Ailton Krenak no CinEco 2018: discurso na íntegra

Boa tarde!

É um privilégio e uma honra estar aqui neste Fórum que reúne pessoas de tantos lugares e com a experiência que eu tive oportunidade, hoje de manhã, de ter uma visão, ao menos, do trabalho que cada um de vocês realiza. É um privilégio, também, exagerado, que eu tenha tido muito mais tempo do que cada um de vocês teve pra falar aqui de manhã. Agradeço ao convite de estar aqui.

Tem um documentário que vai ser exibido na mostra, que me dá a oportunidade de apresentar um pouco mais das atividades, das ações que nós tivemos engajados nos últimos 30, 40 anos nessa trilha, e seguimos cada um com a sua realidade local / regional, e que reflete as nossas próprias realidades, de cada país, de cada continente. Fico muito animado com a perspectiva de que o audiovisual vem dessa produção do cinema voltado pra educação, voltado para preparar nossas as comunidades ao desafio de viver e compartilhar os recursos dos lugares onde nós vivemos, sem pôr em choque as nossas experiências de vida localmente, com a possibilidade de suprir as nossas necessidade de comer, habitar, vestir. E essas necessidades, elas são muito mais estridentes; elas gritam mais naqueles lugares do mundo onde milhões de pessoas disputam os recursos de habitar, comer, beber água, ter atendimentos dos serviços essências pra que uma população viva com alguma segurança.

Quando nós pensamos em boa vida e vida boa, nós nos referimos a dois extremos: a boa vida e a vida boa não andam juntas. Eu falei milhares, mas talvez seja na casa dos bilhões, bilhões de pessoas estão entre esses extremos de boa vida e vida boa. A minha infância eu vivi à margem de um rio que dava pra aquela pequena comunidade de onde eu vim, a boa vida, porque nós tínhamos água, tínhamos peixe, tínhamos, no corpo do rio, abundantes alimentos e muitas coisas que nós usávamos pra construir o nosso mundo bom. Suficiente!

Esse rio, no século XX, foi consumido ao longo de 70 anos. Ele foi, praticamente, posto em estado de suspensão de sua capacidade vital; ele está em coma! Um rio que foi afetado por uma surpresa de uma barragem de mineração na cabeceira desse rio e que se estendeu por 650 quilômetros do corpo do rio, pasteurizando esse rio de um material tóxico, que tornou o rio, de uma hora pra outra, inviável pra uma população de 1 milhão e 600 mil pessoas que viviam na bacia desse rio doce. O Rio Doce! Ele fica em uma região do Brasil que é o Estado de Minas Gerais. Das altas serras de Minas Gerais até o litoral do Espírito Santo, o corpo desse rio, esse corpo d`água inteiro ficou, por um longo tempo, ainda, impedido do contato com os animais, com as pessoas, e, inviabilizou uma boa vida para várias comunidade de ribeirinhos; comunidade que não estão integradas nesse sistema amplo que nós conseguimos entender que é onde operam as empresas, onde o capital atua de maneira franca e livre (ou franquiada e livre), a ponto de afetar a base de vida de comunidades que ainda não foram integradas ao sistema global da economia mas que são expulsos dessa possibilidade antes mesmo dela se confirmar.

Então, em muitas regiões do nosso planeta, milhões de pessoas se quer tem a escolha; a escolha sobre se vão buscar um caminho sustentável ou se vão experimentar uma realidade cotidiana de perda das suas fontes de subsistência, de coleta, de caça. Ainda tem muita gente na terra que vive da coleta e da caça. Nós não somos uma população planetária, minimamente equalizada no sentido do acesso e do consumo dos recursos que a terra propicia.

Uma boa região, uma boa parte do nosso planeta, tem água abundante e as pessoas que vivem nesses lugares com água natural, pura e abundante acreditam que vão ter água natural pura e abundante para sempre. Na sua ingenuidade vivem uma circunstância temporária de bem estar e que acreditam que vão poder continuar compartilhando essa riqueza; não sabem que as políticas globais são dirigidas à uma espécie de fechar um circuito sobre os recursos da natureza no interesse privado, não no interesse comum.

A minha experiência de ativismo é nesse rés do chão, é no meio das pessoas que perdem os rios, perdem as fontes naturais, perdem acesso as coletas, perdem acesso à pesca em algumas bacias de rios onde os peixes já não fazem mais o ciclo de reprodução deles porque as barragens estão cortando o corpo do rio.

Tenho uma experiência que eu vivi com uma comunidade de caçadores e coletores que viviam na região Centro Oeste do Brasil, que sendo um povo originário de lá, um povo indígena, eles compartilhavam território que o estado brasileiro tinha delimitado, tinha demarcado um território para esse povo que era o povo Xavante. Até a década de 60 / 70 eles eram só caçadores e coletores, eles não consumiam nenhum produto daqui do mercado; eles consumiam os que eles tinham dentro do território deles no Cerrado, que é uma espécie de savana.

Na década de 80, os velhos procuraram a mim e a outras pessoas de um coletivo que eles integram ainda, e que naquela época a gente estava organizando algumas atividades de conservação, conservação de vida selvagem e eles me disseram: “parente nós não temos mais caça, antes a gente saía andava um dia, dois dias e encontrava caça, agora nós atravessamos o território inteiro e não achamos mais caça. Como nós não estamos achando mais caça, nós estamos comprando arma de fogo pra tornar mais eficiente a nossa atividade de caça e coleta”. Eu disse pra ele: mas vocês vão mudar a base da sua cultura? Vocês são caçadores e coletores! Se vocês começarem a usar arma de fogo, vocês vão acabar mesmo, vão aniquilar com as espécies que sempre conviveram com vocês; vamos pensar em outra coisa que nós podemos fazer. E eles disseram: “mas os nossos vizinhos estão derrubando a floresta e estão plantando soja, e eles estão cercando cada vez mais os nossos territórios, daqui a pouco não tem mais nenhum corredor, não vai ter mais bicho vindo de lugar nenhum”. Então eu disse que isso dava uma razão a mais para eles arrumarem uma maneira de conviver com aqueles que sempre supriram as suas necessidades aqui dentro.

Eu imagino que esse seja um dos exemplos mais extremos de busca de sustentabilidade. Na terra, no planeta nós todos estamos, de alguma maneira, vivendo uma situação limite em que nós estamos exterminando tudo o que deu suprimento pra nossa vida, seja água, seja a floresta, seja o modo de vida, a cultura. E a cultura que nos nossos filmes abordam o tema do meio ambiente, que ainda parece mais como uma ilustração da tragédia, ela deveria ser percebida com mais ênfase porque se nós perdermos a cultura, nós não vamos saber o que fazemos no planeta terra. Os povos que ainda tem memória, que guardam alguma tradição, que sabem como tocar a terra, eventualmente como falar com um pássaro ou com uma árvore, eles podem ter muito para ensinar às novas gerações, especialmente as grandes concentrações de populações que vivem em regiões urbanas e que não tem mais esse contato com a natureza e que percebe a natureza como alguma coisa governável.

A ideia de fazer gestão da natureza, uma ideia que foi muito estimulada, inclusive pelos Programas das Nações Unidas. A ONU mesmo, em alguma época, estimulava muito que se fizesse gestão da natureza, o que é uma pretensão absurda, porque nós somos natureza e nós não conseguimos fazer gestão nem de nós mesmos, então como nós vamos fazer gestão da natureza? A natureza é que faz nossa gestão. A natureza nos gera, nos cria!

Aquelas culturas, que de alguma maneira no século XX, foram negligenciadas porque eram percebidas como culturas, muito induzidas por fenômeno da natureza, eram muito influenciadas por ciclos da natureza; aquelas culturas tinham muito a dizer sobre isso que são as mudanças climáticas. As mudanças climáticas só despertaram a atenção de algumas pessoas depois que o painel que os cientistas montaram, dizia que estavam havendo essas mudanças. Mas os povos que estavam vivendo, sendo expulsos dos seus lugares de origem e gritando nas suas migrações, eles estavam exatamente dizendo: a terra está mudando e a nossa possibilidade de continuar vivendo nesse lugar; está ameaçada! Mas essa observação só foi admitida, quando ela se constituiu em documentos e informações que podem ser debatidas, e mesmo assim elas continuam sendo desprezadas por algumas autoridades, por algumas pessoas que tem poder de governança, que tem poder de influenciar politicamente as nossas decisões e que de uma maneira, absurdamente alienada, dizem que nós não temos mudanças climáticas, que não tem uma mudança.

Então, esses extremos daqueles povos que vivem a experiência real da migração, que vivem a experiência real de terem que se deslocar de um continente para o outro, ela é tão dramática que não deveria deixar dúvida da urgência que nós temos de usar todos os recursos de comunicação, de comoção mesmo (porque é isso que a arte faz), para que as pessoas, em todos os lugares, pudessem ter algum sinal acerca da gravidade do tempo que nós vivemos em todos os continentes, em qualquer lugar do planeta; o que nos põe todos naquela condição de habitar uma casa comum.

A primeira vez que eu ouvi a expressão, casa comum, dito por uma pessoa que podia influenciar opiniões, foi do presidente Mikhail Gorbachev; estava anunciando a gravidade da situação no final da década de 80 (ou começo da década de 90), ele chamou a atenção sobre a nossa casa comum. Aquele termo que ele chamava a atenção, da nossa casa comum, ele é tão atual quanto naquele dia que ele pronunciou, que nós precisamos cuidar da nossa casa comum, e de lá até agora poucas mudanças de fato aconteceram no sentido de equipar, de dar poder às pessoas, em diferentes lugares para realizar essas mudanças necessárias.

A educação que as vezes é invocada como uma das armas que devemos tomar nesse sentido, ela tem sido negligenciada por muitas agências, instituições e governo falando de educação mas a maioria das pessoas não consideram que essa educação envolve algum sentido afetivo; acham que a educação é alguma coisa que você vai fazer com a cabeça do outro e não com o coração. E, se nós não mudarmos o coração das pessoas, as cabeças das pessoas não vão a lugar nenhum. Nós precisamos nos educar para outros termos. A declaração internacional dos direitos dos povos nativos, dos povos indígenas, foi um documento muito importante que se produziu nos últimos 20, 30 anos, e que virou um documento que governos regionais podem aderir a esses princípios dessa declaração e que ajuda de alguma maneira a uma política real de proteção de áreas, de territórios que ainda são refúgio de vida humana compartilhada com os seres que vivem nesses ambientes, que vivem nesses biomas.

Para a maioria das pessoas os povos nativos vivem em lugares remotos da terra por um acidente, não entendem que essa gente que vive nesses lugares remotos, eles estão nesses lugares a muito tempo e por uma conexão profunda com cada um desses lugares; com o sentido de que esses lugares são lugares sagrados. Há muito mais lugares sagrados na terra do que Jerusalém, Roma, eventualmente, ou Atenas, que são lugares maravilhosos mas junto com esses lugares, há muito outros lugares na terra que deveríamos cultuar, cultivar, como esse lugar que pra mim sempre foi um lugar mítico que agora está me dando a oportunidade de estar aqui com vocês a convite desse maravilhoso CineEco Seia e do Fórum que, pelo que eu vi é o primeiro Fórum Internacional, reúne a cada um de nós aqui, nessa ocasião tão especial de compartilhar nossas experiências de origem das nossas ações, e como que nós conseguimos até agora fazer esse caminho de nos mudar, mudar a nós mesmo e ver se na mudança em nós a gente possa refletir alguma mudança no nosso em torno.

As comunidades que às vezes são mencionadas nos documentos ou em nas nossas falas, essas comunidades não são ficção, são realidades muito, muito fortes, são realidades de vida de pessoas vivendo em diferentes biomas, em diferentes ecologias no planeta e que se nós conseguirmos criar alguma possibilidade de acesso dessas pessoas aos meios que comunicam, que passam informação, seria uma importante ação dos festivais tornar-se mais permeáveis por comunidades nas suas diferentes regiões.

Eu vi que muitos dos festivais, que foram brevemente mostrados aqui, tem uma forte conexão com seus locais, com as suas comunidades, mas eu acredito que os festivais podiam ser muito mais envolvidos pelas realidades locais. As comunidade de cada região onde cada um de nós estamos, elas têm o que dizer e seria interessante que elas pudessem disseminar essas experiências nos festivais nas suas regiões. No Brasil nós temos, eu não vou me aventurar de dizer que nós temos uma centenas de festivais regionais, de mostras de festivais com essa missão de difundir nas nossas comunidades a ideia e os conceitos que podem estender a nossa permanência aqui na terra de uma maneira mais equilibrada com cada um desse lugares, que não vai ser a mesma coisa numa montanha e num vale ou no litoral na beira do mar. A modulação do jeito que nós vamos estar em cada um lugar desses, ela não vai sair de nenhuma resolução global, ela vai sair das experiências de locais, de cada lugar.

Há quatro anos atrás, eu que já vinha fazendo atividades direta com a minha comunidade e com outras comunidades vizinhas, achei que a gente podia fazer uma mostra de cinema com os realizadores locais, então nós fizemos uma mostra de cinema que nós chamamos de Aldeia, aldeia no sentido de local, Aldeia ST. Fizemos a primeira amostra, exibindo 56 filmes, todos de realizadores indígenas de diferentes etnias do Brasil. Foram 56 filmes, desde curta até longa e todos documentando alguma realidade local. Foi uma experiência tão interessante que no ano seguinte a gente conseguiu fazer a segunda mostra, em São Paulo, um grande centro urbano e com muito público, teve um sucesso relativo que repercutiu em todas as mídias locais, na capital do Brasil. E dois anos depois, essa mostra ganhou a configuração de uma Bienal de Cinema. Eu sou um dos realizadores de uma dessas mostra, e no caso essa se chama Bienal de Cinema Indígena que começou exibindo 56 filmes, depois 76 e agora tem mais de 100 filmes pra próxima oportunidade de exibição. As autorias dessas obras, elas são desde pessoas que vivem em aldeias no Norte do Brasil na fronteira com a Venezuela, no Acre, em Rondônia, no Mato Grosso, espalhados pelo Brasil inteiro. Os moços, os autores dessas obras, a grande maioria são mulheres; muitas mulheres indígenas que usam esses dispositivos, essas coisinhas que se proliferaram, não precisa de uma câmara gigante; do tamanho daquela ali já faz um filme, alguns tão fazendo filme com esses aparelhinhos. Essa disseminação das tecnologias, elas facilitaram a operação de transferir do lugar, quase que simbólico, lugar quase que privilegiado, se não tem outra palavra pra dizer, daquele realizador, daquele autor da obra. Agora o realizador pode ser qualquer pessoa que está em algum lugar que tem uma história pra contar. Eu acho que isso torna muito mais possível a nossa missão dos festivais admitirem nas suas mostras, obras que não estejam limitadas a um julgamento estético, a uma apreciação estética, porque se vocês (se as pessoas curadores) vão selecionar, somente obras que, tem, que atende aquele critério, quase que o principal critério seja estético, vocês vão excluir histórias que tem tanta importância quanto a compreensão de que há mudanças climáticas e que elas estão fora do painel do clima. É claro que a arte tem o poder de contagiar e criar mudanças, mas a arte não precisa ser tão autoritária no sentido de excluir as outras mensagens que não são só estéticas.

Eu fico muito honrado e digo a vocês do privilégio de fazer essa comunicação com vocês e o tratamento que os meus amigos, desde o anfitrião que me convidou para eu estar aqui, até os amigos todos que me acolheram aqui, me dão o sentimento de que eu faço parte dessa rede de pessoas que estão interessadas em promover um mundo melhor pra nós todos. Eu fico muito agradecido de me ouvirem com muita atenção.

Obrigado.

 

Ailton Alves Lacerda Krenak, mais conhecido como Ailton Krenak, é uma das mais importantes lideranças do movimento indígena no Brasil, com reconhecimento nacional e internacional. Nasceu em 1953, na região do vale do Rio Doce (MG), território do povo Krenak – nome que carrega consigo, um lugar que se encontra destroçado pela mineração. Em sua trajetória, juntou forças com Chico Mendes pela defesa dos direitos indígenas na Constituição de 1988 e tem desenvolvido várias atividades no movimento socioambiental, como a promoção da Aliança dos Povos da Floresta, que reúne comunidades indígenas e ribeirinhas na Amazônia.

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