de outrora e a vida tranquila viram memórias e vivem na memória. Soam, quando contadas, como desabafo. O lugar é vivido.

A professora Ana Fani Carlos lembra que “o lugar é produto das relações humanas, entre homem e natureza, tecido por relações sociais que se realizam no plano do vivido o que garante a construção de uma rede de significados e sentidos que são tecidos pela história e cultura civilizadora produzindo a identidade, posto que é aí que o homem se reconhece porque é o lugar da vida. O sujeito pertence ao lugar como este a ele, pois a produção do lugar liga-se indissociavelmente a produção da vida”.

O tempo em que a senhora vivia no Lago Central era bom, o passado é uma referência ao que se realizava e hoje já não se faz mais: “Trabalhava na roça, fazia roçado, farinha, capinava o mato. Eu fazia o que eu gostava. Era algo que me fazia bem, me dava prazer trabalhar. Trabalhar é bom, dá dignidade pra gente”.

Aqui tem tudo de mim. Por isso tenho que voltar aqui para ver. Aqui é meu. Tenho liberdade. Eu posso andar, posso fazer o que tenho vontade”

A ida da zona rural para a cidade representou uma mudança significativa em sua vida, marcada pelas diferenças: a zona rural, comunidade do interior, tranquila, que lhe proporcionou a oportunidade para criar os filhos, para viver uma vida em harmonia de contato com a natureza, para aprender com os outros, para partilhar experiências, viver em liberdade; o espaço urbano, um lugar tomado como empréstimo para morar, visto como espaço de alienação, como uma prisão, onde a liberdade é algo raro, onde parece difícil compartilhar as experiências de vida.

Daí as associações, as diferenças e semelhanças entre onde se viveu e onde se vive. O ontem e o hoje, muitas vezes, são pontos distantes, adversos, de experiências ímpares.

“Aqui tem tudo de mim. Por isso tenho que voltar aqui para ver. Aqui é meu. Tenho liberdade. Eu posso andar, posso fazer o que tenho vontade, sem essa de se preocupar com as pessoas que estão olhando a gente. Lá [na cidade] a gente não pode viver em liberdade. A vida da gente é limitada por muros, grades, carros. Aqui não tem nada disso. Mas estou morando lá, tem algo que aqui não tem, mas não é nada meu”, comenta Merandolina.

O lugar em que se vive e o lugar vivido, ainda vivo na memória, restauram as suas particularidades e marcam as suas esteiras na memória da depoente: o de pertencimento e não pertencimento. A professora Carlos lembra que “a natureza social da identidade, do sentimento de pertencer ao lugar ou das formas de apropriação do espaço que ela suscita, liga-se aos lugares habitados, marcados pela presença, criados pela história fragmentária feitas de resíduos e detritos, pela acumulação dos tempos, marcados, remarcados, nomeados, natureza transformada pela prática social”.

Já Milton Santos afirma que a instabilidade e a surpresa do espaço tornam mais eficaz a operação da descoberta, entendida como algo positivo.

Só a memória pode descobrir

O lugar na memória representa não apenas uma relação com o presente, mas também confronto entre passado e presente. A distância entre o vivido e o dito não exclui as imagens que se vão construindo ao lembrar um fato que se presenciou ou que se viveu. As imagens continuam ali, da mesma forma como os fatos aconteceram, mesmo que marcadas por lapsos da memória, ou por situações do presente que levam o indivíduo a tecer seu ponto de vista, a fazer seus comentários, ou até mesmo a negá-los.

As imagens e as ideias agem entre si e essas ações devem necessariamente variar com a natureza das representações; tais mudanças devem ocorrer na medida em que as representações, que assim são postas em confronto, se assemelham, se diferenciam ou se contrastam, segundo Durkheim.

As imagens que cada indivíduo tem do lugar onde viveu ou por ele passou revelam algo que somente a memória pode descobrir. Passado e história são, para cada um de nós, componentes do imaginário que nos conduz até o presente. As imagens que temos do lugar no presente dão ao passado um sentido concreto, revive-se o que já se viveu, o que já se passou, mas que continua guardado na memória, esperando a hora e o momento certos para serem lembrados e traduzidos em palavras, em imagens, em sentimentos, seja pelo sorriso, seja pelas lágrimas, seja pelo olhar que foge no horizonte. Daí concluirmos que a memória é o resultado dos entrelaçamentos das experiências de um tempo vivido em um determinado lugar.

Joaquim Onésimo Ferreira Barbosa é Doutor e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação Sociedade – PPGSCA e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
Imagem em destaque: Acervo/Amazônia Latitude.
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