Registro histórico da aldeia Tawanã

Nasci em 1980 e morei no município de Oriximiná (oeste do estado do Pará) até os 16 anos de idade. Na busca de novas descobertas, me mudei para Manaus, onde cursei o Ensino Médio. Após concluir minha formação, no ano de 2003, fui chamada pela Secretaria de Educação de Oriximiná para pleitear uma vaga de secretária na Escola Constantina Teodoro, na Comunidade Quilombola de Cachoeira Porteira, onde trabalhei por três anos. Nesse período, a escola tinha alguns indígenas em seu quadro discente.

Depois de algumas tentativas de continuar meus estudos e de trabalhar em outras cidades, em fevereiro de 2010, soube por uma amiga que a Secretaria Municipal de Educação de Oriximiná estaria recebendo currículos para contratação de pessoal, assim, me dirigi até lá para tentar. Foi então que me fizeram a proposta de trabalhar na área indígena. Inicialmente fiquei receosa de ir para um lugar desconhecido com uma outra cultura, mas como estava disposta a desafios, aceitei a proposta. Fui à Aldeia Tawanã para ministrar aula de Língua Portuguesa, Ciências, História e Geografia. Posso contar que o que me deixava mais à vontade era o contato prévio com a família do cacique Amaika Wai Wai.

O encontro com a aldeia Tawanã

A aldeia fica localizada na margem direita do Rio Mapuera, próxima à localidade quilombola de Cachoeira Porteira, há cerca de 12 horas de viagem de barco da cidade de Oriximiná. Faz parte do Território Katxuyana – Tunayana, que se encontra em processo de demarcação, sendo que no dia 20 de setembro de 2018, foi publicada no Diário Oficial a Portaria 1.520/2018 que declara de posse permanente dos indígenas Kaxuyana, Tunayana, Kahyana, Katuena, Mawayana, Tikiyana, Xerew- Hixkaryana, Xerew- Katuena, e isolados, com superfície aproximada de 2.184.120 hectares.

Segundo relatos orais dos moradores, a maioria dos habitantes da aldeia costuma viver na Guiana Inglesa. Sua língua dominante é a língua Wai Wai, do tronco Karib, sendo que alguns ainda falam suas próprias línguas, como Katuena e Mawayana. Os casamentos na aldeia se dão entre as várias etnias. Assim, hoje Tawanã é formada por 24 famílias, distribuídas entre adultos, jovens e crianças, num total de 110 pessoas, segundo dados da Secretaria de Saúde Indígena do ano de 2017.

Sua paisagem é formada por rios e lagos e a população sobrevive da caça, pesca e da produção de farinha. A venda da farinha é a principal fonte de renda dos indígenas sendo escoada via fluvial até o município de Oriximiná e vendida em sua maioria para atravessadores.

Quanto ao aspecto cultural, os moradores da aldeia possuem seu próprio calendário de festas, que também compreende feriados cristão, com destaque para a Páscoa, Natal e Ano Novo. Vale ressaltar que a rotina da comunidade também envolve, nos finais de tarde, o esporte como o futebol masculino – os casados jogam com os jovens solteiros, fortalecendo regularmente a sociabilidade entre os membros da aldeia. Já as mulheres, sempre que terminam suas atividades diárias, também dedicam os finais de tarde para a atividade física através do futebol feminino.

A parceria com a UFF

Em 2015, a Escola da Comunidade passou a trabalhar em parceria com o Programa Educação Patrimonial, executado por professores e estudantes de variados cursos da Universidade Federal Fluminense (UFF), que desenvolvia projetos voltados à cultura local. Neste ano, eu e o professor Sérgio Seexuci Wai Wai trabalhamos nessa escola, desenvolvendo dois projetos com os alunos de 6º e 7º ano: com as alunas, um projeto chamado de “Adornos tradicionais de festa” (Keweyw) e com os alunos “Casas Tradicionais” (Mîîmo).

No ano de 2016, surgiu a oportunidade de ingressar na pós-graduação lato sensu em Etnoeducação, ofertada pelos mesmos professores da UFF que desenvolviam o Projeto de Educação Patrimonial. Me inscrevi e consegui passar no processo seletivo. Fiquei muito feliz em ter a oportunidade de fazer uma pós-graduação em uma universidade federal. A partir do primeiro módulo trabalhado, os professores nos comunicaram que teríamos que fazer como trabalho de conclusão do curso uma proposta de pesquisa-intervenção.

Desenvolvendo uma pesquisa-intervenção

Em uma aula do primeiro módulo presencial da pós-graduação, assistimos o filme “Narradores de Javé”, que me remeteu a pensar na história da Aldeia Tawanã. A aldeia não possui um registro escrito de sua história e, assim como no filme, tem sido constantemente ameaçada pela construção de uma barragem. Então, a partir do tema pensado, o meu anseio era encontrar dispositivos que chamassem a atenção da comunidade para poder construir juntos a história da Aldeia Tawanã, o que poderia subsidiar o direito da comunidade de manter sua ocupação nesse território caso se concretizasse a construção de hidrelétrica.

Após refletir sobre como iniciar o projeto, reuni a comunidade e convidei os moradores e alunos para juntos assistirmos o filme. Alguns dos moradores falaram: “é a nossa história, não que ela tenha várias como no filme, mas que não temos nossa história escrita. Como vamos dizer a quem quer realizar projetos que ameacem nossas terras? É muito importante termos a nossa história escrita, não que a história narrada de forma oral não seja importante”.

Em seguida após essa reunião comunitária, comecei a investigar junto com meus alunos o que já tinha sido escrito sobre a história da aldeia Tawanã. Alguns pesquisadores já haviam passado pela aldeia mas, segundo os moradores, realizaram apenas coletas de dados demográficos. Faltava um registro escrito, mais completo e aprofundado.

Cabe refletir aqui que a escrita é muito importante, sem desvalorizar a oralidade, mas hoje já faz parte do universo indígena. Segundo Souza (2006):

(…) a escrita sempre esteve presente nas culturas indígenas no Brasil na forma de grafismos feitos em cerâmica, tecidos, utensílios de madeira, cestaria e tatuagens. Por outro lado, a escrita propriamente alfabética, registrando no papel a fala e o som, foi introduzida no Brasil pela colonização europeia, e desde o século XVI está presente de formas variadas nas comunidades indígenas; porém, foi apenas nas duas últimas décadas que surgiu o que pode ser chamado de fenômeno da escrita indígena no sentido do aparecimento de um conjunto de textos alfabéticos escritos por autores indígenas (SOUZA, 2006).

Ao longo do trajeto, tive a oportunidade de trabalhar com o Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (IEPÉ), uma ONG de longa atuação com povos indígenas do Pará e do Amapá, que chegaram com o objetivo de registrar e documentar a formação histórica da aldeia para para futuramente realizar consultas prévias à comunidade indígena a respeito de suas terras. Ressalto aqui a importância do trabalhar em conjunto e aprender a respeitar a opinião do outro, com compartilhamento de ideias e saberes.

Para o desenvolvimento da pesquisa-intervenção usamos o seguinte procedimento metodológico: a comunidade participaria contando as histórias de formação da aldeia, enquanto os alunos fariam a coleta e registro das entrevistas e a escrita das histórias juntamente com os professores nas disciplinas de Língua Portuguesa e Língua Indígena.

Em fevereiro de 2018, começamos com uma roda de conversa  com a comunidade, realizada na Casa Grande (Umana), sobre como executar o projeto, e decidimos em conjunto que procederíamos da forma relatada acima. Em seguida, apresentamos os bolsistas do Programa Educação Patrimonial da UFF, que elaboraram uma oficina sobre como utilizar as mídias digitais em um projeto, com a produção de vídeos e áudios durante as entrevistas.

Na oficina, organizamos os alunos em grupos para que registrassem os lugares mais importantes da aldeia através de fotos e vídeos feitos em celulares. O próximo passo foi realizar as entrevistas com os moradores mais antigos da aldeia para que os mesmos contassem suas histórias e como se deu o processo de fundação da aldeia.

Durante um período de seis meses, nos deslocamos com os alunos até a residência dos moradores mais antigos para a realização dessas entrevistas. Nas aulas de Língua Portuguesa e Língua Indígena, organizamos os textos das entrevistas, pois o Professor Sérgio Wai Wai traduzia a língua Materna para a Língua Portuguesa.

Durante o projeto, além da realização de entrevistas e visitas aos moradores da aldeia, pudemos construir, juntamente com os alunos, momentos de descontração e criatividade ao confeccionar desenhos que descreviam o cotidiano da aldeia.

1) Desenho sobre agricultura feito pela aluna do 8º ano: Elaine Wai Wai; 2) Desenhos retratando a pesca e a caça feitos pelo aluno do 8º ano: Arlisson Wai Wai; 3) Desenho sobre o preparo da mandioca característico das mulheres da aldeia feito pela aluna Samila Wai Wai; 4) Desenho da Aldeia Tawanã construído pela comunidade. Fotos: Rafaela Melo.

Um relato importante durante os desenhos das atividades diárias da aldeia foi o da aluna Samila Wai Wai, do 6º ano, que falou: “quero com esse desenho descrever a atividade da mulher. Quando a gente vai fazer farinha é nós mulheres que descascamos a mandioca para ser feita a farinha”.

Esses e outros desenhos farão parte futuramente de uma cartilha que contará a história da aldeia, bem como seus modos de vida como a caça, pesca, roças e produção da mandioca.

Com o material das entrevistas construímos um texto sobre a origem da aldeia até os dias atuais, sendo que a entrevista mais utilizada foi a do fundador da aldeia: o Cacique Amaiká Wai Wai. Segue um fragmento do texto produzido:

“No ano de 2001, Amaiká foi chamado pelo cacique geral da Aldeia Mapuera para trabalhar como comandante do Barco da Comunidade Indígena, que tinha como nome Três Tribos Unidas. Um dos desafios iniciais de Amaiká foi ter que se deslocar do local onde ficava atracado o barco na Comunidade de Cachoeira Porteira e ir até a aldeia Mapuera, onde estava a sua família, há dois dias de viagem. Inicialmente ele construiu uma casa em Cachoeira Porteira para que seus filhos pudessem estudar.

Com o passar de alguns meses, o cacique Amaiká pensou em formar uma aldeia que ficasse próxima à comunidade Quilombola de Cachoeira Porteira e comunicou a sua ideia ao coordenador dessa comunidade, naquela época o Senhor Ivanildo do Carmo. Após conversarem recebeu um positivo do Ivanildo, que até se propôs a ajudá-lo lhe fornecendo motosserra e seu motor de popa para que Amaiká encontrasse um local adequado para morar com sua família. Então ele saiu em busca de um local e inicialmente se fixou em uma ilha que a chamou de Airan, mas que não deu certo pois na época da cheia a ilha alagava. Seguiu mais acima, aonde seu pai, o Pajé Kanahma Wai Wai, lhe contava, tinha sido habitada por seus antepassados, por seu parente Waka Waka, e aonde hoje era apenas uma capoeira. Achado o local, agora em terra firme, o Cacique Amaiká construiu sua casa e se deslocou até a Aldeia Mapuera para buscar sua família para morar em sua nova aldeia.

Inicialmente não pensou em nenhum nome, mas durante as suas idas à mata verificou que havia muitos arvores de Uxi Coroa que, na língua Wai Wai, significa Tawanã. Ai pensou vou chamar o nome da aldeia Tawanã.”

Em 2002, então aconteceu a construção da aldeia Tawanã. Segundo os moradores mais antigos, Tawanã foi construída em cima de uma antiga aldeia que costumava ser habitada pelo cacique Waka Waka, já falecido. Alguns moradores relatam que é possível encontrar resquícios de cerâmica indígena.

Amaiká Wai Wai nos contou que ele e seus parentes buscaram ajuda para a estruturação aldeia. Inicialmente, a própria comunidade construiu uma casa de madeira para o funcionamento do posto de saúde. Em seguida, construíram uma igreja e a casa grande (Umana). Nesse local são realizadas as reuniões, os casamentos e as festas culturais da aldeia. Em 2008, a comunidade havia crescido em termos estruturais e populacionais, contando com o nascimento de várias crianças desde sua fundação. Os adultos pensaram e cederam o prédio da igreja para o funcionamento de uma escola na comunidade. Em 2016, foi construído um posto de saúde pelo Governo Federal, com sistema de água encanada para toda a aldeia.

A aldeia continua realizando suas festas tradicionais com danças (como a dança da bebida, do tracajá e outras danças com pinturas corporais). Quanto à sua economia, fabrica artesanato e vendem para turistas que visitam a aldeia.

Resultados da pesquisa-intervenção

Ao longo desse percurso, nos tornamos um corpo forte, sempre trabalhando através do diálogo e buscando dispositivos para que pudéssemos usar a nosso favor, para o desenvolvimento de nossa pesquisa-intervenção. Digo “nossa” porque o trabalho se deu em parceria entre professores, comunidade e escola.

Vivenciamos um momento único compartilhando a história da comunidade, em que aprendemos a respeitar a fala e o olhar do outro. Tal experiência me remeteu aos conceitos da etnoeducação e como funciona um trabalho coletivo, no qual a comunidade contava a história e os alunos, atentos, acompanhavam e registravam todo o ouvido.

Os alunos relataram que se sentiram importantes em fazer parte da construção da história da aldeia, desde a pesquisa com as entrevistas até a confecção de textos e desenhos. Mas disponibilidade da história da comunidade e das futuras gerações, para que a memória de sua fundação e a forma de vida atual não se percam no tempo é o aspecto mais relevante deste trabalho é que.

Vale ressaltar que todo esse trabalho com fotos e vídeos já foi mostrado para os pais dos alunos, como um retorno preliminar à comunidade de nossa pesquisa-intervenção. A recepção dos resultados por parte dos pais rendeu relatos como exposto a seguir.

“Assim percebemos que hoje a comunidade está unida na busca de melhorias para a aldeia e que a cartilha será feita para que outros alunos saibam da nossa história”.

Também quero destacar que a inquietude da pesquisa- intervenção se vincula à nossa preocupação pelo projeto da barragem que envolve o território no qual habitamos. Segundo informação divulgada pelo Instituto Socioambiental (ISA), o empreendimento realizado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia do Brasil, afetará diretamente as populações indígenas Katxuyana, Hixkaryana, Katuena e Wai Wai. Por hora, a proposta está paralisada², mas sabemos que haverá muita luta pela frente. O projeto nos levou a trabalhar em conjunto,  e podemos constatar o quanto é importante a união em busca de uma causa fundamental em nossas vidas – o nosso território.

 

Rafaela Melo possui graduação em Biologia e Química pela Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), assim como pós-graduação em Etnoeducação na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Imagem em destaque – aldeia Tawana, localizada na margem direita do Rio Mapuera, próxima à localidade quilombola de Cachoeira Porteira, há cerca de 12 horas de viagem de barco da cidade de Oriximiná-PA. Foto: Diogo Campos.
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