Desvendando a comunicação cósmica na cultura e poesia daimista da Amazônia

[RESUMO]: Pesquisadora revisita a poesia e os hinos de Luiz Mendes, que compartilha suas experiências com a Ayahuasca na doutrina do Daime. Ele explora as noções de tradução cultural e comunicação cósmica presentes nessas narrativas, destacando a importância da negociação entre culturas e identidades híbridas. O autor analisa uma história em que Luiz busca “férias” em uma viagem espiritual e outra em que ele dialoga com seu Mestre e seus caboclos por meio de um hino ritual. Essas narrativas revelam a riqueza da cultura daimista amazônica, marcada pela tradução cultural, intercâmbio entre mundos e resistência cultural.
No presente ensaio me proponho a revistar/realizar novo diálogo com uma das muitas histórias e um dos muitos hinos de Luiz Mendes onde ele versa sobre suas memórias/experiências no contexto da doutrina do Daime (um dos muitos nomes e usos da Ayahuasca).
São fragmentos de performances cotidianas e rituais, do repertório de literatura/poesia oral daimista das/nas Amazônias, desse sábio ancião poeta conhecido como o orador do Mestre Irineu Serra; repertório que escutei, gravei e transcrevi (ainda que em gotas) durante a pesquisa do mestrado no Programa de Pós Graduação em Letras: Linguagem e Identidade, da Universidade Federal do Acre (pesquisa transformada em livro publicado em coautoria com o ancião Cf. MENDONÇA; NASCIMENTO, 2019)[1].
Me coloco a refletir sobre a seguinte questão: se/de que maneiras as noções de tradução cultural e comunicação cósmica perpassam tais narrativas? (E, por conseguinte, a literatura e cultura daimista amazônica tal como vivida, lembrada, narrada, cantadas, recriada por Luiz Mendes).
Com Bhabha (1998) e Hall (2003; 2006) compreendo que o processo de tradução cultural é parte fundamental da constituição de culturas e identidades híbridas (compósitas[2]) constituídas em tensão, mas não em oposição às culturas e repertórios dominantes.
São repertórios de resistência forjados a partir das diásporas modernas e “pós-modernas” (ou da modernidade tardia) oriundas dos processos de colonização e globalização. Culturas e identidades forjadas nos trânsitos, deslocamentos de pessoas e sentidos; na negociação de símbolos e significados culturais; na (re)invenção de tradições.
Negociação das diferenças que passa pela combinação de tradição e tradução, feita de diversas formas (no mais das vezes tensa, agonística – para usar um termo trazido pelos dois autores); passa pelo deslize (e embate) dos significados – que assim como as culturas aí produzidas, não são nunca fixos, estáveis. “O processo de tradução é uma abertura de um outro lugar cultural e político de enfrentamento no cerne da repressão colonial” (BHABHA, 1998, p.62); e não apenas na situação colonial.
Tradução cultural entendida como negociação não se confunde, portanto, com mera assimilação e ou justaposição, tampouco com a negação de culturas (ou símbolos, significados culturais) porque não compreende a diferença como binária (oposições do tipo “ou/ou”). Ela é negociação justamente por se admitir que em processos de tradução o significado não vem pronto.
Não é possível simplesmente transporta-lo de uma cultura a outra (ou de uma língua a outra); ele é uma (re)construção, (re)invenção (contínua) do tradutor a partir de sobrevivências, de elementos, de fragmentos de pelo menos duas culturas (postas em contato de maneira, na maior parte das vezes, assimétrica) que são retrabalhadas, de acordo com os interesses em jogo, e fazem surgir algo novo; algo que está em deslocamento, que se encontra num entre-lugar: nem isso nem aquilo, nem lá nem cá.
Novas culturas, significados, identidades, pessoas que “não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias casas (e não a uma “casa” particular). […]Elas estão irrevogavelmente traduzidas” (HALL, 2006, p.88).
Me desloco, por ora, para a percepção de comunicação cósmica afirmada por Gersen Baniwa Luciano e que também, considero, será de grande valia nesse diálogo proposto.
No sentido de fazer uma breve contextualização é importante observar, nas palavras do pesquisador Robin Wright, que entre os povos Baniwa, localizados no noroeste da região que se convencionou chamar Amazônia, há uma centralidade do pariká (um rapé considerado sagrado), bem como do caapi (outro nome/uso da Ayahuasca) “tanto para a visão Baniwa de criação do cosmos, quanto para as curas realizadas pelos xamãs e, o mais importante, para as visões e mensagens de profetas que têm surgido entre os Baniwa desde o século passado” (WRIGHT, 2005, p.83).
O pesquisador afirma ainda que devido ao poder de “revelar, de abrir a comunicação com os outros mundos, inclusive com o mundo dos mortos que avisam e aconselham os vivos sobre os eventos que estão para acontecer, as duas substâncias têm exercido um papel fundamental para o convívio e a sobrevivência do povo Baniwa” (WRIGHT, 2005, p.84).
Assim como em contextos daimistas amazônicos, estamos inseridos aqui em uma lógica xamânica; uma cosmovisão onde o universo é concebido como composição de múltiplos mundos paralelos e a natureza (que é também cultura), é habitada por seres humanos (vivos e mortos) e não humanos (físicos e encantados) que dialogam entre si dentro de um plano horizontal e, portanto, não hierarquizado.
Para o indígena e pesquisador Gersen Baniwa, nessa epistemologia, nessa percepção de mundo, embora “o homem [humano] exerça seu papel de destaque na mediação entre os seres da natureza” a linguagem (ou as linguagens) não é um privilégio humano; há uma comunicação cósmica e dela depende a harmonia da natureza-mundo (LUCIANO, 2015; 2017).
Todos podem (e deveriam) aprender e exercer essa comunicação. Contudo, há aquelas pessoas que se tornam especialistas e são chamadas, nessa cultura, de pajés: “sábios que dominam a totalidade do sistema de comunicação cósmica, [e dos quais] nada pode ser escondido, desconhecido ou secreto” (LUCIANO, 2017, p.296).
Eles estabelecem diálogos e conseguem não só escutar, ver, perceber as mensagens naturais/sobrenaturais como também interpretar, traduzir linguagens e mundos; e negociar com/interceder junto aos seres que produzem/constituem tais mensagens pelo bem-estar dos seus, pelo equilíbrio deste mundo (conhecimento e comunicação estabelecidos especialmente por meio da linguagem ritual-xamânica e possibilitados pelo uso das plantas professoras, as plantas de poder – no caso, o pariká e o caapi).
Considerando que proponho aqui um diálogo com fragmentos da poesia/literatura oral desse ancião e que um diálogo exige alternância de falantes, exige escutar o que o outro tem a dizer, na próxima parte do ensaio abro espaços para a voz (transcrita) de Luiz Mendes, para que possamos, de certa forma, escutá-lo (a partir da leitura – considerando que “a leitura é a apreensão de uma performance ausente-presente” (ZUMTHOR, 2014, p. 57, 60); e para que após essa “escuta” eu possa, então, tecer algumas de minhas apreciações.
A história a seguir foi contada na primeira entrevista que fiz com Luiz Mendes, na sequência de uma longa narrativa acerca de sua chegada à casa do Mestre Irineu ( fundador da doutrina do Daime.
Em busca de umas férias, uma cultura
Luiz Mendes: Aí é assim: não tem pra onde correr, porque, até vontade eu já tive, não minto, de algumas vezes ter, assim, achar que melhor pra mim era correr. Só que essa porta pra mim não se abre! Graças a Deus, né?! Eu vejo portas abertas, mas pra entrar. Pra sair eu não vejo, né. E eu não vou meter a cara, pra quebrar a cara! Há, há, há, há, há, há.
Fui, eu fui uma vez atrás de umas férias. Eu, eu sou cheio de coisas, né? Às vezes quando boto na cabeça, aí… O compadre Chico Granjeiro às vezes me dizia umas coisas, outros, aí ficava calado. Eu digo: eu vou tomar Daime pra verificar essa história. Aí foi justamente dentro disso que… Eu tomei Daime, pra ir atrás de umas férias, né? No astral! Até a gente atrás de andar como piolho na, na cabeça dos outros, às vezes aqueles companheiros eu encontrava:
_ Mas rapaz, pois tu nunca mais apareceu por lá…
É daqueles que vem de ano em ano, então quando acha que deve…
_ Tô passando umas férias.
Eu digo: mas é muita folga há, há, há, há há!! Aí, aí, há, há, aí eu digo rapaz, eu vou buscar também aí como qualquer férias, poxa, num é possível um negócio desses, tanta luta! Ora, mas tomei Daime e fui bater lá. Cheguei num departamento… Muito bonito o departamento, né. Tudo movimentado, vários, várias instâncias é, enorme! Muito grande, é um centro assim de… …eu, observei até ligando é… …na história de Chico Xavier, hospitais, é aquele povo internado, e tal, bom, mas aí meu caso era férias. Depois aí foi que eu fui ver essas coisas, mas meu caso foi férias, né.
Quando eu cheguei aí um rapaz me recepcionou, um baixote assim, caboclo bonito…:
_ Ôpa! – Eu digo:
_ Ôpa!
_ Tá fazendo por aqui? – Aí eu não escutei conversa:
_ É companheiro, eu vim por aqui, atrás de umas férias. Eu tô precisando aí dumas férias… – Aí ele fez assim um gesto que estranhou, um gesto estranho. Ele disse:
_ Férias? – Eu digo:
_ Sim senhor, férias… – Ele disse:
_ Rapaz aqui a gente não conhece essa coisa não, férias, não. A gente num se conhece isso não.
_ E não, é?!
_Conhece aqui… …num tá no nosso dicionário… aí… Agora… tem… é… como é… Aposentadoria! – Há, há, há, há. – Tem aposentadoria… Quer, se aposentar?
Mas nisso aqui eu já vou vendo aqui um caixão! Um caixãozão. Há, há, há, há. Aí, eu digo:
_ Não, companheiro! Poxa, poxa eu tô com vontade é de trabalhar, eu tô tão disposto!
He, he, he, he. […]
O hino transcrito a seguir corresponde ao número 113 do hinário “O Centenário” de Luiz Mendes. Ele foi gravado no contexto ritual do trabalho de cura dos “Chamados” (Cf. MENDONÇA, 2020, p.52-65; MENDONÇA, 2016, p. 201-207).
Eu entrei numa viagem
Eu entrei numa viagem
Florida em meu caminho
Meu Mestre ia dizendo
Você não está sozinho
Meu Mestre a vós eu peço
Em nome de Jesus
Perdoai as nossas culpas
E vós nos dê nossa saúde
A saúde é de todos
Mas ninguém sabe zelar
De repente adoece
E de quem vai se queixar
Eu imploro ao nosso mestre
Que vós venha me curar
Com os vossos caboclos
Plá, plá, plá, plá, plá, plá, plá
No rufar de um tambor
Pom, pom, pom, pom, pom, pom, pom
E dentro desta pomponzada
Já me considero bom
Importa considerar que os o conto e o canto de Luiz Mendes estão diretamente relacionados com suas experiências e memórias vivas, dinâmicas, que têm como único suporte o seu corpo. Corpo que realiza suas performances. E cada performance é uma obra viva que só existe naquele aqui/agora, na presença de intérprete e interlocutores; que não pode ser desvinculada de seu contexto (no caso, a doutrina do Daime) e da função que ali exerce.
Obra que abrange, além de palavras, risos, gestos, sons, expressões, tons, ritmos, texturas e etc. Ciente da impossibilidade de trazer aqui a totalidade/vivacidade das performances procuro traduzir para a escrita os sentidos que despertaram (ou despertam).
Traduzir minhas impressões como ouvinte (mas também como transcritora e leitora) diante das experiências vividas/memórias encarnadas de Luiz Mendes, por ele narradas, cantadas. Sempre lembrando que a obra viva, a performance, aberta às refuncionalizações de acordo com os ouvintes e as circunstâncias em que é simultaneamente pronunciada e percebida exige uma interpretação nômade. Quanto mais a poesia oral musical/ritual e/ou narrativa/cotidiana da Ayahuasca ou, especificamente aqui, daimista (Cf. MENDONÇA, 2016; ZUMTHOR, 2005; 2010).
Atenta as essas balizas teço agora algumas de minhas apreciações acerca da história e do hino transcritos. Salta aos meus olhos, aos meus ouvidos, à minha percepção, enfim, a característica compósita das narrativas e, por conseguinte, da literatura e cultura daimista tal como vivida, concebida, produzida por Luiz.
Na história das “férias” o narrador, impulsionado por questões cotidianas (cansado diante de tantas responsabilidades assumidas dentro da doutrina, “tanta luta” e sentindo-se aviltado por companheiros que não tinham o mesmo compromisso) toma a bebida (de origem indígena, sempre bom lembrar; mas inserida aqui no contexto da “cultura daimista”) e sai em uma viagem xamânica em busca de suas férias; apenas nesse aspecto já é possível perceber uma negociação, um intercâmbio, uma tradução de/entre espaços/tempos e assuntos cotidianos e sagrados.
É interessante observar, também, que em uma experiência/narrativa que versa sobre a morte, Luiz Mendes percebe/traz à tona elementos, sentidos/significados, imagens culturais do espiritismo, conforme apresentado por Chico Xavier.
Cabe considerar que estamos inseridos em contextos amazônicos em que, diferentemente de sociedades europeias, como lembra Manuela Carneiro da Cunha, há uma abertura, um “apetite pelo Outro”; a diferença, os símbolos e bens culturais do “outro” não são tidos como exóticos e mantidos à distância; o estrangeiro, com seus traços culturais, é “incorporado” (CUNHA, 2009, p.361). Na narrativa estaríamos diante, talvez, de uma tradução cultural antropofágica.
A narrativa da miração parece versar sobre uma empreitada coloquial. Algo assim como um trabalhador rural que se desloca para uma cidade próxima no intuito de buscar, junto ao órgão competente, informações acerca de seus direitos; no caso o direito de férias.
No entanto há uma espécie de choque cultural pois naquela localidade ignora-se a palavra/definição do pretenso direito buscado “…num tá no nosso dicionário…”. Procurando algo similar, que pudesse satisfazer os anseios do trabalhador o atendente então lhe oferece a aposentadoria. A palavra associada à imagem do caixão deixa evidente ao trabalhador que para a luta cotidiana empreendida o único descanso é a morte corporal.
E naquele momento, naquela realidade espiritual, a ele é dado um poder de escolha: “Quer, se aposentar?” Ao que prontamente responde: “Não, companheiro! Poxa, poxa eu tô com vontade é de trabalhar, eu tô tão disposto!” Assim conta o narrador, entre risos contagiantes.
A experiência me remete, mais uma vez, às proposições de Manuela da Cunha, em diálogo virtual com Davi Kopenawa Yanomami e Viveiros de Castro, ao afirmar que “Alucinógenos propiciam experienciar diretamente como se pode perceber o mundo de modos diferentes – ou que diferentes mundos podem coexistir perceptualmente, numa formulação mais amazônica” (CUNHA, 2009, p.366). Sob o efeito do Daime a miração é vivida por Luiz Mendes não apenas na/com a mente, mas com o corpo e seus sentidos.
No intuito de alcançar seu objetivo, ele caminha por aquele mundo “outro”, vê suas paisagens e população, dialoga com o “atendente” que ali trabalha. Estabelece, pois, uma comunicação cósmica. A linguagem é, portanto, também um ponto de destaque. Interessante notar que, embora haja uma disponibilidade para o contato, para a negociação (de interesses e significados) a história parece indicar que nem sempre a tradução é possível; a diferença seria, talvez, inegociável: aquela palavra, aquele objetivo que impulsionou a viagem não encontrava referente na língua e/ou na cultura daquele mundo “outro”.
Contudo, a tradução cultural “entre-mundos” é rapidamente feita pelo viajante trabalhador: se estivesse cansado da luta da/na matéria, tinha a opção de escolher a morte! Um alerta que lhe revigora a disposição para o trabalho cotidiano/espiritual.
Desloco minha percepção para o hino da “pomponzada” que, de acordo com Luiz Mendes “Como se sabe, é o conjunto do pompom do tambor! Que formula então, a pomponzada” (MENDONÇA; NASCIMENTO, 2019, p.175). Cantado em uma performance ritual coletiva voltada para a cura, o hino apresenta uma poética compósita característica da cultura daimista tal como aprendida/vivida por Luiz Mendes.
Em um cristianismo traduzido o nome de Jesus é invocado no diálogo cósmico que Luiz estabelece com o Mestre, pedindo que ele (Mestre Irineu) venha, com seus caboclos, lhe curar. E nessa comunicação entre o mundo dos vivos e dos mortos e encantados, Luiz fala e também escuta – e traduz, nos versos do hino, o que escuta – o Mestre falar.
Traduz não apenas a voz/palavra do Mestre, mas a presença sonora e benfazeja de seus caboclos. E essa comunicação cósmica permite uma reorganização da natureza-mundo material, do corpo físico de Luiz; objetivo é alcançado: aquele que estava doente no início da viagem e da tradução/narração poética que dela se faz, se considera curado (e na refuncionalização da poesia oral espiritual, no tempo cíclico do sagrado, essa comunicação pode reestabelecer, também, a saúde dos que participam do ritual e cantam em uníssono; a partir de sua experiência, no trabalho de cura dos “Chamados” por ele criado/recebido, Luiz passa a intervir, junto a esses seres, pelo bem-estar dos seus). Mais uma vez há um profundo intercâmbio entre os mundos, as realidades material e espiritual.
Dentro da batalha da cura, o Mestre e seus “auxiliares”, no caso os caboclos espirituais, são chamados e se fazem presentes dialogando com seu Luiz a partir de palavras/pensamentos e também de instrumentos musicais. Diálogo/presenças manifestadas aos ouvintes (que na performance ritual coletiva em que se dá a execução do hino são também cantores) por meio da letra/melodia do hino “meu Mestre ia dizendo…” e de sons característicos “pom, pom, pom”, “plá, plá, plá”.
Ouvintes/cantores que no ato mesmo de cantar/ouvir o hino são interlocutores e tomam parte no diálogo de muitas vozes estabelecido, especialmente porque a palavra poética/xamânica/cantada pode ser, e é, refuncionalizada, atualizada. Palavras e onomatopeias pronunciadas pela voz que, no contexto ritual do Daime e bem ao modo sonoro e divertido de Luiz Mendes, “intimam a divindade a estar presente”, formam “imagens visuais” (visíveis para alguns ou simplesmente imaginadas, ou intuídas pelos demais) e afirmam a cura do doente: “Dentro dessa pomponzada/já me considero bom”.
Nos processos de tradução cultural o canto (ou sua transcrição), me remete a práticas/lógicas xamânicas da Ayahuasca (com seus muitos nomes e usos entre diversos povos das/nas Amazônias). Percebo que, embora a doutrina do Daime apresente ritos e mitos que lhe são próprios, estou diante de saberes/fazeres que se inserem no que que poderia ser chamado, talvez, de “cultura ayahuasqueira” – nunca apreendida no singular e/ou essencializada.
O hino daimista de Luiz me remete também às Áfricas e seus tambores. Na tradução poética que ele faz de sua experiência extática, os caboclos de Irineu (homem negro, vindo do Maranhão, neto de pessoas escravizadas), invocados em nome de Jesus, se apresentam com seus tambores. Sendo a experiência vivida em contato, em diálogo, em comunicação com entidades espirituais invocadas por Luiz Mendes, poderíamos considerar que a narrativa versa sobre uma “performance espiritual” – com efeitos sobre o corpo físico do “paciente”. Performance em que os caboclos do Mestre chegam rufando tambores “pom, pom, pom” e dançando, talvez (o som do “plá, plá, plá” seria de seus pés batendo no chão?).
Recordo que em performances poéticas, cotidianas e/ou rituais de determinados grupos africanos, os tambores “falam”; a percussão constitui, em si mesma, uma linguagem poética. As onomatopeias também me remetem a tradições orais africanas, tendo em vista que são recursos muito utilizados em tais contextos (Cf. HAMPATÊ BÀ, 2003, p. 193; ZUMTHOR, 2010, p.189). E é dentro dessa “pomponzada”, dentro desse contexto cristão-ayahuasqueiro-afro-amazônico que o doente se considera bom.
Tal perspectiva seria inconcebível em um cristianismo ortodoxo, atávico, eurocêntrico, colonial. Seria inconcebível em qualquer perspectiva de “pureza” cultural (e/ou identitária, “étnica”, “racial”, seja lá o que se entenda por isso). Mas aqui as diferenças não são abordadas de maneira binária e/ou excludente. São acopladas, incorporadas, negociadas e reinventadas criando uma abertura para o surgimento de algo novo; uma tradição traduzida; no caso a cultura/poética daimista de Luiz Mendes, constituída em processos de comunicação cósmica.
O imaginário aqui não se submete, pelo menos não plenamente, aos discursos forjados para a nação que objetivam a homogeneização, a colonização exterior e interior, material e subjetiva. Luiz se insere em/vive/cria repertórios de resistência, constituídos em tensão, mas não em oposição às culturas dominantes. Imaginários e poéticas constituídas no interior e a partir da “cultura da Ayahuasca”, da ciência do Daime, de estéticas das diásporas. Repertórios culturais compósitos que, embora sutilmente e dentro dos processos de conformismo e resistência, subvertem padrões hegemônicos de linguagem e cultura e fazem surgir a novidade no mundo.