A virada ontológica e a Amazônia: um diálogo (completo)

Por Bruno Caporrino, Nick Kawa e Túlio Zille

O diálogo abaixo, entre os pesquisadores Bruno Caporrino, Nick Kawa, e Túlio Zille, ocorreu no decorrer de várias semanas do segundo semestre de 2017. Nele os pesquisadores discutem não só a relevância da virada ontológica nas ciências humanas para o meio acadêmico, como também suas possíveis consequências para a política, com especial atenção para a Amazônia.

 

Túlio: Caro Nick, há alguns meses eu entrei em contato com o Bruno por causa de uma entrevista que ele deu há dois anos sobre desenvolvimento e cosmovisão na Amazônia. Eu achei muito interessante a maneira como ele aborda os conhecimentos locais como “corpus epistemológicos” (acho que agora talvez diríamos que fazem parte de um “corpus ontológico?”). E aí começamos um diálogo que espero manter por muito tempo. O Bruno me falou da sua palestra na UFAM recentemente “Amazônia no antropoceno: observações, questões e desafios” e quando vi que você a postou em seu blog, eu a li e mandei alguns comentários para ele, os quais exponho aqui.

Alguns dos argumentos que você propõe são muito importantes, principalmente para pesquisadores como eu, que estão fora (do país) e tendem a manter visões equivocadas sobre a região. Por exemplo, você ressalta que a Amazônia, antes de ser, e ter sido, periférica ao desenvolvimento capitalista, participou ativamente dele — vide o ciclo da borracha e como foi indispensável para esse desenvolvimento. Outro ponto importante é a ideia também errônea de que na Amazônia as pessoas são ou guardiãs do meio ambiente, ou destruidoras dele. E por último, um dos mitos mais duradouros é o de que há pouca urbanização na região, e por isso, às vezes se concentra mais na degradação do meio ambiente pelos grandes projetos de mineração, hidrelétricas, agronegócios, etc., do que nos problemas trazidos pela expansão urbana desordenada.

Pelo o que eu entendi seu principal argumento é de que há formas distintas de conhecimento ecológico na Amazônia devido ao contato direto da população com o meio ambiente, e que estes conhecimentos sustentam uma visão mais ou menos oposta à do antropoceno. Na visão deste, os homens são agentes que têm quase total poder de manipulação sobre a natureza. Você sugere que essa visão não é somente equivocada (por exemplo, muitos de seus entrevistados que moram na região, falam dos seres da natureza como agentes com os quais, às vezes, é inclusive difícil lidar), mas também é parte do problema que criou a crise ambiental em que vivemos, que é essa mentalidade moderna cega às agências não-humanas.

Concordo plenamente com este argumento. Na verdade acho que muitos dos trabalhos que envolvem o antropoceno nas ciências humanas já estão caminhando para esse lado mesmo, que é o de reconhecer que o antropoceno é um período em que os seres humanos ampliaram “a capacidade de alterar a vida no planeta mas não necessariamente o domínio sobre ela”. E assim sendo, (re)conhecer, aprender ou valorizar outras formas de se relacionar com o não humano será útil para deixarmos o antropocentrismo moderno que sustenta os modos de vida que criaram a crise em que estamos.

Uma pergunta que eu gostaria de fazer é a seguinte: você fala de levarmos a sério as mitologias e metáforas dos povos da região para poder termos uma visão de uma ecologia alternativa necessária no momento atual (por exemplo você diz “embora a cobra grande[1] possa não existir da maneira biológica como o sucuriju, é uma metáfora poderosa da contínua evolução da paisagem amazônica e sua agência”). Na medida em que começamos a levar a sério a virada ontológica nas ciências humanas, como evitamos uma certa desvalorização que termos como mitologias e crenças criam (ouve-se dizer que mitos “não são científicos o suficiente”, “são a visão de uma cultura em particular e não faz sentido fora de seu contexto”, etc.)? Em outras palavras, é possível falarmos da cobra grande, no meio acadêmico, sem explicá-la como mito? Acho que ainda não consigo formular esta pergunta adequadamente pois a linguagem que está ao nosso alcance atualmente tende a recriar essas separações.

 

Nick: Confesso que eu ainda estou lidando com esse mesmo problema. Até esse trecho que escrevi sobre a cobra grande me deixa um pouco inquieto. Quando eu falo que a cobra grande é uma metáfora, parece que estou tentando traduzir esse conceito para um público que tem dificuldade de aceitar a cobra grande como uma realidade em si e pronto. Tem gente como Bruno Latour que fala que devemos adotar uma “ontologia plana” (flat ontology), no qual tudo existe, não importa se estamos falando do Papai Noel, ou uma gota de sangue, ou neoliberalismo, ou aquecimento global. Do que eu entendi desse ponto de Latour, mesmo se não tem um cara que se chama Papai Noel, que mora no polo norte, não podemos negar que existem bilhões de imagens dele nesse mundo, contos sobre o que ele faz e como se veste, etc. Não é uma questão de existir ou não. Mas talvez seja melhor perguntar: quais são os efeitos dessas várias formas de Papai Noel no mundo?

Voltando para o assunto, cobra grande é uma coisa nesse mundo, ou desse mundo. Biodiversidade também é. Poucas pessoas nos Estados Unidos, onde eu moro, negariam a realidade de biodiversidade. Mas por quê? A biodiversidade também é um certo tipo de ficção, no sentido original do latim – uma coisa inventada, criada, formada.

A virada ontológica está me ajudando a reconhecer o grande problema que existe quando a gente nega a existência da cobra grande mas aceita a existência da biodiversidade, ou em outras palavras, quando a gente insiste em distinguir entre “conhecimento” e “crença”. “Crença” é, muitas vezes, uma forma pejorativa de falar dos conhecimentos ou a sabedoria dos outros. Eu acho que precisamos elevar os conceitos “dos outros” e colocá-los numa terra plana junto com os conceitos ou teorias acadêmicas – isso é um passo importante para começar a mudar a conversa. Ou, pelo menos, ampliar a conversa. Na antropologia, eu canso de ouvir o que Foucault ou Latour (eu também tenho culpa, veja aí em cima!), ou Deleuze conseguem explicar sobre a vida. A filosofia da vida vem de muitas fontes, e por que não dos ribeirinhos da Amazônia?

 

Bruno: Eu ousaria arriscar uma resposta (à pergunta de Túlio). Na verdade, ela já foi construída, e de maneira magistral, por Claude Lévi-Strauss ao longo de toda sua obra e encontra-se, na forma de um corolário, nos quatro tomos das Mitológicas. Mais do que o relativismo proposto por Franz Boas e levado ao grau máximo por Clifford Geertz, que são muito importantes, acredito que a tese de Lévi-Strauss é mais profunda e abrangente sobretudo porque ela refuta, por assim dizer, a noção de cultura, na forma como o senso comum a entende e maneja.

A polaridade natureza/cultura constitui pedra de toque da epistemologia ocidental moderna. A noção de cultura é muito associada, especialmente no bojo do pensamento ocidental moderno, àquilo que os homens criam em sua passagem da natureza à humanidade. Assim, há algumas homologias decorrentes das intersecções dessa polaridade no seio do pensamento ocidental:

Cultura versus Natureza

=

Civilização versus barbárie

Agente (ativo) versus inerte (passivo)

Consciente versus inconsciente

Evoluído versus primitivo

Racional versus irracional

Dominante versus dominado

Desde que as revoluções epistemológicas advindas com a renascença ganharam contornos, como bem ilustra a passagem do cânone do regime de conhecimento ocidental moderno proposto por Bacon (1651-1629),  em seu Novum Organum (publicado em 1620), passando por Giambattista Vico (1668-1744), e sendo relido e retomado de maneira radical pelo racionalismo de René Descartes (1596-1650), a polaridade (até então equilibrada no seio das sociedades vetero ocidentais), passa a uma crescente radicalização.

Cuido que compreendemos isso quando observamos o percurso histórico da epistemologia ocidental ganhando contornos com a instituição do regime de conhecimentos científico desde que Bacon assenta a pedra fundamental.

Todavia, é crucial pontuar que a pretensão de Bacon não era inaugurar um novo regime de conhecimentos, fazendo, como se pensa, com que a Razão triunfasse aos mitos, à religião, às crenças e ao pensamento anímico. Esta foi, na verdade, a leitura que se fez de sua obra, que consiste basicamente na fundamentação dos regimes de verdade na experiência controlada e passível de reprodução (a fim de permitir a contestação dos dados), e do método, que deveria ser meticulosamente descrito a fim de assegurar o estatuto de verdade do conhecimento científico.

Bacon, que se arriscav frequentemente no terreno da alquimia, não a renega e nem à religião e aos mitos —  não é isso que importa, mas sim conduzir um experimento de maneira controlada, descrevendo metodicamente cada etapa do processo, de maneira a torná-lo reprodutível e, por meio da repetição, chegando-se aos mesmos resultados, auferir a verdade.

Mas a revolução copernicana acabara colocando o ideal renascentista de homem ocidental (simbolizado por um homem de uma determinada classe social, seja dito), no lugar antes ocupado por deus. Paulatinamente, os regimes de conhecimentos científico e filosófico, (sempre muito próximos e quase indiferenciáveis), passam a ser usados politicamente para legitimar a conquista etnocida do continente americano —  paralelamente ao “discurso do método para conduzir a Razão e encontrar a Verdade nas ciências”, título da magna opus de Descartes, operam-se as decorrências dos intensos debates entre Las Casas e Sepúlveda, conhecida como controvérsia de Valladolid: teriam os povos ameríndios Razão, consciência e, portanto, seriam eles humanos?

Era interessante, política e economicamente, provar que não, de modo que o regime epistemológico ocidental foi colocado, uma vez mais, à serviço do debate e manipulado para atender a interesses políticos e econômicos, impetrando não um genocídio contra os povos ameríndios, mas um longo e sistemático etnocídio. Como bem define Pierre Clastres:

O etnocídio é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição. Em suma, o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito […] O etnocida, em contrapartida, admite a relatividade do mal na diferença: os outros são maus, mas pode-se melhorá-los obrigando-os a se transformar até que se tornem, se possível, idênticos ao modelo que lhes é proposto, que lhes é imposto. (CLASTRES, 2004 [1974]: 83)

A “descoberta” da América não teria ocorrido sem a Revolução Copernicana e sem a renascença. Mudanças na episteme permitiram radicais mudanças na organização social e, consequentemente, a primeira revolução industrial eclodiu. O que hoje é a Europa, até então repleta de pequenas populações diferentes que, à moda dos povos ameríndios, teciam alianças e consorciavam guerras, cultuavam o equinócio e festejavam, cada qual a seu modo, a chegada da primavera, realizando pensamento anímico, sucumbe às “trevas” medievais e “renasce” racional.

Rios passam a ser canalizados, barrados. Colheitas passam a ser feitas sem os rituais. E, logo após o triunfo desse movimento epistemológico, o contato com os povos ameríndios fornece às potências políticas e econômicas em cena o poder elemento a subjugar: animistas ora edênicos ora pecaminosos, mas sempre primitivos, sempre associados ao passado do próprio Ocidente.

O triunfo da Razão sobre as Trevas, a negação do pensamento religioso e do poderio da igreja católica que ocupam o ocidente durante o Renascimento, encontrará no sistema político emergente, nos novos modos de produção e nos efeitos da revolução industrial, elementos para continuar esse processo em busca da Razão, custeada com a exploração etnocida dos povos ameríndios, sendo o etnocídio perenemente impetrado contra os povos ameríndios o sustentáculo dessa revolução epistemológica.

O triunfo da Razão sobre as trevas encontra no iluminismo seu auge, acompanhado de fortes convulsões sociopolíticas, que eclodem de maneira inegável quando das revoluções burguesas. O iluminismo visa dissociar os povos ameríndios do polo passivo —  natureza. Mas, com a melhor das intenções, falha porque não consegue enxergar o mundo para fora dos valores que o moldam: emerge um Bom Selvagem que, embora tenha cultura, é ainda afeito à natureza, dela dependente, e, em todo caso, ainda primitivo, involuído.

Atribuir-lhes cultura, que é um movimento que começa aí, não é descolonizante e nem emancipatório — não poupa aos povos ameríndios o infortúnio terrível de serem vítimas do etnocídio. Mas é no século XIX que essa busca pela Razão enquanto negação da natureza, que passa a ser inerte e inanimada e, por isso mesmo, dócil, passiva e dominável ao ponto do fazer-se humano consistir, epistemologicamente, num negar-se animal e, portanto, dominar a natureza (à qual os povos ameríndios estão associados), encontra seu paroxismo: a teleologia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831), serve aos interesses coloniais que, por sua vez, alimentam a fera da revolução industrial.

O movimento positivista retoma os fios de Ariadne lançados por Bacon, retorcidos por Descartes e retesados por Immanuel Kant (1724 – 1804), a fim de proceder a uma revolução epistemológica que era, de certa forma, clamada pelo ocidente moderno — a fim de suprir a demanda europeia durante a revolução industrial, colonizar era preciso, mais do que navegar. Mas, após os avanços no que tangia à querela de Valladolid quanto à alma (e cultura) dos povos ameríndios e africanos, como justificar, epistemologicamente, a colonização e, portanto, o etnocídio e o genocídio, sendo que, dotados de cultura e alma, agora esses povos eram humanos?

E como fazer isso de maneira científica, já que o paroxismo positivista almejava de maneira doentia uma objetividade e um grau de Verdade por meio da ciência que sequer Bacon e Descartes almejaram, sobretudo porque saber era, mais do que nunca, poder? Ao clamar para si a imagem de seres superiores, os homens ocidentais precisavam fazê-lo cientificamente. Foi acionando a polaridade natureza versus cultura, justamente, de maneira “objetiva”, e portanto científica, que surge nas teorias evolucionistas e racistas cujo sentido estava em produzir um estatuto de verdade científico e objetivo a valores morais e culturais — a teleologia, que não se encontra na obra de Charles Darwin (1809-1882), pressupunha que a evolução consistisse em aperfeiçoamento, melhoramento.

Teleológica, essa acepção pressupunha a evolução como um caminhar rumo a um modelo de humano. Já sabemos de que modelo lançaram mão as empreitas evolucionistas. O neocolonialismo que retalha o continente africano parecia demandar teorias calcadas em raça e que permitissem à Razão, à consciência ocidental moderna, colonizar, subjugar, assassinar, sem culpa, pois o neocolonialismo não se assumia como um movimento aniquilador, mas sim civilizatório. Era, basicamente, um favor prestado pelo Ocidente aos povos que, na escala evolutiva e teleológica, ainda estavam no plano da natureza e, portanto, do irracional, do infantil, do involuído, do bárbaro, do passivo, dominável, domesticável.

Mas a lide com esses povos, nesse contexto, confrontou uma vez mais a episteme ocidental com questionamentos que passam a confrontar a empreitada neocolonial com incômodas dúvidas. Resulta disso a necessidade de operar como eminência parda e, portanto, compreender os conflitos internos e a organização social desses povos a fim de hipertrofiá-los e acirrá-los a fim de que, digladiando-se uns contra os outros, divididos, fosse possível imperar. Emerge, nesse cenário, a antropologia enquanto ciência (pois carecia-se de uma ciência para justificar atos e empreitas).

Primitivos, embora agraciados com o estatuto de humanos, os povos tribais foram enquadrados na escala evolutiva, tiveram seus costumes primitivos estudados a fim de melhor encaixá-los nos devidos estágios dos escaninhos da saga ocidental rumo a seu próprio ideal de si mesma. Dotou-se, com a emergência da antropologia, os povos tribais de cultura. Contudo, o mau uso que se deu a esses pares no bojo da onda positivista levou a um processo que culminou com a ciência servindo aos interesses do colonialismo. Por isso há um problema com esse conceito, a meu ver: ele ainda é carregado de acepção folk.

Índios têm cultura. Ribeirinhos têm cultura. Que bonitinho não? Mas nós, Ocidente Moderno, desde Francis Bacon, Descartes e Darwin, temos cultura e ciência. Epistemologia e conhecimento para além da cultura. Isso não é algo inerente ao conceito de cultura de Geertz. Mas é que como o termo, o conceito, é partilhado pelo “senso comum”, o conceito de Geertz perde força, porque a acepção comum para o termo é essa: índios têm cultura. Certa vez, em um debate com professores da rede pública de ensino em Macapá, Amapá, ouvi a seguinte declaração “temos que respeitar os índios, suas lendas, mitos, trajes diferentes, tradições”. Mas, completei, ironicamente: “nós… nós levamos o homem à lua e fizemos fissão nuclear”, ao que a interlocutora concordou prontamente, com um feliz sorriso de satisfação, para meu desespero.

Parece-me que, atualmente, a acepção que se dá ao termo cultura tem sido benevolente e caridosa e, por isso mesmo, não menos maléfica. Cultura seria, hoje, algo como um verniz, uma camada de pálida humanidade: “iguais a nós”, os indígenas seriam diferentes por usarem roupas e pinturas corporais diferentes. Iguais em essência, diferentes em aparência mas, ao mesmo tempo, inferiores quando se trata de direitos políticos ou de conhecimentos.

Parece, portanto, que a cultura (roupas, penas coloridas, pinturas, cultura material, basicamente) seria uma dadivosa concessão que o Ocidente moderno faz a esses povos que, até os dias atuais, devem ser civilizados, humanizados, integrados, educados — devem ser resgatados do passado, que representam tal qual fósseis vivos, para o presente. Devem ser educados, pois nada sabem, já que cultura significa um marcador “politicamente correto” de diferenças aceitas em nome do politicamente correto.

Há uma expressão popular, muito usada pelas crianças quando de seus jogos, em algumas regiões do Brasil — “esse menino é café com leite”. Aquele menino, geralmente mais novo ou frágil que os demais do grupo é por este aceito em seus folguedos. Todavia, devido à sua pouca idade ou pouca capacidade de interagir devidamente nos jogos, é reputado como café com leite, pode ser pego no jogo de pega-pega, mas isso não implicará em multa ou prenda, pois ele é “café com leite”.

Basicamente, inimputável, que é como são considerados os povos indígenas pelo estatuto do índio, Lei 6.001/1973, essa aberração ainda em vigor a expensas de ser legislação ordinária, e portanto, infraconstitucional e parte da Constituição Federal, promulgada faz 30 anos. Epistemologicamente, isso é muito forte. É estrutural, mais do que contingencial. Ao conceder que povos tradicionais têm cultura, se os considera humanos. Humanos café com leite, mas humanos, vá lá. Rufam seus tambores, fazem suas danças. É meigo vê-los, um dia por ano, tocando seus atabaques. Usam tangas, e isso é valorado positivamente: até que suas terras fiquem a meio do caminho do Progresso — evolução. Então, esse fóssil vivo, que já não usa tangas, mas sim calções, e tem smartphones, deve ser eliminado, pois era um humano café com leite que parece ter perdido toda sua graça ao tirar a cultura – sobretudo material.

Tais operações epistemológicas não são prerrogativa de políticos mal-intencionados, ou do homem da rua que opera com o senso comum — o que eu gostaria de dizer, com tudo isso, é que o etnocídio é sistemático e encontra-se fundamentado nos tijolos mais íntimos e primevos do construto epistêmico ocidental, o que traz para a antropologia um desafio muito maior do que aquele previsto por Claude Lévi-Strauss em seu clássico Raça e História, de 1952.

O grau de alojamento epistêmico disso fica um pouco mais claro para quando consideramos o que se faz ultimamente no campo das ciências biológicas. Como estamos em uma conversa meio informal, acho que posso lançar-me a um folguedo — há o termo “etno”, conhecido de todos. É um prefixo que os ecólogos, geógrafos e biólogos adoram empregar, e é muito engraçado, para mim, ver como se usa. Etnomapeamento. Etnozoneamento. Etnobiologia. Etnoecologia. O “etno” está associado ao folk (folk taxonomies, gosta de dizer a biologia).

Mas cultura é algo que todos têm. Ciência… ah, ciência, só nós, ocidentais. Ao fazer-se etnomapeamentos, ensina-se (verticalmente transferindo saberes e técnicas), aos índios o uso de seus saberes (e não sua ciência, sua cartografia, sua geografia). Bons selvagens, são também bons mateiros. Bons conhecedores, tradicionais, das matas, das florestas, geralmente associados a uma imagem new age de exóticos avós que muito conhecem por experiência. Têm cultura, mas não têm ciência. Como os avós dos próprios pesquisadores — conhecem lendas e mitos. Não a verdade. Não possuem de si mesmos um regime de conhecimento, uma epistemologia própria. É necessário dar-lhes ferramentas que só a Ciência e, portanto, só o Ocidente teria. GPSs, sistemas de informação geográfica — satélites, vovô. Não ligue para isso pois não entenderias. Conte-nos sobre onde há açaí e onde há bacaba, apontando no mapa.

Lévi-Strauss, de braços dados com Latour, nos ajudam a perceber melhor o grau de enraizamento disso, se conseguirmos balancear a relação — não adianta tentarmos elevar os regimes de conhecimento indígenas ao estatuto de verdade do conhecimento científico se não seguirmos Latour, que nos permite “baixar um pouco a crista” da epistemologia ocidental, que sempre foi tão bela e poética, mítica e mitológica, até a chatice do surto positivista esvaziar tudo isso. O primeiro caminho seria livrar a epistemologia ocidental dos laivos positivistas. A despeito das críticas que jocosamente teci aqui à guisa de exemplos quanto às “etno”, tais movimentos são muito relevantes no que se refere a postular e almejar um novo paradigma para o fazer científico, que passa a tornar-se mais e mais simpático aos regimes de conhecimentos não-ocidentais.

Para tal bastará, acredito, continuar fortalecendo o diálogo entre as hard sciences ocidentais, de maneira rigorosa, científica mesmo, e os regimes de conhecimentos não-indígenas, com foco na superação dessa assimetria que teima em existir por recair nos recônditos desvãos do pensamento científico desde o positivismo. A Filosofia da Ciência, de mãos dadas à etnologia, pode muito contribuir por possibilitar uma avaliação antropológica (distanciada) do pensamento científico ocidental, tomando-o como fruto de construtos histórica e politicamente desenvolvidos.

Feitas essas pontes e superadas essas barreiras, cuido que potencializar-se-á os imensos e vertiginosos avanços que galgou a etnologia ameríndia com a Virada Ontológica. É na tópica das Mitológicas, do Pensamento Selvagem, da antropologia estrutural de Lévi-Strauss que são calcadas as investigações e resultados mais avançados da etnologia ameríndia, que encontram na tese do Perspectivismo Ameríndio, seu fio condutor.

Associada ao brilhante movimento que a antropologia pós-moderna idealizou e realizou quanto à autoridade etnográfica (e a discussão de George Marcus, James Clifford, Renato Rosaldo ainda continua a surtir maravilhosos efeitos), a Virada Ontológica é o único caminho para a compreensão dos regimes de conhecimento e verdade ameríndios e não-indígenas segundo seus próprios termos, superando os limites impostos pelo regime de conhecimento ocidental.

Entender os índios por seus próprios termos, seguir o dado dos índios, e não os nossos: eis a pedra de toque da Virada Ontológica. Isso só será possível mediante a superação da pauta, da agenda, que a própria antropologia se impôs ao longo de sua crise por ser mais soft do que hard science e se entender, preconceituosamente, como “menos científica” ou “menos rigorosa”. Seguir a pauta dos índios, pensar segundo seus próprios termos, eis a missão da Virada Ontológica. O interessante é que nesse processo, justamente a cisão natureza versus cultura, fundante da episteme ocidental, foi a primeira a ser virada de ponta cabeça.

Nesse sentido, cuido que o seminal artigo intitulado Atualização e contra-efetuação do virtual na socialidade amazônica: o processo de parentesco, publicado por Eduardo Viveiros de Castro em 2000, torna-se ainda mais ilustrativo, pois é no processo de construção da afinidade que se foca nessa síntese de todos os avanços que compõem a Virada Ontológica, e não propriamente na cosmologia, permitindo infinitos desdobramentos a partir de uma poderosa síntese, que permitem uma compreensão ainda mais acurada do que Viveiros de Castro e Déborah Danowski propõem em Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins.

Creio, enfim, que o movimento vem nos dois sentidos — de um lado, elevar os regimes de conhecimento tradicionais à Regimes de Verdade, libertando os povos não-indígenas do pesado e caritativo jugo da cultura; de outro livrar a antropologia desta busca residual por um “estatuto de verdade”, que seria chancelado por uma visão bastante arcaica, inclusive, do que seja regime de conhecimento ocidental moderno. É em torno de uma disputa epistemológica, uma guerra silente como soem as guerras xamânicas, que se trata, afinal.

 

Túlio: Trocando em miúdos, entendi o seguinte — o Nick propõe um diálogo sobre a importância de se elevar ‘outros’ conhecimentos ao mesmo patamar ontológico do meio acadêmico, inspirado na ideia de ‘flat ontology’ do Latour (eu preciso urgentemente me familiarizar mais com o trabalho de Latour). Já o Bruno, argumenta que não basta elevar os ‘outros’ conhecimentos ao nível de regimes de verdade, mas é necessário continuarmos a “baixar a bola” das ciências/academia.

Eu estou de acordo plenamente com ambos, mas talvez precisemos refinar um pouco o que está em jogo nesse processo, para não corrermos o risco de a “ontologia ocidental” continuar sendo o padrão de medida do nosso imaginário. O que exatamente significa estar no mesmo patamar ontológico que as ciências ocidentais? Como se define isso? Nick, você disse algo sobre a filosofia de vida ter muitas fontes. Seria nesse sentido? E como se dá exatamente o baixar a bola dos saberes ocidentais?

Será preciso ter cuidado com os critérios que se usa para reconhecer a igual validade de um outro mundo, para que não caiamos num relativismo superficial, aquele que diz que todo conhecimento é válido mas não questiona a relação de dominância de um deles com o resto. Outro problema é que talvez o mundo de uma flat ontology continue um só, unidimensional.

Nesse movimento crítico de elevar outros conhecimentos e/ou de aplacar o conhecimento moderno, acho que podem ocorrer duas coisas que merecem debate. No primeiro caso, o da elevação, corremos o risco de simplesmente demonstrar, por exemplo, como tal e tal conhecimento também possuem coerência epistêmica nos moldes da ciência moderna (quer dizer, nos moldes da narrativa que a ciência moderna cria de si); no segundo caso, procura-se demonstrar como a ciência moderna também possui incoerências e subjetividades da qual ela mesma se diz isenta. Nos dois casos, temos uma aproximação desses conhecimentos, mas “subjetividade” e “incoerência” continuam a ser fatores indesejáveis. Esse movimento crítico não deixa de ser politicamente importante (nesse sentido, “traduzir” a cobra grande como metáfora para certo público tem seu valor), mas como recriamos, paralelamente, os termos de legitimidade e validade de um mundo ou conhecimento? O que acham?

Eu tinha em mente algo como o argumento sobre tradução no livro Provincializing Europe de Dipesh Chakrabarty, por exemplo. Lá ele mostra casos de tradução cultural que não necessariamente recorrem a um modelo baseado na ciência, inclusive social, europeia moderna, que usa um denominador comum, universal e abstrato (“científico”), e que se diz capaz de capturar toda a essência de um conceito. Por exemplo, há casos históricos na Índia em que divindades (olha eu usando um desses abstratos!), islâmicas, foram traduzidas como certas divindades hindus e vice-versa, sem apelo ao meio termo universalizante “divindade” ou “deuses”, mas usando outros critérios que os povos locais achavam mais persuasivos, com recurso a aliterações ou retórica.

 

Nick: Essa tendência de aplicar o prefixo ‘etno’, mencionando por Bruno, é uma das coisas que também sofri por um tempo até pensar bem no absurdo de insistir que o conhecimento, as práticas, até a ‘ciência’ de algumas pessoas é o produto de cultura, enquanto o conhecimento de outras pessoas (dos “modernos” no vocabulário do Latour) não é! Ainda bem que os estudos sociais da ciência e tecnologia estão ajudando a acabar com essa mentalidade. Ou tudo é etno ou nada é!

Um problema com a virada ontológica que faz parte do debate atual é o jeito que entendemos diferentes ontologias. Será que são mundos distintos que ocupamos ou é mais uma questão de entender realidade de diferentes perspectivas devido a diferentes histórias, hábitos e ideias que adotamos? E se for o segundo caso, tem alguma diferença entre o conceito de cultura e o conceito de ontologia nesse discurso todo? Têm algumas pessoas que acham que a “ontologia” da virada ontológica é simplesmente outro jeito de falar de cultura.

Se distintas ontologias são baseadas em algumas diferenças radicais, de que são feitas essas diferenças se não simplesmente hábitos, práticas, valores ou ideias? No momento estou lendo a etnografia Earth Beings, por Marisol de la Cadena. Ela é mais uma pessoa que está contribuindo para o debate sobre a virada ontológica aqui nos EUA e também no Peru, e acho que o livro dela tem umas reflexões importantes. Ela diz que etnografia não só ajuda a entender a vida (ou mundo) dos nossos interlocutores, mas também ajuda a descobrir o que não entendemos da vida dos outros, e esse não-entendimento não é só baseado em diferenças de hábitos ou ideias (ou cultura). Ela fala que quando detectamos uma diferença radical (ou uma diferença ontológica), no percurso de trabalho etnográfico, muitas vezes a gente nem entende o que é a raiz dessa diferença porque ultrapassa ou excede nosso entendimento. Sentimos que existe, mas não sabemos do que é “feito”. E o mesmo acontece com os nossos interlocutores, claro. No processo, acabamos tentando criar um entendimento comum e sempre incompleto, sempre imperfeito.

Embora as nossas cosmologias podem ser bem diferentes, um soco na cara não deixa de ser um soco na cara. Violência e certas formas de poder não vão distinguir muito bem entre diferenças ontológicas. Talvez sejam interpretados de diferentes formas, mas esses mundos diferentes são interligados de formas que são bem importantes e consequentes. Lucas Bessire escreveu uma etnografia fascinante titulada Behold the Black Caiman, que critica a virada ontológica por ignorar os circuitos de poder global que tem impactos marcantes – materiais, físicas, ecológicas, econômicas. Ele é da opinião que a virada ontológica acaba sendo um debate filosófico entre acadêmicos em vez de enfrentar os desafios de criar espaços comuns para acomodar as pessoas que muitas vezes são negadas um lugar na mesa. Eu acho que a virada ontológica pode ter consequências políticas importantes, mas eu também reconheço essa crítica – as lições da virada ontológica nem sempre acabam sendo aplicadas de formas bem óbvias.

Por último, quais são as consequências políticas de aceitar ontologias que têm diferentes noções sobre o que constitui fatos, provas, evidências, etc., sem abrir espaço para outras ontologias que consideramos extremamente perigosas? (Eu estou pensando nesse momento da política do Trump e a ontologia dos fãs dele que estão ganhando cada vez mais atenção e poder na arena pública nos Estados Unidos.) Como Túlio já falou — “Será preciso ter cuidado com os critérios que se usa para reconhecer a igual validade de um outro mundo, para que não caiamos num relativismo superficial: aquele que diz que todo conhecimento é válido, mas não questiona a relação de dominância de um deles com o resto.”

Eu também tinha algumas reflexões sobre o problema de considerar a ontologia “dos modernos” uma coisa monolítica. Por exemplo, Matei Candea tem observações bem interessantes sobre a maneira em que pesquisadores trabalhando com meerkats falam da vida mental desses animais no trabalho de campo, que é bem diferente do jeito que escrevem para um público científico …sugere que a ontologia naturalista não é bem como a gente pensava.

 

Túlio: Concordo plenamente que a virada ontológica corre o risco de acabar sendo um debate filosófico entre acadêmicos, e eu também sinto uma certa resistência em aceitar debates que estão “na moda”, digamos, pois tendem a deixar de lado as vozes e as vidas daqueles que os inspiraram. Mas, ao mesmo tempo, me parece que esse debate não se reduz a uma conversa entre intelectuais. Pelo contrário, acredito que esse debate está enraizado em conflitos políticos que estão inevitavelmente atrelados ao material.

Um exemplo que eu vi recentemente na minha pesquisa sobre Belo Monte é o da resposta de uma secretária executiva do consórcio de construtoras da represa à insinuação de um jornalista de que a obra ia “matar a cultura do índio”:

“Nós não estamos matando a cultura do índio, a cultura não morre, a cultura vai continuar a mesma. Só precisamos reassentar essas pessoas… O que a gente precisa? Tirar eles de um lugar e dar a eles outro de igual valor. A cultura está aqui (apontando para o coração), a cultura não está onde vivo.” (Do documentário, À margem do rio Xingu)

Essa resposta me deixou indignado pela facilidade com que as autoridades falam em remover pessoas. Mas eu não acho que seja uma questão de más ou boas intenções por parte das autoridades — eu até acredito na sinceridade da resposta da secretária. Na verdade, o problema maior, acredito, está no fato de aceitarmos a divisão entre cultura e espaço no nosso modo de viver, nas nossas políticas. Não só as construtoras e o estado, mas também muitos daqueles que foram críticos de Belo Monte aceitaram a remoção de pessoas com a condição de que indenizações justas fossem garantidas (o que infelizmente não aconteceu, tampouco). Aí a gente pergunta — como se define justo? Houve vários casos de pescadores que foram deslocados para periferias da cidade, receberam um salário de indenização por um tempo, mas perderam a possibilidade de manter seus modos de vida.

Eu acho o trabalho de Marisol de la Cadena que você mencionou muito interessante porque ela tenta escrever de uma maneira que leva em consideração o perigo de recriarmos essas divisões entre espaço e cultura. Por exemplo, ela põe o “Ausagante” no meio do texto dela como uma entidade, um ser-terra (earth being), de acordo com a cosmovisão andina, e não como uma montanha (assim descreveríamos Ausangate na nossa cosmovisão moderna). Pelo o que eu entendi do trabalho dela, é menos importante sabermos do que se constituem as diferenças radicais entre nossa ontologia e as outras, do que habituar os nossos sentidos a não domesticar essas diferenças através dos nossos conceitos, os quais pressupomos universais ou objetivos.

Em geral, eu acho que se está recorrendo à ideia de “outros mundos” nesse debate, sejam eles mundos humanos e/ou não-humanos, para poder construirmos uma alternativa à divisão entre mente e corpo, cultura e natureza, e todas suas ramificações, que opera no cerne do mundo moderno, e que legitima a instrumentalização de tudo o que faz parte do lado “natureza” dessa dicotomia.

Eu concordo com a sua sugestão, Nick, de que talvez não seria uma questão de ontologias/mundos/realidades diferentes, mas sim de entender a realidade de diferentes perspectivas devido a diferentes histórias, hábitos e ideias que adotamos. No entanto, “cultura”, “at the end of the day” como se diz em inglês, recria a dicotomia entre o material e o ideal, o que permite o tipo de violência que vemos nessas remoções forçadas de pessoas, e também a violência contra todo o não-humano. Um soco na cara é um soco na cara, não há sombra de dúvida, mas é importante estarmos abertos ao fato de que necessidades materiais podem abarcar mais do que simplesmente a integridade física, individual. O que ocorre quando passamos a entender o espaço como extensão do corpo, por exemplo?

“Mundos” ou “realidades” ou “ontologias” múltiplas são ideias que parecem meio birutas mesmo. Tem algo aí que me deixa insatisfeito, talvez seja o fato de ser uma linguagem meio simplista, não sei. Mesmo que não sejam ideias adequadas, acho que são um passo na direção de tirarmos da posição hegemônica esse modo de viver o mundo tão habituado à violência contra entidades que ele considera “outras”. Claro que há muitas questões aí de disputa de poder, capitalismo e economia, etc, que também fazem parte do cerne da questão, com as quais não sei exatamente como lidar.

Um ponto rápido sobre o problema de tratarmos a ontologia moderna como monolítica: também concordo plenamente. Contudo, acredito que é uma reação, talvez politicamente estratégica, tratar a modernidade assim. Eu gosto muito da explicação do antropólogo Talal Asad sobre esse ponto. Ele não discorda do fato de a modernidade também ser múltipla, mas diz que ela tende a se apresentar com uma cara só onde se impõe.[2]

 

Nick: Eu gostei muito desse comentário sobre o trabalho de Marisol de la Cadena. Ainda estou lendo o livro dela, mas essa reflexão do Túlio é essencial: “é menos importante sabermos do que se constituem as diferenças radicais entre nossa ontologia e as outras, do que habituar os nossos sentidos a não domesticar essas diferenças através dos nossos conceitos, os quais pressupomos universais ou objetivos.”

Essa observação leva a gente para o início das nossas conversas sobre a necessidade de reconhecer outras formas de entender o mundo (e viver no mundo), sem reduzi-las numa linguagem da ciência moderna ou da filosofia ocidental, ou até o linguajar dos antropólogos bem-intencionados, mas meio tolos (como eu). Por exemplo, estou pensando nessa tendência de insistir que curupira é um mito que serve como “um sistema de manejo sustentável”, ou alguma coisa assim. Quando os modernos não negam a realidade dos outros, muitas vezes insistem que obedece a lógica deles!

Eu ia adicionar que o livro Earth Beings ensina sobre os problemas de domesticar essas diferenças com os nossos conceitos, mas também oferece a possibilidade de experimentar com essas formas de pensar e ser no mundo, não de adotar essas formas como nossas – cultural appropriation at its finest – mas de cultivar outras formas de sentir, outras formas de senso.

Também gostei muito desse comentário: “O que ocorre quando passamos a entender o espaço como extensão do corpo, por exemplo?” Eu acho que a virada ontológica está abrindo espaço para reconhecer a legitimidade de uma diversidade de ontologias. O desafio agora é de criar condições para que mais dos “modernos” possam experimentar outros mundos ontológicos sem colonizá-los, ou como os Zapatistas costumam dizer — um mundo onde caibam muitos mundos. A questão é como é que a gente faz isso? Quais são as condições que precisamos criar ou cultivar? Eu estou achando que vamos precisar de mais artistas ontólogicas do que cientistas sociais.

 

Túlio: Sobre a necessidade de se reconhecer outras formas de entender e viver o (ou um?) mundo sem colonizá-los e reduzi-los a termos ocidentais — eu mesmo me pergunto todos os dias se é possível evitar ser cúmplice desse processo. Outro dia participei de um seminário em que lemos o livro recente de Danowski e Viveiros de Castro (“Há mundo por vir?”, “The Ends of the World” em inglês), que o próprio Bruno tinha me indicado, e uma das críticas que se levantou foi o fato de cosmologias diversas dos povos da Amazônia serem reduzidas a uma só essência, que é contraposta à cosmologia ocidental. O próprio Viveiros de Castro reconhece esse fato nas suas notas de pé de página. Esse reducionismo é justificável? Ou será que ver isso como reducionismo é perder de vista um objetivo maior? Um deles sendo, talvez, o de reconhecer e trabalhar com as contribuições filosóficas dos povos indígenas, como diria Viveiros de Castro. Nesse sentido, eu gostaria de perguntar — qual é o papel da antropologia para vocês?

Nick, concordo que precisamos de mais artistas ontológicas, e urgente! Parte do problema é a rigidez do meio acadêmico, e talvez seja impossível transformá-lo a ponto de que ele deixe de ser instrumento colonizador de alteridades se mantivermos o formato atual. Eu li uma reportagem na última semana sobre a primeira tese de doutorado em formato de história em quadrinhos aprovada nos EUA há poucos anos, e que lida justamente sobre a necessidade de flexibilizar a linguagem da produção acadêmica para podermos transmitir realidades mais complexas (a reportagem foi feita no Brasil, inclusive:

https://revistacult.uol.com.br/home/nick-sousanis-desaplanar/)

Esperamos ter contribuído um pouco com a proposta de conectarmos, enquanto pesquisadores, debates acadêmicos com questões cotidianas, através de um formato menos rígidos do que aqueles que são dados como formas válidas de produção de conhecimento no nosso meio. No entanto, os caminhos para descolonizarmos o meio acadêmico são longos. Concluímos este diálogo, temporariamente, sugerindo que é necessário fazermos uma virada ontológica nas nossas formas de discutir, representar e compartilhar conhecimento. O que você e eu podemos fazer diferente?

 

Bruno Caporrino é mestrando em antropologia pela Universidade Federal do Amazonas, Brasil. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, USP. Assim que graduou-se, atuou como indigenista no Amazonas, pela Operação Amazônia Nativa — Opan, junto aos Katukina do Biá e depois, entre janeiro de 2010 e dezembro de 2016, morou e atuou como indigenista junto aos Wajãpi do Amapari, estado do Amapá, pelo Instituto de Pesquisa e Formação Indígena — Iepé, onde pôde, entre outras coisas, contribuir com a consolidação do Plano de Gestão Socioambiental Wajãpi (coordenando o processo), do pioneiro Protocolo de Consulta e Consentimento Wajãpi e com a condução do processo de consulta prévia que se ainda desenrola. Desde janeiro de 2017 reside em Manaus, onde faz o mestrado em Antropologia Social sobre o Protocolo de Consulta Wajãpi pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas. Membro do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena, Neai, desde então.

 

Bruno Caporrino é mestrando em antropologia pela Universidade Federal do Amazonas, Brasil. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, USP. Assim que graduou-se, atuou como indigenista no Amazonas, pela Operação Amazônia Nativa
Nick Kawa é professor de antropologia da Ohio State University, USA. Os seus temas centrais de pesquisa são etnografia da Amazônia rural e urbana, paisagens antropogênicas, manejo de agrobiodiversidade e o Antropoceno.
Túlio Zille é doutorando em ciência política pela Universidade Johns Hopkins, USA. Seu projeto de pesquisa atual se concentra no conflito entre os discursos de desenvolvimento em torno à construção da hidrelétrica de Belo Monte e os modos de vida que esses discursos não reconhecem como válidos ou existentes.

 

[1] Nick a define em sua palestra como “a serpente do folclore amazônico”.
[2] “Many critics have now taken the position that ‘modernity’ (in which secularism is centrally located) is not a verifiable object. They argue that contemporary societies are heterogenous and overlapping, that they contain disparate, even discordant, circumstances, origins, valences, and so forth. My response is that in a sense these critics are right… but that what we have here is not simply a cognitive error. Assumptions about the ‘integrated’ character of modernity are themselves part of practical and political reality. They direct the way in which people committed to it act in critical situations. These people aim at ‘modernity’, and expect others (especially in the ‘non-West’) to do so too. This fact doesn’t disappear when we simply point out that ‘the West’ isn’t an integrated totality, that many people in the West contest secularism or interpret it in different ways, that the modern epoch in the West has witnessed many arguments and several irreconcilable aspirations. On the contrary, those who assume modernity as a project know that already. (An aspect of modern colonialism is this: although the West contains many facets at home it presents a single face abroad.) The important question, therefore, is not to determine why the idea of ‘modernity’ (or ‘the West’) is a misdescription, but why it has become hegemonic as a political goal, what practical consequences follow from that hegemony, and what social conditions maintain it” (Do livro Formations of the Secular)
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