Fragmentos sobre as pelejas pela terra no Araguaia

As Amazônias são um mundo de águas. Furos, paranás, igarapés e rios afluem por todo canto. Em boa parte da região são eles que condicionam a rotina dos moradores. São os rios que organizam a saída e a volta para casa, os horários de reuniões, os encontros, as celebrações, a coleta de frutos, o plantio na vazante, a pesca e o lazer. Banzeiros afetam alguns, outros nem tanto. Esse mundo de águas guarda alguns encantos: Cobra Norato, Mãe D´água e outros. Estima-se que as Amazônias abrigam 12% da reserva de água do planeta, onde aquíferos, a exemplo de Alter do Chão, são fundamentais para a sobrevivência das futuras gerações, uma questão capital.

A floresta é um mundo de águas e gentes de conhecimentos milenares. Até meados dos anos de 1950, os rios representavam o vetor de povoamento da região, a partir da equação: rio-várzea-floresta, como sublinha Porto-Gonçalves. Assim, consolidando-se como a principal via de circulação de mercadorias, informações e pessoas. Uma civilização da várzea.

A exportação das drogas do sertão, o extrativismo da borracha e o ciclo da castanha do Pará deram-se via os rios, ora barrados para a geração de energia. Observa-se um aprofundamento da condição colonial da região como exportadora de matérias primas que, amiúde, expropria e espolia as populações nativas, como ocorre na Volta Grande do Xingu, com a edificação da hidrelétrica de Belo Monte, no Complexo do Rio Madeira, em Rondônia, no Teles-Pires, em Mato Grosso, e tantas outras agendadas para serem construídas no Tapajós. No século passado, a edificação de Balbina (AM) e Tucuruí (PA) representou a pedra fundamental de tal (ir)racionalidade.

O presidente da república, Jair Bolsonaro e a Primeira Dama, Sra. Michelle Bolsonaro, durante cerimônia de inauguração da Usina Hidroelétrica Belo Monte Foto: Marcos Corrêa/PR.

Reeditam-se processo e práticas pré-históricas do modo de produção capitalista. Neste caleidoscópio do avanço do capital sobre as fronteiras amazônicas

Entre outras obras ver José de Souza Martins, Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano, 2012.

, as mega barragens despontam como um dos entes de um pacote de obras de infraestrutura, orientado a partir dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento (ENIDs) e mobilizados a partir escala Pan-Amazônia. Uma espécie de contraponto ao modelo de polos de madeira, pecuária, energia e mineração, que se delineou na região do Araguaia-Tocantins, Em uma flagrante indiferença às populações locais.

Na bacia do Araguaia-Tocantins

A bacia do Araguaia-Tocantins faz parte da política de eixos de integração nacional, onde está previsto um conjunto de obras de infraestrutura de transporte multimodal (rodovias, ferrovias e hidrovias), além de geração de energia. A bacia banha três regiões do território nacional: Norte, parte do Nordeste e o Centro-Oeste, possui uma extensão de 813.674 km² e corta os estados do Maranhão, Tocantins, Pará, Goiás, Mato Grosso e parte do Distrito Federal. Cerrado e a Floresta Amazônica são os biomas predominantes.

, até meados dos anos de 1980, o grupo indígena Gavião e seus subgrupos (Krikateje, parketeje e Akrikateje), bem como, Kaapor, xicrin, Atikum, Guajajara, Suruí, entre outros povos, eram os senhores do lugar, ainda que o Estado viesse a declarar, durante o regime militar, essa porção de terras como um vazio demográfico. Trabalho escravo, mandonismo e clientelismo davam contorno às relações de poder dos coronéis na região.

Sabe-se que a grande inflexão para a integração subordinada da Amazônia às economias centrais do Brasil e do mundo ocorre durante o regime de exceção (1964-1985), a partir das obras de infraestrutura física, em particular as rodovias. A arquitetura da Ditadura Civil-militar, ao cimentar a integração física da região, altera de forma abissal o modelo de colonização consolidando a lógica rodovia-terra firme-floresta como modelo, conforme interpreta Porto-Gonçalves.

Tal opção aprofunda o processo migratório, promove o surgimento de inúmeros núcleos urbanos, incentiva o desmatamento, incrementa as violências contra as populações locais, agudiza as disputas pela terra, dinamiza a grilagem e o mercado de terras públicas e fomenta o trabalho escravo.

Nesta conjuntura, o Estado se materializa como o principal indutor da economia, ao promover a renúncia fiscal, financiar obras de infraestrutura e empresas de capital externo, subsidiar, com fornecimento de energia, grandes empresas da cadeia da produção de alumínio – Albrás-Alunorte – e conceder terras públicas ao capital privado. Em resumo, uma grande promoção ao saque dos recursos naturais.

No período, emergem outras institucionalidades em substituição às criadas no governo Vargas

Um texto sem data assinado pela professora Maria Celina d´Araújo, Amazônia e Desenvolvimento à Luz das Políticas Governamentais: A Experiência dos Anos 50 pode servir como fonte sobre o tema. Vale lembrar que boa parte das políticas teve como matriz Os Acordos de Washington.

, quando se desenvolveram as primeiras tentativas em constituir a região como estratégica para o desenvolvimento do país, em atendimento às demandas externas da geopolítica. No arcabouço da história, coube a Vargas elaborar o planejamento de Estado para a região.

Martins (1985 e 1991), em recorte recente de nossa história agrária, indica o aspecto concentracionista da propriedade rural do Estatuto da Terra (1966) e o Estado intervencionista como componente central na penetração do capital na fronteira amazônica. Coube ao Estado a efetivação de instrumentos nas esferas políticas, econômicas, jurídicas, além da criação de uma série de instituições, com vistas à instalação de empresas do centro-sul do país no ramo da pecuária na região.

Na Amazônia Oriental, os posseiros são expropriados pelo modelo de grande propriedade rural, estabelecido através da política de incentivos fiscais da SUDAM, que teve nas ações do Grupo Executivo de Terras do Araguaia Tocantins (GETAT) a garantia de sua efetivação. A frente de expansão e a frente pioneira, sendo esta considerada ilegítima para explicar a presença do capital, são pontuadas pelo pesquisador para explicar a tensão na Amazônia. A primeira é ativada pelos posseiros sobre as terras tribais, já a segunda, pela empresa pecuária sobre os posseiros e índios. Jagunços e militares são pontuados como agentes da coerção, crava Martins.

A estrada sufocou a floresta. É no ambiente do estado de exceção que emergem as rodovias Belém-Brasília (BR-010), Cuiabá-Santarém (BR-163), Transamazônica (BR-230), entre tantas outras. O conjunto de ações estatais reconfigura os tecidos econômicos, políticos, culturais e sociais da região. Numa parte dela, o sudeste paraense, isso se dará de forma radical.

Ceará (Francisco Valter Pinheiro Gomes), migrante de Quixadá/CE, camponês, dirigente sindical e cordelista, assim traduz o quadro:

Com a abertura da Transamazônica
Começou a entregação
Das terras da União
Os burgueses e fazendeiros
Vindos de outras regiões.

Noutra estrofe arremata:

Aí a destruição
Começou acontecer
Queimadas descontroladas
Pra ver o pasto crescer
Destruindo fauna e flora
Como todos podem ver

Autor de outros cordéis sobre a Amazônia, os versos de Ceará fazem uma reflexão crítica sobre a integração da região ao circuito da economia mundial. Ele traduz, a partir de suas vivências, as dinâmicas marcadas pela expropriação, concentração da terra e chegada de estranhos à região.

Guerrilha do Araguaia, Garimpo de Serra de Pelada e grandes projetos aos moldes do Programa Grande Carajás (PGC) têm fatores históricos comuns: concentração de capitais, colonização induzida e espontânea. . Neste ambiente, foi construída, em 1970, a PA-150, durante o governo de Jader Barbalho.

Neste cenário de abissais transformações econômicas, políticas e culturais, esgrimavam nas disputas territoriais, bem como em projetos de desenvolvimento, indígenas, camponeses, grandes corporações do capital nacional e internacional, grileiros de terras, oligarquias rurais ligadas ao controle dos castanhais e o Estado.

Momento do sepultamento das 19 vítimas do massacre no cemitério de Curionópolis. Foto: João Roberto Ripper/Anistia Internacional.

Assim surge a PA-150 como uma das principais artérias do estado. Medindo 1.100 quilômetros de extensão numa das principais regiões econômicas do Pará, abriga o polo de mineração de Carajás e o maior rebanho da pecuária extensiva. Uma fronteira agromineral, como avaliou o pesquisador Jean Hébette. A via liga Goianésia do Pará à Marabá, a partir do entroncamento da PA-475 com a PA-263, bem como articular o sudeste e o sul do estado à capital Belém, também ligando ela ao Nordeste, à Brasília e a outras regiões do estado e do país.

A estrada é uma espécie de eixo de integração com outras rodovias. Ela se vincula a BR-155/BR-158 (Marabá/Redenção/Santana do Araguaia), na divisa com o estado do Mato Grosso, a BR-222 (Marabá/Dom Eliseu), no entroncamento com a BR-010 (Belém-Brasília) e a BR-153 (Marabá a São Geraldo do Araguaia), na divisa com o Tocantins.

A PA-150 integra a história da região considerada a mais violenta na luta pela terra no Brasil: o Bico do Papagaio, que fica no entroncamento que divide o sudeste do Pará, o norte do Tocantins e o oeste do Maranhão. Não sei se por ironia ou reivindicação, o nome do advogado Paulo Fontelles, executado a mando do latifúndio em 1987, nomeia hoje a rodovia.

Nos anos 1980, período marcado por fortes tensões, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e seus pares criam o boletim “Grito da PA-150”. Ele é tributário de boa parte da memória da luta pela terra na região. Em sua edição inaugural, relata as ações do grileiro natural do Espírito Santo, Osanir Silva, que contratou 40 capangas para expulsar camponeses no Km 51. O boletim denuncia que Zé de Serra, pistoleiro de Silva, foi o responsável pela morte do lavrador Lourival Marques da Silva.

Grilagens de terras, coerção privada e pública, denúncias contra as ações do Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins (GETAT), ações das famílias das oligarquias rurais, pistolagem, omissão do Estado em punir pistoleiros, grileiros e mandantes de execuções e chacinas, agendas da Igreja e dos sindicatos, datas comemorativas, a exemplo do Dia do Trabalhador Rural, integram a pauta do boletim.

Padre Paulo Joanil da Silva, mais conhecido como padre Paulinho, atual coordenador da CPT, explica que tudo era feito pelos agentes pastorais. Nesta época, entre os religiosos constava a irmã Dorothy Stang. Na década de 1980, Stang militava na cidade de Jacundá, próximo à Marabá, cidade polo da região. No rosário de religiosos tem-se ainda os saudosos padres Humberto e Roberto de Volicout, o bispo D. Alano, enquanto do Movimento de Educação de Base (MEB), os educadores Ademir Martins, Beta Martins e outros.

Paulinho conta que:

O jornal era feito no mimeógrafo. Dava um trabalho danado, a gente não tinha recurso, tinha de fazer coleta. O Eduardo Pedroso era o responsável pela feitura. A produção era toda em Marabá, pela equipe do MEB e CPT, onde constam Emanuel Wambergue, Ademir Martins, a educadora Beta (falecida), que era esposa do Martins, com apoio irrestrito da Diocese de Marabá e do bispo da época, D. Alano. O boletim nunca foi atacado de forma jurídica. Nunca foi judicializado. Nenhuma matéria foi taxada de faltar com a verdade. Mas era odiado pelos ricos.Entrevista concedida na sede da CPT, em Belém, em 05 de maio de 2017.

O Grito da PA-150, gestado no sudeste paraense, o Jornal Resistência, editado na cidade de Belém, o Lamparina, realizado no Baixo Amazonas, e o Varadouro, produzido no Acre, guardam frações significativas da luta dos povos tradicionais das Amazônias.

Anos 1980- A luta pela terra e seus mediadores

O agitado fim do século XX colocou o mundo pelo avesso. Neste momento de grandes transformações, podemos realçar que o aprofundamento da Revolução Verde, a partir de sementes transgênicas, o fim da experiência socialista no leste europeu, a grande revolução nas tecnologias de informática e de comunicação (que reconfiguraram as fronteiras do espaço e do tempo) e o estabelecimento da hegemonia das agências multilaterais e de global players no cenário econômico e político mundial representam alguns dos elementos do que se convencionou chamar de “Nova Ordem Mundial” do modo de produção capitalista. O modelo econômico que entra em cena neste momento de globalização ou mundialização é o neoliberalismo.

No hemisfério Sul, para a economia brasileira, a década de 1980 é tida como perdida. No campo político, trata-se dos anos da Nova República, redemocratização do país após 20 anos de regime de exceção, que colide com o ocaso do que ficou conhecido como milagre brasileiro. Na Assembleia Constituinte, o lobby dos ruralistas mobiliza-se no sentido de dificultar a implantação do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). A sua face mais radical organiza a União Democrática Ruralista (UDR).

Babaçulândia/TO – Camponeses são despejados da Comunidade Tabaoca, em ação ajuizada por fazendeiros da região, apesar de se tratar, segundo o Incra, de terra pública da União. Foto: De Olho nos Ruralistas

A ela é creditada um cipoal de chacinas e execução de camponeses. Bem como de advogados (Gabriel Pimenta, João Batista e Paulo Fonteles), dirigentes, leigos e religiosos que apoiavam a luta pela terra. Assim tombaram Expedito Ribeiro, a família Canuto, Raimundo Ferreira Lima (Gringo), a irmã Adelaide em Eldorado do Carajás, o sindicalista Arnaldo, o padre e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT)), Jósimo, dentre outros.

No agitado mar de transição política do país, partidos do campo democrático (PT, PDT, PMDB), organizações sociais e populares se reorganizam de norte a sul do país. É esse movimento que dá corpo à campanha das Diretas Já, que encarnou a campanha pela Anistia e que vai fazer assentos na Assembleia Nacional Constituinte. Neste momento, parte da Igreja Católica se converte às lutas populares.

A guinada ocorre após os congressos de Medellín (1968) e Puebla (1979), quando se descortina o que ficou conhecido como Teologia da Libertação. Parte da Igreja Católica opta por uma ação conjunta mais próxima aos segmentos populares na América Latina. No meio rural amazônico, a associação e o apoio das pastorais e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) aos posseiros e sem-terra revelam-se significativos no enfrentamento de fazendeiros, madeireiros, grileiros e ao Estado, na tomada dos sindicatos das mãos dos pelegos.

Neste ambiente de transição e grandes modificações, a execução do seringueiro Chico Mendes, no ano de 1988, vai constituir-se como um divisor de águas nas políticas públicas para a região, tendo como marco a criação de várias Reservas Extrativistas (RESEX) e a efetivação de institucionalidades relativas ao meio ambiente e aos povos tradicionais. O crime também levou para outro patamar o debate sobre o mundo agrário e fundiário na região.

Além das RESEXs, Projetos de Assentamentos Agroextrativistas também serão efetivados. Agrega-se, para além da luta pela terra, o debate sobre o uso dos recursos da floresta a partir dos que nela vivem. Os povos da floresta, também chamados povos tradicionais, ganham significativa força política no cenário nacional e mundial ao reivindicar cidadania plena e mobilizar o caráter da identidade.

Trata-se de uma relevante página da insurreição ocorrida na transição política do Brasil. Os estados do Acre, gênese da luta seringueira, e Amapá irão se consolidar como referências da cultura de defesa dos povos tradicionais e da floresta.

Nesta conjuntura, Jean Hébette (2004), ao avaliar as pelejas pela terra nas paragens do Araguaia-Tocantins com relação a posseiros e sem-terra, alerta que a necessidade de uma área visando a produção de gêneros para suprir as necessidades da família surge antes de qualquer processo de organização social, religiosa ou política, que intermedie a luta pela terra. Os laços de família, apadrinhamento, vizinhança e parentesco, tendo como referência o trabalho coletivo organizado através de mutirões, é o que modela o universo camponês da época.

Na região em questão, o regime militar e a Guerrilha do Araguaia intensificaram a coerção pública e privada contra os camponeses. É nessa realidade, marcada pela adversidade, que a presença da Igreja Católica ganha importância.

Cena do filme “Soldados do Araguaia” sobre a Guerrilha. Foto: Jornal O Globo

A “conquista” da fronteira em debate foi um rio de sangue. A década de 1980 é, definitivamente, consagrada como a mais violenta no sudeste e sul do Pará. Nos dados sistematizados pela CPT sobre a violação dos direitos humanos na região, três chacinas são destacadas: fazenda Dois Irmãos, em Xinguara ( seis mortos), Chacina de Ingá, em Conceição do Araguaia (13 mortos), e Surubim, também em Xinguara (17 pessoas executadas).

O documento denuncia que não há processo em tramitação para apurar os casos. Todas ocorreram no ano de 1985. Passado mais de três décadas, todos os massacres continuam impunes. Há casos em que nem mesmo inquéritos foram instaurados com vistas a se chegar aos responsáveis.

Entre balas, castanhais e benesses

Dados coletados na CPT por Anthony Hall (1990) indicam que 125 pessoas estavam marcadas para morrer em 1987, numa lista organizada pelos fazendeiros, e que 45 camponeses foram presos em 1985; um ano depois, o número pula para 700.

A ausência de orientação e prioridade, quanto a quais imóveis deveriam ser desapropriados, levou a instrução de processos relativos a imóveis cuja desapropriação só interessava aos proprietários. Os latifundiários beneficiaram-se, livrando-se de terras de baixa qualidade, transferindo-as vantajosamente aos camponeses através do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). A chamada “desapropriação amigável” tornou-se frequente sob a visão ilusória de conciliar interesses divergentes. Na Amazônia, as Comissões Agrárias funcionaram como fator para esfriar o ritmo ao processo desapropriatório, defende o professor Alfredo Wagner Berno de Almeida.

Um elemento importante relacionado à posse da terra recai sobre a aquisição de castanhais de pretensos donos ou foreiros no ano de 1987/1988 pelo Ministério do Desenvolvimento e da Reforma Agrária (MIRAD), sob a direção de Jader Barbalho, no governo do maranhense José Sarney, como informam as professoras Marília Emmi e Rosa Acevedo. Na interpretação das pesquisadoras, a medida não passou de um beneficiamento financeiro à elite local. Apesar do pedido de desapropriação das terras ter partido do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de São João do Araguaia, o mesmo ganhou outra dimensão.

É nesse período que os pecuaristas vão fomentar o maior desmatamento da Amazônia, preocupados em forjar benfeitorias em “suas terras”, ameaçadas pelo PNRA. O jornalista Lúcio Flávio Pinto (2004) lembra que: “nada menos do que 200 mil quilômetros quadrados de cobertura vegetal (sendo 80 mil km² de floresta densa) tinham sido postos abaixo no ano de 1987”.

As pesquisas de Marília Emmi e Rosa Acevedo indicam que o STR de São João do Araguaia pleiteava, inicialmente, a desapropriação de 34 castanhais. A resposta do MIRAD pareceu, num primeiro momento, ter ido além das pretensões, pois a área quase duplicou: de 34 imóveis perfazendo 147.921 hectares, aumentou para 61 imóveis, com uma superfície total de 235.011 ha. De fato, da aparente ampliação dos castanhais adquiridos pelo MIRAD, cinquenta foram vistoriados até 1990. Após essa providência, o INCRA elaborou cinco projetos de assentamento, englobando 24 castanhais, em uma área de 103.999 ha.

Luta pela Terra – os posseiros e suas mediações

O belga Jean Hébette, que dedicou boa parte de suas investigações à região, elucida que a luta pela posse da terra, pela permanência no lote e a resistência à violência constituíram um cimento de coesão entre os camponeses. Muitos que não se visitavam e se conheciam apenas como “Baiano”, “Mineiro”, ou “Ceará” entrosaram-se pela necessidade de sobrevivência.

O pesquisador revela que a vida política, sindical e, em parte, religiosa estiveram imbricadas, em medidas e formas diferentes, tanto a leste quanto a oeste do Tocantins, sendo marcadas pela presença de seus líderes (diferentes no temperamento, na formação e nas convicções) e pela orientação dos grupos de apoio. A luta pela terra foi, durante muito tempo, uma força fundamental.

Já o uspiano Octávio Ianni enfatiza que os dominicanos estão na região desde a fundação do município de Conceição do Araguaia, quando o mesmo exercia o papel hoje atribuído à Marabá, cidade polo regional. Sabe-se que a organização do STR em Rio Maria deve-se, em certa medida, à presença dos dominicanos franceses e leigos na organização das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). A mobilização dava-se a partir da organização dos grupos de estudos bíblicos, os precursores das comunidades de base. A tarefa era realizada em lombo de burro, a cruzar vicinais.

A santa trindade da fração da Igreja Católica alinhada à luta popular dos camponeses na Amazônia era composta pelo Movimento de Educação de Base (MEB), pela CPT e pelas CEBs. Sob a inspiração dos princípios educativos e pedagógicos do educador Paulo Freire e orientação da Teologia da Libertação, as instituições compunham, junto a intelectuais orgânicos, partidos políticos e ONGs, o arco de aliança das representações camponesas, numa ação em que comungavam religiosidade e política com vistas à emancipação.

Araguaia

Brasília/DF – O presidente da CPT, dom Enemésio Lazaris, divulga o relatório Conflitos no Campo 2013. 28/04/2014 Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.

Cumpre aqui sublinhar, ainda, o projeto coordenado pelo professor Hébette: o Centro Agroambiental do Tocantins (CAT), composto pelo Laboratório Socioambiental do Tocantins (LASAT), integrado por pesquisadores e a Federação dos Trabalhadores do Araguaia Tocantins (FATA). A inquietação do projeto era associar o conhecimento com as demandas dos trabalhadores rurais, a partir da metodologia de pesquisa-ação, que consiste em fazer o diálogo entre o saber científico e o tradicional.

Em 1988, a Federação continha diretores dos sindicatos dos municípios na seguinte composição: São do Araguaia (Almir Ferreira Barros), Itupiranga (Manoel Monteiro), Jacundá (Maria de Jesus), São Domingos do Araguaia (Francisco de Assis Soledad), Nova Ipixuna (Batista Delmontes) e Marabá (Antônio Chico).

O leigo francês Emanuel Wambergue é outro sujeito na história da região que merece menção. Ao lado de outros protagonistas, é um dos fundadores da CPT e o seu primeiro coordenador. Aportou na região no fim da década de 1960, no período da Guerrilha do Araguaia. Ainda mora em Marabá e milita junto aos movimentos camponeses, desta feita mais voltados para o campo da educação.

Segmentos da Igreja Católica, partidos políticos clandestinos e outros em organização, ONGs e intelectuais orgânicos somaram no processo de luta pela terra da região. Estes grupos deram relevo na organização de delegacias sindicais, cantinas, cooperativas, caixas agrícolas, associações, assim como nos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs), no Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (CEPASP), na Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), no Conselho Sindical dos Seringueiros (CNS) e na Sociedade Paraense de Defesa de Direitos Humanos (SPDDH).

A guisa de considerações

Nada é do jeito que foi há alguns anos. Passadas mais de três décadas desde a implantação do PGC (Programa Grande Carajás), o mapa da região passou (e ainda passa) por profundas alterações. Cumpre aqui realçar o Massacre de Eldorado do Carajás, ocorrido em 1996, quando 19 trabalhadores sem-terra foram sumariamente executados por tropas da PM, no lugar denominado “Curva do S”, durante o governo do médico Almir Gabriel (PSDB), e no secretariado de segurança de Paulo Sette Câmara, no período de gestão de Fernando Henrique Cardoso como presidente.

O crime contra os sem-terra disparou o gatilho para o reconhecimento em massa das ocupações, como os Projetos de Assentamento (PAs) da reforma agrária. Na época, os 36 municípios sob responsabilidade da superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) de Marabá contabilizavam pouco mais de 90 PAs.

Os governos pressionados, tanto pelos setores da sociedade nacional, quanto pela ação internacional, farão da região a que mais concentra PAs no país. Nos dias atuais, contabiliza-se mais de 500, o que representa pouco mais de 50% do território da mesma. O caso contraria as teses de intelectuais que avaliavam que o posseiro da fronteira cederia lugar à “eficiência” do capital e seguiria em itinerância.

No entanto, as chacinas persistem, a exemplo do Massacre de Pau D´Arco, ocorrido em maio de 2017, onde policiais militares e civis executaram dez posseiros, em ação de reintegração de posse da fazenda Santa Lúcia. Os executados faziam parte do quadro da Liga dos Camponeses Pobres.

Araguaia

Pau D’Arco/PA – Enterro de vítima do Massacre de Pau D’Arco. 23/06/2017 Foto: Repórter Brasil.

Noutro extremo, a Vale, que possui hegemonia na definição do território local, engendra em seu portfólio o maior projeto de extração de minério do mundo, o S11D, no município de Canaã dos Carajás, . Ele promove, como na década de 1980, uma nova reconfiguração do espaço local, ao afetar Unidades de Conservação, PAs, terras indígenas e quilombolas, que vai desde a mina até os portos de São Luís (MA). Como nos tempos de Cabral, as riquezas continuam a singrar os mares. O saque dos minérios no maior trem do mundo, com mais de 300 vagões, corre diuturnamente algo em torno de 900 quilômetros de Carajás (PA) até São Luís (MA).

E o trem danou-se naquelas brenhas….tanto queima, como atrasa.

 

Rogério Almeida é professor do Curso de Gestão da Universidade Federal do Oeste do Pará, doutorando em Geografia Humana/Dinter USP/Unifesspa/Ufopa e IFPA
Imagem em destaque – Família despejada em processo movido por grileiro na comunidade Gleba Tauá, em Barro do Ouro. Foto: Divulgação/CPT

 

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