O Brasil sem números, a Amazônia sem asas
“A gente tem maior chance de perder a fauna silvestre do Brasil pro tráfico do que pras mudanças climáticas”, afirma Antônio Carvalho, especialista em tráfico de vida selvagem
Por Nayra Wladimila, João Felipe Serrão e Marcos Colón
É de manhã quando Xaropinho, um papagaio do mangue (Amazona ochrocephala), de plumagem predominantemente verde por todo o corpo, coroa amarelada e bico cinza, escuta a pequena portinhola de seu viveiro abrir. Ele, que estava empoleirado em um fino cabo de madeira, pula pelos próximos cabos até alcançar a saída. À sua frente, a médica veterinária Natália Assis aguarda com um pequeno pedaço de banana. Assim começa o dia 10 de julho de 2025 no Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Selvagens (CETRAS) da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) em Belém/PA, onde a ave mora desde que foi encontrada em uma embarcação para ser traficada.
O CETRAS amplia o Ambulatório de Animais Selvagens da UFRA, criado em 2013 para atender animais encaminhados por órgãos ambientais e parceiros, com atuação de alunos de graduação e pós-graduação das áreas biológicas e veterinárias. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.
O CETRAS é a ampliação do Ambulatório de Animais Selvagens da UFRA, que existe desde 2013 para atender animais encaminhados por órgãos ambientais, instituições parceiras e as próprias espécies que circulam pelo campus. Muitos de seus colaboradores são os próprios alunos de graduação e pós-graduação das áreas de Ciências Biológicas, Medicina Veterinária e Zootecnia.
Atualmente, 20 animais residem no Centro, que está dentro da Área de Preservação Ambiental (APA) da Região Metropolitana de Belém. Entre os espaços dedicados ao cuidado específico de diferentes espécies, o vento realça a atmosfera tranquila, que parece harmonizar com o suave balanço dos galhos da mangueira e com os cachos de flores vermelhas de ixora, aquelas pequenas flores em forma de estrela.
Rabugento, Xaropinho solta palavrões com frequência ao longo do dia. Tenta bicar Natália. A veterinária explica que essa é uma ferramenta de defesa, e que o vocabulário é reflexo de como Xaropinho havia sido tratado antes.
A ave pula porque suas asas estão cortadas, indicando que não era mantida dentro de uma caixa pelos seus algozes. Se alimentando apenas de farinha, ele chegou ao CETRAS muito magro e debilitado, até mesmo com ácaros. Era 22 de abril de 2025: Xaropinho passou pelo procedimento padrão do local, que envolve sedação, identificação da espécie e até cirurgia, quando necessário.
Todos os dias, ele é pesado e suas fezes são observadas. Periodicamente, é vermifugado, toma medicamentos contra parasitas e tem o sangue coletado. Há também os momentos de “ir à escola”: semanalmente, os estagiários do Centro exploram maneiras diferentes de oferecer alimentos à ave, explorando a sua cognição e reduzindo o seu estresse, pois possivelmente passará o resto da vida longe do meio selvagem.
Xaropinho, que recebeu esse nome porque naquele mês de abril era a vez de batizar os animais novatos com a letra “X”, faz duas refeições ao dia, pela manhã e pela tarde. Os potinhos são preparados pelo setor de Nutrição, que planeja dietas apropriadas à cada espécie e as adapta conforme a evolução no seu peso, cortando os pedaços do tamanho adequado para cada animal.
A equipe também se reveza para comprar os alimentos e fazer a limpeza diária dos viveiros, incluindo aos finais de semana. O papagaio sai pela portinhola duas vezes ao dia para tomar sol e banho. É o seu grande momento de lazer e interação com os humanos que cuidam dele.
“É um grande privilégio trabalhar com esses animais. Aqui temos quem tenha sido resgatado ainda filhote. As aves se comunicam mais, algumas vocalizam, os papagaios falam bastante. Mas as outras espécies são mais silenciosas, pois a maioria delas evoluiu para não se mostrar vulnerável na natureza. Aprendemos sobre empatia, tentando compreender suas necessidades e captar os seus sinais mais silenciosos de desconforto”, comenta a veterinária.
Enquanto fala, o papagaio aproveita para caminhar pelo seu braço e observar as aves vizinhas: um casal de tucanos de papo branco, Ycaro e Yara (Ramphastos tucanus), também com as asas cortadas e que ganharam peso desde que foram resgatados. Cada um deles mora em um viveiro, separados por uma grade, dentro de um dos blocos do Centro.
A sua vizinha mais próxima é a maracanã-verdadeiro Xanaína (Primolius maracana), que está tão debilitada que suas penas não crescem direito mesmo com a dieta feita pela equipe, que ainda não tinha fechado seu diagnóstico. Recolhida no viveiro, ela não gosta de aparecer e sua timidez, que contrasta com a gulodice do vizinho, já foi tema de publicação nas redes sociais.
Apesar de suspeitarem que essas e outras aves tenham passado pelas mãos de vendedores ilegais, os cuidadores não têm certeza sobre suas origens. As informações se desencontram até mesmo em relação ao órgão que trouxe o papagaio: o Batalhão da Polícia Ambiental, apontado por eles, afirma que não há registro de encaminhamento à Universidade no período mencionado.
“Às vezes recebemos apreensões de aves sem sabermos se eram de vida livre ou de cativeiro. É muito importante termos esse histórico, que às vezes não vem, para avaliarmos a possibilidade de soltura. Animais criados em cativeiro não podem ser simplesmente libertados, pois isso comprometeria sua sobrevivência”, explica Natália Assis.
“A estrutura logística da Amazônia Legal joga a favor do traficante”
Xaropinho pode se considerar um sujeito de sorte. 90% dos animais traficados morrem durante o seu transporte. A informação é de Antônio Carvalho, especialista em tráfico de vida selvagem da WCS Brazil, instituição fundada em 2003 e voltada à conservação da Amazônia e do Pantanal.
Mantidos em malas com fundo falso, caixas de papelão, pacotes de jornais, nos porta-malas de automóveis e até dentro das roupas dos criminosos, os animais costumam ser drogados, torturados e, às vezes, mutilados, para não chamarem a atenção da fiscalização. “Temos muito mais chance de perdermos nossa fauna para o tráfico do que para as mudanças climáticas”, alerta Carvalho.
Para ilustrar a urgência da perda de biodiversidade causada pelo tráfico ilegal de espécies, Carvalho cita a epidemia de caça furtiva de elefantes na África, destinada a abastecer o mercado ilegal de marfim. Essa epidemia fez com que a população desses animais diminuísse 20% no continente em apenas nove anos (2006–2015), passando de mais de 500 mil indivíduos para cerca de 415 mil, segundo um relatório da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) publicado em 2016. A Tanzânia, cuja economia depende em grande medida do turismo de fauna, registrou uma queda de 60% em sua população de elefantes. A extinção total desses animais só foi evitada graças à divulgação de dados alarmantes e à implementação de políticas públicas de conservação e de combate à caça furtiva.
Outra preocupação do especialista diz respeito à transparência sobre o que acontece com os animais resgatados pelas autoridades, cujo destino às vezes é pouco claro.
Ele cita como exemplo uma operação conjunta entre as polícias Civil e Militar, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Os dois últimos são os principais agentes públicos responsáveis pela fiscalização e manutenção da biodiversidade no Brasil.
A apreensão de dez macacos, de diversas espécies (Lagothrix sp. e Cebus sp.), que estavam amarrados a pedaços de ferro em uma chácara em Pauini, Amazonas, aconteceu no final de janeiro deste ano. Quatro dos animais já estavam mortos. Os seis sobreviventes, que deveriam ser encaminhados ao Centro de Triagem de Animais Silvestres de Rio Branco/AC, só foram entregues em maio. Para Carvalho, “essa discrepância aponta para uma possível lacuna entre os procedimentos divulgados e o destino ou manejo real dos animais apreendidos”.
A história se repete diariamente. No Pará, uma operação de fiscalização realizada pela Polícia Militar Ambiental resultou no resgate de 225 canários-da-terra (Sicalis flaveola) transportados em uma embarcação em Óbidos, no oeste do Estado. Os pássaros estavam escondidos em sacos de lixo, sem qualquer tipo de ventilação, água ou alimento. O caso aconteceu em agosto de 2025.
Mesmo depois de resgatados, o caminho seguido por animais traficados ainda é arriscado: o seu principal destino, os CETAS, são burocráticos para aceitá-los, sofrem com falta de investimentos e estão sobrecarregados, transformando-se em depósitos de animais. Os Centros são administrados pelo Ibama, que acompanha a quantidade de aves abrigadas em cada um.
O mais próximo de Belém, em Benevides-PA, sequer está funcionando, deixando o acolhimento a cargo de instituições como a UFRA, bem como “zoológicos, criadores e instituições de pesquisa que tenham capacidade técnica de receber e tratá-los inicialmente até a destinação final, ou encaminhamento para outros CETAS pelo Brasil”, conforme explica o Ibama.
De acordo com o órgão, mais de 22.200 espécies silvestres foram apreendidos e encaminhados aos CETRAS apenas em 2024.
O consultor técnico do Grupo de Enfrentamento aos Crimes Ambientais (GECAM) da Polícia Rodoviária Federal, Paulo Henrique Demarchi, explica que os abrigos do Ibama concentram a fauna resgatada no Norte e Nordeste do país; enquanto que nas outras regiões o acolhimento é dividido entre muitas organizações e zoológicos (como aconteceu com duas lontras que estavam na UFRA e foram para o zoológico de Taubaté-SP).
Demarchi declara que “a PRF é uma das polícias que mais fazem apreensão de traficantes de animais e o resgate de animais silvestres. Na nossa formação desenvolvemos um curso de enfrentamento aos crimes ambientais, para que o policial saia mais capacitado para combater o tráfico no Brasil inteiro”.
Outro órgão que faz os resgates, e que suspeitávamos ter encontrado Xaropinho, é a Polícia Civil. Mas a delegada da Divisão Especializada em Meio Ambiente e Proteção Animal (DEMAPA) em Belém, Letícia de Abreu, não encontrou registros dele nem de nenhum de seus vizinhos no mês de abril.
Abreu frisa que os criminosos investigados pelo órgão costumam manter os animais destinados à venda em áreas de mata, onde foram capturados, vendendo-os presencialmente dentro do mercado local, em espaços como feiras.
Segundo a delegada, dependendo da quantidade e de há quanto tempo os animais vivem em cativeiro, nem “compensa” separá-los de seus tutores. “Quando a gente observa que é um animal doméstico, a gente deixa a pessoa como seu fiel depositário até que se resolva o processo na Justiça”, detalha.
Em outras situações, eles são destinados a abrigos de animais como o CETRAS da UFRA. “Mas raríssimos são os casos em que eles têm condições de retornar para a natureza depois de ficarem no abrigo”, complementa a entrevistada. Explica, ainda, que tem resgatado somente espécies brasileiras e que o curió (Sporophila angolensis) e o sabiá (Turdus rufiventris) são as mais comuns entre as aves. “Não temos muita presença de comércio pela internet. Pelo menos, [as denúncias] não chegam até a Delegacia,” comenta.





















