Comunidades organizadas se opõem aos interesses de uma mineradora

Oficinas de capacitação PAE Lago Grande-PA
Em um assentamento agroextrativista na Amazônia, comunidades tradicionais se mobilizam em defesa de seu território e modo de vida

Situado junto à confluência dos rios Arapiuns, Tapajós e Amazonas, numa área com mais de 250 mil hectares, onde vivem 6 mil famílias em 144 comunidades, o Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande é palco de uma disputa entre uma mineradora, com seu interesse em abrir minas de bauxita, e do outro lado, associações e organizações comunitárias que, além de resistirem à mineração dentro do seu território, propõem alternativas econômicas e sociais, expressas no Manifesto Cuipiranga.

Resultante da “1ª Romaria do Bem Viver”, que contou com 1300 pessoas que percorreram 35 quilômetros pelas estradas de terra da região durante dois dias de novembro de 2019, o Manifesto Cuipiranga, em um dos seus parágrafos, indica as vocações destas comunidades:  “Nossos modos de viver e produzir são incompatíveis com a atividade minerária. Por isso, nossa luta é para assegurar o PAE Lago Grande como um Território Livre de Mineração. O que nossa região realmente precisa é de investimentos do orçamento público na agricultura familiar agroecológica, no turismo de base comunitária, no artesanato, na medicina das ervas, na pesca artesanal e em tantas outras atividades econômicas que nossas comunidades praticam e que geram, estas sim, trabalho e renda para o nosso povo.”

A origem da palavra “Romaria” remete à cidade para onde convergiam grandes peregrinações do catolicismo, desde os tempos do Império Romano. É naquela metrópole que está o Vaticano, onde em outubro de 2019 realizou-se o Sínodo Amazônico, um grande encontro de reflexões e debates que se iniciaram a partir da visita do Papa Francisco à Amazônia no ano anterior. Entretanto, os participantes da Romaria do Bem Viver realizada em novembro de 2019 não tinham como destino nenhuma Roma. Nessa romaria, pelo contrário, indígenas quilombolas ribeirinhos agroextrativistas pescadores agricultores e agricultoras caminham em direção às suas próprias raízes (a ausência da vírgula é intencional para lembrar que uma identidade não exclui a outra).

Foi nessa região, onde hoje localiza-se o PAE Lago Grande, que aconteceram alguns dos principais capítulos da Cabanagem, a mais importante revolta popular ocorrida na Amazônia, que durou pelo menos cinco anos, na primeira metade dos “oitocentos”. Comunidade de onde partiu a Romaria do Bem Viver, Cuipiranga é reconhecida em verso e prosa, dos livros de história à oralidade ancestral, como a mais bem sucedida resistência cabana naquele período. Inspirados nessa memória, os cabanos do século 21 agora tem como ponto de partida, estrada e destino, o Bem Viver.

Publicado pelo Vaticano no dia 26 de outubro de 2019, o Documento Final do Sínodo também aponta nesse sentido, conforme um dos trechos:  “A busca dos povos indígenas da vida amazônica em abundância é concretizada no que eles chamam de ‘bem viver’, e que é plenamente realizado nas bem-aventuranças. Trata-se de viver em harmonia consigo mesmo, com a natureza, com os seres humanos e com o ser supremo, pois existe uma intercomunicação entre todo o cosmos”. A noção de “Bem Viver”, ou “Vivir Bien” e suas variantes em línguas nativas, tomou força a partir das organizações indígenas na Bolívia no início deste século e ganhou a adesão de diversos movimentos sociais pela América Latina, que se identificavam com a dimensão ecológica e social da expressão.

De acordo com a pesquisadora Mariana Baptis na sua tese de doutorado que aborda as lutas populares a partir de El Alto, na Bolívia, o Bem Viver “não é uma fórmula de bolo ou um projeto único antissistêmico bem definido, mas um caminho para onde convergem as alternativas que se estruturam a partir de algumas premissas fundamentais ancoradas no comunitarismo, numa outra ética, no princípio da relacionalidade, do equilíbrio, da complementaridade, numa outra relação com a Natureza e com os demais.”

Pelo Manifesto Cuipiranga, as comunidades do PAE Lago Grande definem que a sociedade do Bem Viver é aquela “em que nosso sustento e nosso bem-estar, a vida da nossa e das futuras gerações estão essencialmente vinculados à preservação da natureza.” Agricultor familiar e membro do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) de Santaré, Edilson Figueira reafirma a compromisso: “O que defendemos é a permanência da floresta em pé, dos nossos lagos, dos nossos igarapés. Que as famílias possam tirar o seu sustento da sua agricultura, sem fazer grandes desmatamentos, preservando a natureza e conservando toda a nossa biodiversidade, para nossos filhos, nossos netos. Hoje, se não fosse pela nossa visão política, nós não estaríamos mais aqui, como filhos nativos, nascidos e criados aqui, dentro das nossas comunidades.” 

Através da Federação das Associações de Moradores e Comunidades do Assentamento Agroextrativista da Gleba Lago Grande (Feagle), Oficinas de Capacitação levaram informações às comunidades, que por sua vez mobilizaram-se para Audiências Públicas onde foram debatidas a regularização fundiária do território, o Plano de Utilização do PAE e as ameaças representadas pela mineração. Nessas ocasiões, os moradores do PAE Lago Grande reiteraram a rejeição ao projeto de mineração. Essa posição é conhecida desde outubro de 2008, quando em assembleia realizada pela Feagle e STTR, as comunidades decidiram que não queriam prospecções e pesquisas minerais dentro da área do PAE Lago Grande.

Oficinas de capacitação PAE Lago Grande. Foto: Bob Barbosa.

Para Edilson, o desafio é conscientizar as comunidades. “O PAE Lago Grande, após a sua criação, após o seu decreto, após a criação da federação, que foi construída junto às comunidades, que criaram um Plano de Utilização, que é a regra do assentamento, mesmo assim nós ainda encontramos dificuldades porque as nossas lideranças são aliciadas pelos grandes projetos através de algumas promessas que eles trazem para dentro das nossas comunidades, de fazer ramal, construir microssistema de água, escola, dizendo que vai trazer emprego, que vai trazer desenvolvimento para a região e assim as nossas lideranças acabam sendo levadas para esse lado.”

O PAE Lago Grande existe desde 2005 para garantir a permanência das famílias agroextrativistas na terra. Possui uma modalidade de assentamento diferenciado, em que a posse da terra é coletiva, não podendo ser alienada pelos assentados. Porém, a regularização das terras do PAE Lago Grande ainda precisa ser concluída pelo Incra para que as mais de cinco mil famílias cadastradas possam acessar políticas públicas de apoio à agricultura familiar e à produção agroextrativista. Políticas públicas essas que, diga-se de passagem, foram esvaziadas a partir da eleição do atual presidente.

Enquanto isso, as pessoas que vivem da agricultura familiar relatam casos de assédio sobre as terras do assentamento. Idomil Albuquerque, da comunidade do Retiro, alerta: “Qual a estratégia hoje, na região, que se percebe? Eles não conseguem passar com o rolo compressor por cima das comunidades porque isso é desumano e gera impacto internacional na imagem das grandes empresas, mas eles estão usando “laranjas” pra fazer esse serviço sujo, oferecendo 10, 15, 20 mil pra ir tomando território. Isso está acontecendo na região. A pessoa, muitas vezes, por não ser orientada ou por não ter o conhecimento, talvez pela condição precária de vida, sem ter uma política social e econômica voltada para a classe amazônida, essa pessoa acaba vendendo sua propriedade, negociando muitas vezes terras da união, terras coletivas, para angariar um recurso possível de manter sua família e suas necessidades básicas. Não existem políticas públicas para que essa população das comunidades possa sobreviver de maneira digna e não ser submetida a fazer essas negociatas que prejudicam todo mundo. Qual a jogada das empresas: são os madeireiros, que estão agindo nas comunidades da região, tomando posses e posses, para depois de tirarem toda a madeira, darem o “passe livre” para a grande mineradora operar.” 

Para avaliar a presença de bauxita na região, matéria-prima para a produção do alumínio, a empresa estadunidense Alcoa iniciou prospecções e pesquisas minerais em 2003. Na ocasião, a Alcoa não havia pedido autorizações ao Incra ou à Feagle, e só cinco anos depois, em 2008, a sua presença na área do assentamento foi informada ao Incra, que notificou a empresa para que suspendesse as pesquisas. Em 2010, impedida de entrar no PAE Lago Grande, a Alcoa acionou a Justiça para tentar voltar ao território e dar continuidade às prospecções. A despeito da tensão com muitas comunidades, apreensivas com a possibilidade de novas prospecções, a mineradora vem, nos últimos anos, patrocinando ações sociais na região, principalmente em escolas e distribuindo materiais publicitários, na forma de panfletos, para os moradores.

Idomil, que acompanhou toda essa movimentação, questiona: “sabemos que tem grandes riquezas aqui no subsolo. A Constituição diz que o subsolo pertence à União, mas quem é essa “União”? São todos os brasileiros. Mas quem comanda as grandes riquezas do subsolo? É o poder político, é o poder privado. Então acabam removendo essas pessoas, mais fragilizadas, que estão nas comunidades pequenas.”

Como um contraponto às investidas da Alcoa sobre as comunidades, as Oficinas de Capacitação foram, em 2016, articuladas pela Feagle, STTR/Santarém e Fase Amazônia (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional). Na opinião de Iracilda Amaral, professora e moradora da comunidade de Piraquara, elas são “importantes porque é uma maneira de fazer com que a população abra os olhos. Sempre chegam pessoas nos apresentando propostas e essas propostas, muitas vezes, não são convenientes para a nossa realidade. Nós vivemos numa zona onde ainda podemos pescar o nosso próprio peixe. Apesar do progresso estar chegando, ele tem que ter um limite. Se você não souber valorizar isso que você tem aqui, um dia você perde.”

A área de interesse direto da Alcoa no PAE Lago Grande corresponde a 56,8 mil hectares e afeta diretamente cinco comunidades, entre elas a comunidade Retiro, onde mora Apoliane Roberto, que também participou das Oficinas: “Foi muito aprendizado, com todas as dinâmicas que foram feitas, foi muito proveitoso mesmo, pois tirou nossas dúvidas sobre as grandes empresas que podem prejudicar as gerações futuras.” Se somados os Requerimentos de Pesquisa da Alcoa aos de outras empresas já apresentados à Agência Nacional de Mineração (ANM), a área a ser ocupada pela mineração no PAE Lago Grande alcança 138 mil hectares, correspondendo a mais da metade dos 252 mil hectares onde hoje vivem as 144 comunidades.

Localização da PAE Lago Grande, no estado do Pará, onde vivem 144 comunidades extrativistas, ribeirinhas e indígenas espalhadas por 252 mil hectares. Imagem: Projeto Saúde & Alegria.

Para Rosinaldo Ribeiro, agricultor na comunidade de Piraquara, “as famílias ainda não tinham esse conhecimento: o que seria realmente o empreendimento, qual o impacto para o meio ambiente e para as famílias. A minha preocupação, é que se acontecer dessa empresa entrar na nossa área, nossos filhos e netos não vão mais ver o que nós vemos, mesmo pouco mas ainda temos essa riqueza, por exemplo peixe, caça e a mata. Se a empresa entrar, daqui a um tempo vai virar um deserto e nós não sabemos pra onde iremos.”

Sara Pereira, educadora da Fase, e uma das integrantes das equipes que conduziram as Oficinas, salienta que é importante “as pessoas entenderem que aqui elas já tem um modelo de desenvolvimento próprio. O que falta são políticas públicas que de fato impulsionem esse desenvolvimento. Então falta mais atendimento do poder público. E justamente nessa carência de atendimento do poder público, a empresa consegue colocar os seus tentáculos no território, que é muito carente de políticas públicas, de equipamentos públicos, de serviços públicos, e amparado nessa carência a empresa chega aqui ofertando isso e então tudo parece muito fácil.”

A ideia das oficinas surgiu a partir de uma demanda dos próprios moradores do PAE Lago Grande que participaram de um Programa de Formação da Fase, em setembro de 2015, na comunidade Maranhão, também por meio de uma articulação com STTR e Feagle. Nessa oportunidade se desencadeou um processo de capacitação das lideranças e de levantamento de informações com relação às questões produtivas locais, para que as comunidades começassem a identificar o que realmente interessava para elas. Se é o que produzem, a forma como vivem, ou se é um grande projeto de “desenvolvimento”, como a mineração, por exemplo.

“A gente sabe que os impactos causados por uma mineradora é muito grande e isso é muito prejudicial para nós, primeiro porque vai acabar com a nossa liberdade de viver, e a outra coisa que pode acontecer é a expulsão das famílias das comunidades.” O alerta é de Rosenilce Vitor, que é agricultora familiar da comunidade Maranhão e uma das coordenadoras de um projeto de incentivo à criação de galinhas, produção de mudas para reflorestamento e hortaliças orgânicas. “Nós, produtores organizados, com produtos de qualidade, nós temos mercado sim e isso faz com que a gente mostre para as grandes empresas que nós não precisamos delas pra viver e sobreviver aqui, porque nós já nascemos, se criamos e vivemos aqui da agricultura familiar.”

Nesse sentido, Edilson Ferreira reforça que “através desse nosso trabalho, de sensibilização, do sindicato, da Feagle, do grupo Mãe Terra, da Fase, da Pastoral Social, enfim, de todas as nossas organizações, com esse trabalho de base nas comunidades, nas famílias, com a visita domiciliar, a nossa população já começou a entender que a permanência do agricultor familiar no campo é importante. Para que a nossa biodiversidade que nós temos aqui, a nossa riqueza, possa permanecer aqui.”

Toda essa rede de solidariedade estava reunida na 1ª Romaria do Bem Viver, realizada em novembro de 2019 e organizada pela Pastoral da Juventude, ligada à Igreja Católica, com apoio do Grupo Mãe Terra, da Feagle, do STTR de Santarém, da Fase Amazônia e do Greenpeace. Com uma multidão, na maioria jovens das comunidades, a caminhada saiu de Cuipiranga no dia 16,  com pausas em três outras localidades, onde foram debatidos temas como políticas públicas, direitos humanos e agroecologia. 

Moradora da comunidade São Francisco, localizada à margem esquerda do rio Arapiuns, que é um dos limites geográficos do PAE Lago Grande, Thais Isabelle, de 18 anos, avalia que “a 1ª Romaria foi uma oportunidade de dizer que a juventude está acordada, presente na luta em defesa do nosso território e principalmente em defesa da nossa vida. E o mais emocionante foi ouvir as pessoas que estavam ali dizerem que estava mais que na hora de acontecer esse movimento, que pudesse envolver e despertar o povo, essa vontade de defender o que é nosso e que ninguém tem o direito de acabar com o nosso Bem Viver.”

Durante a noite e a madrugada, uma diversidade de estilos musicais animou a romaria, das canções de louvor ao tecnomelody, passando pela MPB e pelo soberano carimbó, afinal estamos também no Pará. Na manhã do dia 17, produtos da agricultura familiar e sementes crioulas foram compartilhadas e comercializadas numa feira preparada para receber os caminhantes que chegavam à última comunidade, Murui. Não era Roma, já que, para os novos cabanos, local sagrado não é necessariamente para onde se vai. É o próprio caminho. Andar junto. Olhando um horizonte comum, em que os três rios caudalosos, o Grande Lago, as centenas de igarapés, os roçados, os cultivos e a floresta estão intimamente ligadas ao Bem Viver de cada pessoa e de cada comunidade do PAE Lago Grande.

 

 

Bob Barbosa é Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Desde 2009, Bob produz conteúdo jornalístico sobre a Amazônia, com foco no Tapajós e no Baixo Amazonas, através de trabalhos em vídeo, foto, áudio e texto. Com temáticas que transitam pela agroecologia, povos tradicionais, direitos humanos, cultura popular e lutas socioambientais, a produção audiovisual e jornalística de Bob pode ser acessada em canais de comunicação de diversas organizações e movimentos nos quais colaborou.
Imagem em destaque: Comunidades realizam oficinas de capacitação no Projeto de Assentamento Agroextrativista Lago Grande-PA. Foto: Bob Barbosa.
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