Relações sociais são parte inerente, e desafiadora, do trabalho de campo, diz bióloga

Após mais de dois anos afastada da Amazônia pela pandemia, a bióloga e pesquisadora da Universidade de Oxford, Érika Berenguer, descreve como foi retomar o trabalho de campo e reencontrar personagens humanos e não-humanos.

O sol entrava pelas persianas da janela quando conversei com Érika Berenguer. Fazia mais calor em Oxford, onde ela estava, do que em São Paulo, de onde eu falava – mas muito menos do que na Amazônia, para onde a bióloga havia retornado após dois anos e três meses. Ela tinha saído de Santarém não fazia nem uma semana, depois de passar pouco mais de um mês retomando o trabalho de campo interrompido pela pandemia.

“Paramos pensando que em um mês íamos voltar, no máximo dois, e voltamos depois de mais de dois anos. Foi o período que achamos que estava seguro. Ao bem ou mal, trabalhando na Amazônia, estamos colocando a vida das pessoas em risco, e o currículo de ninguém vale mais do que a vida dos outros”, contou a pesquisadora da Rede Amazônia Sustentável.

A rede tem uma série de áreas de pesquisa permanentes, ou “plots” permanentes, de 250 metros por 10 metros, o que equivale a um quarto de campo de futebol. Todas elas ficam em Santarém, Belterra e Bom Juiz dos Campos. Érika e sua equipe monitoram essas áreas desde 2010, conduzindo uma série de estudos sobre estoque de carbono, biodiversidade, interações biológicas e recuperação da fauna e flora após distúrbios antrópicos, como queimadas.

A maioria dessas atividades exigem monitoramento intermitente. Para isso, existem dois tipos de pesquisa: uma amostragem única, ou o monitoramento ao longo do tempo.

A pesquisadora exemplifica: “Quando alguém pega Covid-19, pode ser que um teste duas semanas após o resultado negativo acuse uma capacidade pulmonar reduzida, mas um teste cinco meses depois revele um resultado normal. Ou, quem sabe, ela tenha piorado. Ou fazemos um snapshot, uma fotografia da situação, ou fazemos um monitoramento para ver como as coisas respondem ao longo do tempo. São perguntas diferentes.”

Só que a pesquisa a longo prazo vem com questões muito difíceis. É desafiador conseguir financiamento, segundo Érika, porque é custoso manter as áreas de pesquisa. No Brasil, o Peld (Programa Ecológico de Longa Duração), ligado ao CNPq, permite uma pesquisa ecológica de longa duração, e é a esse programa que o seu projeto é associado, coordenado pela pesquisadora da Embrapa Joice Ferreira.

“A maioria dos projetos têm só quatro anos e acabou. O Peld é único justamente por isso. Áreas de pesquisa não são pagas, no nosso caso elas estão dentro de Unidades de Conservação (UCs) ou de áreas privadas, mas para fazer essas pesquisas de monitoramento, é preciso ficar voltando nessas áreas. Assim, precisamos de carros, de diesel, de comida, de funcionários. Tudo isso aumenta o custo”, explica.

No entanto, nos últimos dois anos, a pandemia apresentou um desafio extra. O monitoramento de 12 anos foi interrompido, sendo que a regra era coletar dados a cada duas semanas. Isso resultou em um buraco de informação que, ela enfatiza, não pode ser recuperado.

Érika deixa claro que acharam melhor optar pelo “princípio de precaução”. Na realidade local da Amazônia, acontecem interações entre os funcionários, pesquisadores e membros de comunidades afastadas com recursos limitados. “É um local social. O cafezinho é irrecusável. O copo d’água é compartilhado. Essas dinâmicas sociais eram impossíveis de fazer de forma segura, e seria impossível impedir que elas acontecessem”, afirmou. Assim, sua equipe esperou o tempo necessário para conseguir manter essas relações importantes de forma segura, por mais que isso prejudicasse a pesquisa, os resultados, seus currículos. “Nada é mais importante do que a vida”, reiterou. Nesta entrevista, Érika descreve como foi voltar ao trabalho de campo – e à sua casa.

Foto em selfie. Érika Berenguer posa com sua equipe de trabalho de campo

Para Érika, as relações sociais são parte inerente do trabalho como pesquisadora de campo. (Foto: Arquivo Pessoal/Érika Berenguer)

Você ficou afastada do campo por mais de dois anos. O que encontrou depois de todo esse tempo?
Aí entra um problema grande que é: a mata cresce. Os últimos anos foram muito chuvosos, então a mata cresceu ferozmente. A mata fechou nas nossas áreas de pesquisa. Então tivemos que voltar nessas áreas e achar as trilhas que criamos. Mas muitas árvores caíram, foi muito difícil de encontrar o caminho. O outro problema que encontramos foi o desmatamento. Nossas áreas nunca estão na borda da floresta com pasto, ou área de cultivo. Ficam distantes para evitar efeitos de borda, porque quanto mais perto da área de cultivo mais diferente é a floresta (mais quente, afetada por mais vento, mais seca). Mas em vários casos, uma parte dessa área de distância foi desmatada. Vira um caos achar a trilha em um momento que a floresta deixou de existir onde estava. Usamos uma série de pontos na floresta como referência, um tucumã torto, por exemplo. Se a referência desaparece, fica difícil. O GPS ajuda, mas não necessariamente mostra a melhor trilha, pode ser um lugar perigoso. Também aconteceu de algumas de nossas áreas de pesquisa terem sido derrubadas. É sempre um choque. Quanto mais tempo passamos longe, mais tempo tem para acontecer alguma coisa.

E como você se sentiu pessoalmente depois de voltar?
Acho muito difícil dar uma resposta sobre isso, porque parece que as pessoas querem ouvir coisas específicas. Por ser subjetivo, sinto que as pessoas querem que eu dê uma resposta do tipo: “Foi maravilhoso, mas fiquei triste de ver a área desmatada”. Sinto que é artificial. Não tenho problema de escrever como me sinto no Twitter, porque me expresso como quero, mas quando alguém pergunta acho difícil responder.

Já que é difícil falar sobre a parte subjetiva, me conte sobre o dia a dia nessas cinco semanas de trabalho de campo.
Basicamente, nosso trabalho consistiu em descobrir se nossas áreas ainda existiam. São por volta de 30 áreas, e não adianta pedir autorização para trabalhar em uma área que não existe mais. Nesse momento, está tendo muito desmatamento, e desmatamento grande, então às vezes dá até para saber se a área acabou passando de carro. Também fomos conversar com todos os proprietários, porque fazia dois anos que não aparecíamos. Nem sabíamos se os proprietários estavam vivos. Essa foi uma parte muito dolorosa, o medo de ir na casa de alguém e não saber se íamos encontrar a pessoa lá, pessoas que conhecemos desde 2010. Isso aconteceu com todos os personagens, tanto humanos como não-humanos. Tive medo do que ia encontrar. Com 660 mil mortos… Só de pensar fico com um nó no estômago.

E vocês reencontraram seus conhecidos?
Encontrei todas as pessoas, foi surpreendente. Mas se antes conversávamos sobre o último jogo do Flamengo ou a novela, dessa vez esses papos sumiram. Eram só histórias pesadas, sobre morte ou dificuldade financeira extrema. Isso dá uma sensação de claustrofobia da desgraça, por todos os lados. Parecia que todas essas áreas únicas estavam cercadas por uma nuvem pesada de chuva, sem escapatória. Não é como se sempre fosse um campo de flores em volta dessas áreas de pesquisa, mas notícias boas e ruins se misturavam. Nascimentos, mortes, doenças, casamentos… Já teve de tudo. Dessa vez, foi só desgraça, e tudo concentrado nessas cinco semanas. Fui bombardeada por notícias ruins por todos os lados. É diferente ler no jornal e ver a dor do outro no olho. Parece que não tem nada a ver com o meu trabalho, ver como a floresta está se recuperando depois do fogo, mas faz parte. É uma parte inerente do trabalho que não sai nos artigos científicos. A floresta é um lugar que tem gente, é habitada. Dependo dos proprietários de terra para trabalhar. Desenvolvemos uma relação de confiança, é muito interessante que as pessoas deixem a gente fazer pesquisa. E a partir daí, muitas relações se desenvolvem. Nunca tinha sentido isso antes. 90% das histórias tinham morte e desemprego. Foi pesado ao ponto de que dava 20h30 e eu estava desesperada de sono, sem cansaço físico. É o peso emocional. E outro peso emocional é essa sensação de voltar ao lugar que pertenço; Depois de dois anos, me sentir completa, feliz e acolhida. Estar no meio da floresta e me sentir em casa, soltar aquele suspiro que tira o peso dos ombros. O reencontro consigo mesmo tem um peso que nunca senti antes. Ainda não me recuperei da viagem, estou processando tudo. Foi um cansaço emocional grande.

E como foi o reencontro com as áreas de pesquisa em si?
Tentamos intercalar essa reconstrução dos laços sociais com a reabertura das trilhas e áreas de pesquisa. Aí são outros reencontros com personagens não-humanos: a árvore linda e frondosa, aquela toda retorcida que nunca morre, a que cresceu demais, a que tem um ninho de formiga que odiamos. Tem toda uma tristeza associada às árvores que morreram nesse tempo. Uma área super bonita foi extremamente danificada pelo vento, e quase entrei em negação. Ficamos com raiva pela destruição, até por morte natural. Da mesma forma que todas as relações sociais foram condensadas em cinco semanas, as relações com o ambiente também. Todas as mudanças ao longo de dois anos, de repente, estavam lá na nossa cara.

No que consistiu seu trabalho durante os dois anos sem ir a campo?
Nós tínhamos muitos dados não publicados, então foi um remanejamento de recursos humanos. Nossos esforços consumidos pelo trabalho de campo foram redirecionados para os dados coletados para análise e publicação.

E foi possível tirar alguma conclusão da análise desse trabalho de campo mais recente?
Ainda é cedo. Reabrimos todas as nossas áreas de pesquisa, mas não reinstalamos as medidas. Não teve como ver o que mudou de lá para cá. Mas a minha impressão geral é que observei uma grande mudança na paisagem. De dezembro de 2019 a abril de 2022, o que mudou muito foi a quantidade de área desmatada. Como é uma paisagem que trabalho há 12 anos, lembro que a floresta era maior. É difícil de explicar em um cenário urbano, porque a floresta parece toda igual para quem não é da floresta, parece um mar verde. Mas os moradores locais e pesquisadores que passam muito tempo em trabalho de campo conseguem ver. Reparei como tinha muita derrubada nova, muita área desmatada que está agora, neste momento, no chão. Que está sendo desmatada agora. Vi muito trator de esteira fazendo derrubada, o que não era tão comum antes. Não entenda errado, sempre teve desmatamento nesses 12 anos. Mas nesses últimos dois anos, foi muito maior do que eu vi em qualquer outro intervalo de tempo, especialmente o desmatamento em tempo real.

Árvores derrubadas no chão abrem clareira em meio à Floresta Amazônica.

Árvores derrubadas no chão abrem clareira em meio à Floresta Amazônica. (Foto: Arquivo Pessoal/Érika Berenguer)

Esse atraso na pesquisa e coleta de dados pode ser recuperado?
Não. As coisas que vínhamos monitorando a cada duas semanas, a cada mês, esses dados estão perdidos. Mas a escolha foi que nenhuma vida vale menos que uma pesquisa. Isso pode afetar a carreira de várias pessoas na rede de pesquisa, mas não é nem uma escolha. Não tinha outra opção. O que podemos fazer é “refrasear”, ou recolocar, as nossas perguntas científicas. Fazer perguntas levemente diferentes, com base nos dados que temos. Como passamos esses dois anos analisando dados coletados, ainda não estamos sentindo os efeitos dos anos perdidos. Vamos sentir a partir do ano que vem, porque vão vir muitas pesquisas com buracos nos dados. E faz parte. Vamos ter que lidar com isso, refazendo as perguntas ou mudando o tipo de análise estatística. A partir de agora, o plano é retomar a coleta a cada duas semanas, mas isso depende da pandemia. Se a pandemia piorar em termos de mortes e internações, vamos suspender as atividades até segunda ordem.

Como foi lidar com o trabalho pesado e a sobrecarga emocional em um período tão curto de tempo?
As coisas na Amazônia acontecem em uma velocidade muito rápida. Não tem tempo de processar. Teve um dia que trabalhei o dia inteiro e pulei por uma cobra que é super venenosa, e eu nem vi. Na volta da trilha, ia pular por cima dela de novo e um assistente de campo chamou a minha atenção para onde eu estava pisando. Era uma papagaio, que é um tipo de jararaca arborícola. E provavelmente eu teria sido mordida da segunda vez, porque usamos perneira e 80% dos acidentes são na perna ou pé, segundo o Instituto Butantã, só que ela é uma cobra arborícola que fica acima da perneira. Enquanto eu ainda estava processando isso, tive que dirigir 100 quilômetros para ir a um casamento, onde passei a noite toda. No dia seguinte fui trabalhar e vi um corpo, porque alguém levou um choque na rede de eletricidade de alta tensão. É muita coisa, muito forte. Você quase morre, depois vai para um casamento, que é a celebração da vida, aí você sai de lá para ver um corpo. A Amazônia é superlativa, ela é sempre assim. É tudo ao mesmo tempo, com muita intensidade. Não existe nada mais ou menos. Não existe uma chuva, existe enchente. Não existe um solzinho, existe insolação.

O fazer científico é, para a maioria das pessoas, bastante desconhecido e enigmático. Como é ser cientista de campo?
A visão das pessoas de um cientista é o jaleco branco, uma coisa super estéril. Enquanto isso, a minha realidade é estar coberta de lama, com lama debaixo da unha, comendo marmita de colher, café derramado na roupa. Sou a pessoa mais suja do universo quando chega no fim do dia. É o oposto do cientista estéril, com touquinha e protetor de sapato. Não tenho protetor de sapato, tenho silver tape para colar a sola do sapato! (risos) É uma outra abordagem da ciência.

Não pude deixar de notar que você sempre usa uma pulseira e um anel, que está usando agora também. Esses acessórios têm algum significado?
A pulseira é de quando morava em Manaus, é Waimiri Atroari. Ela e o anel de coco, que significa para mim o compromisso com a Amazônia, são as minhas recordações diárias e visuais do que eu acho importante na minha própria identidade, de como eu me reconheço. Tenho tatuadas nas minhas costas as flores da castanheira, só que eu não vejo as minhas costas. Ela não é uma lembrança diária. A pulseira e o anel sim. Elas foram muito importantes para mim na pandemia, foram um jeito de me sentir mais próxima da Amazônia nesse tempo afastada.

Você passou só cinco semanas em trabalho de campo. Por que tão pouco tempo?
Voltei para dar uma palestra em uma conferência na França, da Society for Tropical Ecology europeia, que não ocorreu em 2019, nem 2020, nem 2021. Se não, teria ficado no Brasil até dezembro. Quando cheguei, pensei “nunca mais vou sair daqui”. Espero voltar para a Amazônia o mais rápido possível, e que eu nunca mais fique tanto tempo longe de onde pertenço.

Foto em destaque: Arquivo Pessoal/ Érika Berenguer.

 

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