Xingu, umbigo do Brasil
[RESUMO] A narrativa de uma médica de família e comunidade que atua em Terra Indígena oferece uma oportunidade aos não indígenas de conhecerem outras formas de lidar com nascimento e morte.
Estava tudo pronto para entrar em área. Finalmente, depois de checklists infinitas, reais e mentais, de uma compra louca de comida para dez dias ou um mês até cilindros de oxigênio e fluxômetros. Panelas e testes rápidos, bujão de gás e kit sutura, produtos de limpeza e cateter nasais, rede, corda e uma faca para não dar mole, porque de boba já tenho a cara e o jeito. É… pensando bem, é claro que não conseguiria usar a faca numa situação de perigo, mas ela vai me ajudar a cortar cebolas, ingrediente principal em todas as receitas.
Chegou adiantado para me buscar o João Batista, motorista da equipe, mais perdido do que eu em qualquer planejamento logístico. Um perdido convicto, muito simpático e boa praça. Me contou que veio para cá trabalhar em lavoura, pegava pesado debaixo do sol quente o dia todo e agora está no melhor emprego da vida: só dirige e cochila bastante na caminhonete e ainda tem dias de folga. Fomos até a casa da Daphne e da Thais, médica e enfermeira, para buscar mais itens da lista: caixas de medicamentos, formulários, caderno de vigilância, EPIs (Equipamentos de Proteção Individual)… os EPIs são uma checklist à parte. Depois seguimos para o DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) para buscar testes, medicamentos, os cilindros e outras coisas mais, cada qual com sua burocracia particular.
Andei pensando que tem dois tipos de burocratas — perdoem o preconceito, sei que eles têm seu papel. Aquele do poema do Drummond, que vira um arquivo de metal, já sem alma e sem pensamentos próprios, e o burocrata animado, que sente um certo tesão perverso em deter o poder do conhecimento de todos os fluxos burocráticos, inclusive deve se divertir inventando novos ao longo do dia: “ué, não sabia que precisava desse formulário para conseguir tal coisa?”, ou “não sabia que tem que etiquetar os cilindros de oxigênio depois de retornar de área, para que eles possam ser checados?”.
Claro que não sabia. Tudo o que sei até agora são informações absorvidas feito esponja a partir de uma observação ativa e cansativa de tudo. Aliás, não só cansativa, tantas novidades são instigantes. E também sei que não dá para esperar, no meio de tanta confusão, que alguém me passe um panorama mastigado, com perspectivas históricas, antropológicas, demográficas e epidemiológicas. Faz o seu, Raíssa, e não come mosca. Só que em situações de estresse, o que mais faço é travar e acionar o modo avião.
Enquanto João Batista abastecia a caminhonete e eu cuidava de alguns formulários com a burocrata dinâmica, chegou a notícia de que a enfermeira que ficaria em área comigo tinha amanhecido sintomática e o técnico de enfermagem que a acompanhava em área tinha feito um PCR [exame que detecta o novo coronavírus] positivo. Mudança de todos os planos, da equipe e do dia de entrada. Quem já tem tempo de isolamento? Quem pode entrar? Quando? Quem conhece a comunidade? Aciona equipe para desinfecção da unidade? De qual EPI precisa? Enfim, depois de muitos planejamentos e revisões, minha entrada foi adiada para sexta-feira (19/06), com outra equipe, na mesma comunidade, Tangurinho, no Território Indígena do Xingu (TIX).
O Tangurinho fica no alto Xingu, que é no mapa a parte de baixo do parque. Por ali, é o lugar em que estamos mais preocupados, já houve três casos positivos, incluindo um bebê Kalapalo, que faleceu. A comunidade não aceitou que ele fosse enterrado conforme as recomendações sanitárias, foram até o município e brigaram para que o corpo fosse levado até a aldeia. Os Kalapalo têm como tradição um ritual muito forte de sepultamento, que inclui pintura do corpo e outras etapas. Li em algum lugar que uma parte do ritual é um banho para lavar a tristeza dos enlutados. Queria poder entender mais e também tomar esse banho, mesmo que em atraso.
Acontece que o corpo do bebê passou por muitos lugares e muitas pessoas tiveram contato com ele. Isso suscita tantos dilemas éticos que meu pensamento dá uma certa pane. Liguei para um antropólogo que estudou os rituais mortuários dos Kalapalo e ele pareceu estar na mesma. Comemos moscas juntos via telefone, sabendo que não dá para esperar respostas simples para questões complexas. De volta ao trabalho, cancelada a entrada no Tangurinho, peguei carona com João Batista até a minha casa para almoçar — tudo para na cidade entre meio dia e duas horas —, depois continuaríamos a reunião e replanejamentos no DSEI.
Daphne, a médica, mandou mensagem convidando para almoçar na casa dela. Fiquei sem graça, porque ando filando demais a boia lá, mas comprei o chocolate preferido dela, que vende aqui do lado, e fui de Pegasus, minha recém adquirida bicicleta usada, que me deixou apaixonada, porque me lembra a música do Jorge Mautner e ainda tem SUS no nome. Pedalei até lá, orgulhosa da minha versão ciclista.
Quando cheguei para o almoço, tudo já tinha mudado novamente. Uma mulher entrou em trabalho de parto em Tanguro e o Agente Indígena de Saúde (AIS) da comunidade pediu que a médica fosse lá ajudar no parto e avaliar os sintomáticos respiratórios. Não tínhamos equipe, só eu, que não conhecia nada nem ninguém, meu IgG [anticorpos de imunidade ao Covid-19] e o restante em isolamento. Teríamos que recarregar a caminhonete, chamar João Batista e fazer tudo de novo.
Com pouco tempo para pensar num novo plano, decidimos entrar eu e Daphne, indo e voltando de avião no mesmo dia (16/06), um monomotor. Combinamos de dar assistência ao parto e avaliar um bebê que estava com um relato de cansaço respiratório. O restante dos sintomáticos seria na entrada de sexta-feira mesmo. Chamei João para dar carona para a gente até a pista do avião. Checklists mentais e concretas em curso: EPIs, oxímetro… o cilindro está cheio, afinal? Cadê o fluxômetro? Não tem kit parto? E se o bebê estiver grave? Quantos cabem no avião?
Pousamos na estrada, um pouco distante da aldeia, e nos paramentamos na pista. O calor era tanto que achei que o faceshield fosse derreter ali mesmo. Primeiro chegou o AIS de bicicleta e depois duas motos para ajudar a gente a chegar mais rápido. Parecíamos duas extraterrestres, chegando à aldeia cheias de tralha, em oposição às crianças, todas peladas, rindo da gente e olhando curiosas. Ainda não sei se o sorriso de olho é fácil de entender.
A gestante estava na primeira oca, que era enorme, com teto de palhoça e uma lona preta de cobertura. Estava deitada numa rede no canto. Ao seu lado, duas senhoras mais velhas sentadas, uma era a parteira. Além delas, outras mulheres estavam em volta, dando apoio. As crianças iam e vinham animadas ver o que estava acontecendo. Tudo estava bem escuro e a faceshield embaçada atrapalhava ainda mais. De vez em quando, o vento batia na lona e a luz do dia entrava, iluminando a oca e a gestante, nua na rede, em trabalho de parto. Acima dela, havia um segundo andar de rede, que ela segurava com força no momento da contração, tudo bem silencioso.
Sorri com os olhos paras duas mulheres mais velhas. Queria que soubessem que eu estava ali, mas não queria interferir no trabalho delas. Adoraria dizer também o quanto achava especial estar ali naquele momento. Em algum momento, uma mulher trouxe máscaras e deu para essas duas mulheres mais velhas. Elas vestiram, como se também dissessem que gostavam da nossa presença ali. Tentei contar mentalmente o tempo das contrações e o espaço entre elas.
Parecia que estavam ficando mais fortes e a dilatação já era total no momento que a gente chegou. A senhora parteira acho que murmurava um cântico bem baixinho e fazia alguns movimentos na barriga da gestante. Cogitei cantar também, mas não sei se meus guias iam se confundir ali… fiquei quieta. Numa contração forte e iluminada por uma lanterna, a cabeça do bebê começou a coroar, foi deslizando, até que estava toda para fora.
Pensei nervosa e atrapalhada: será que precisa ajudar o bebê a fazer a rotação? Apoiar a cabeça um pouquinho? Ele já deveria chorar? Entre essa contração e a próxima, que fez com que saísse o ombro e o restante do corpinho, foi o momento mais tenso para mim. Pareceu uma eternidade, mas foi muito rápido na verdade. E nasceu sozinho o bebê. Estava ali deitadinha na rede, era uma menina. A placenta já saiu inteira, quase que no mesmo momento.
Embaixo da rede, elas tinham cavado um buraco, onde cai o sangue e também se enterra a placenta. As crianças já tinham trazido um balde d’água e uma bacia. A parteira serviu para mãe um líquido numa cumbuca, que a fez vomitar, depois ela mesma forçou o vômito. Em seguida, foi banhada com a água do balde, ajoelhada próxima da rede. O bebê também foi banhado pela parteira logo depois. Era tão linda, os olhos já abertos…
Chorou pouco, nasceu no escuro, na rede e cheia de mulheres ao redor. Pensei que os bebês geralmente choram mais. Só que isso é no hospital, frio e cheio de luz em volta. Acho que o choque é maior e até traumático ao sair do útero quentinho. Saímos da oca felizes com aquele testemunho. As crianças achando graça das nossas parafernálias e até a gente achando também. Um mico brincava sorridente num dos alicerces de madeira e senti saudade da Maria Bonita e da Andrelina, minhas gatas.
Trocamos a paramentação e seguimos com nossas tralhas para avaliar o bebê com sintomas respiratórios. Na verdade, eram dois bebês e estavam bem, saturando bem… que alívio. Tentei, atrapalhada com o equipamento, registrar os dados no caderno de vigilância, para a gente seguir monitorando, mas tínhamos apenas 10 minutos para chegar no avião e partir antes de o dia se pôr.
O AIS prometeu mandar por WhatsApp os dados do segundo bebê. Tiramos parte dos EPIs, pegamos nossas coisas e fomos de carona até o avião. A mais pesada era o cilindro de oxigênio, que por sorte foi totalmente desnecessário. Quando chegamos na aeronave, Daphne notou que sua blusa estava com uma mancha enorme de sangue, lembrança do parto e da bebê Kalapalo, que até o momento da nossa partida da aldeia ainda não tinha um nome. Entramos no avião e, dessa vez, conseguimos ver com mais atenção a vista lá de cima: o contraste da floresta com as plantações de soja na fronteira do parque.
Uma amiga havia me dito que estou no umbigo do Brasil. No caminho de ida, no momento em que entrei em modo avião, tentei inutilmente escrever uma poesia “o umbigo do Brasil é de soja”, mas na volta já pensava que o umbigo do Brasil era também floresta. E o engraçado foi que minha única contribuição no parto tinha sido clampear o cordão umbilical, mas esse pensamento ficou interrompido. Pousamos bem na hora do pôr do sol, aquele momento crepuscular que pede — quase exige — silêncio. Talvez toda essa história também pedisse.
Raíssa Cardoso é médica de família e comunidade. Atua na equipe de resposta rápida para o enfrentamento da Covid-19 no Distrito Sanitário Especial Indígena do Xingu.
Imagem em destaque: Raíssa Cardoso/Acervo Pessoal