Gripe espanhola em Manaus (1918-1919)

Gripe espanhola em Manaus

A gripe espanhola, influenza provavelmente originada nos confins do continente asiático, se propalou pelo mundo a partir da mutação do vírus H1N1. A doença aporta em Manaus em setembro de 1918, por contágio de marinheiros da Armada brasileira no Senegal. A pandemia levou esse nome em razão de ter sido a imprensa espanhola a primeira a divulgar sua existência, bem como seus perigos e sua letalidade. Durante sua prevalência no mundo, matou milhões de pessoas, muitas das quais em território brasileiro.

De acordo com relatos colhidos no livro “História da Medicina e das Doenças no Amazonas”, do doutor Antônio José Loureiro, editado em 2004, os primeiros casos da gripe em Manaus foram detectados no início de setembro de 1918, obrigando as autoridades sanitárias a fechar escolas, clubes, suspender diversões e reuniões com muita aglomeração humana e decretar o bloqueio portuário e fluvial.

Mesmo a despeito dessas medidas emergenciais, os focos de contaminações se alastraram imediatamente. Em poucos dias a cidade virou um pandemônio, com todas as suas localidades sendo afetadas pela violência da moléstia, cujos sintomas eram: febre alta, dores na fronte e nos músculos, catarro nas vias respiratórias e aéreas, fadiga, sufocamento e morte.

Para a infelicidade dos afetados, até aquele momento não se tinha esperança de cura e nem de profilaxias adequadas para tratar a doença. Não obstante, as adversidades de toda ordem, as atitudes mais recomendadas para a prevenção da doença incluíam o consumo de limão (que teve seu preço quadruplicando no comércio), uma rigorosa higiene bucal e corporal, além de uma boa alimentação, que funcionavam como as melhores medidas para conter a pandemia maligna.

Devido a sua velocidade estupenda, a moléstia também se alastrou pelo interior do estado atingindo muitas cidades, deixando um rastro expressivo de falecidos, a exemplo do município de Urucurituba, cujo número de mortes alcançou, pelo menos, 5% de sua população.

O governo do estado, por meio do Serviço Sanitário Estadual, criou o Comitê de Salvação Pública para enfrentar o perigo que ameaçava extinguir uma parcela da população. Esse órgão encarregou-se de recolher donativos, remédios, roupas e alimentos para distribuir entre os mais necessitados que, em razão das deficiências alimentares, eram as vítimas prediletas do surto malsão.

Vários postos de atendimentos deste comitê foram instalados em pontos estratégicos da cidade, sob a supervisão do Exército por meio do Tiro 10, da Polícia Militar e membros da sociedade civil organizada, que passaram a garantir a segurança dos que podiam ser salvos. A medicação era à base de quinino, da vacina antivariólica, do Allium sativum, da cânfora e do arsênico, todos sem eficácia comprovada, mas era o que se tinha para o tratamento naquele fatídico momento.

Tudo que se fazia não surtia resultados positivos para controlar seus efeitos nocivos e as mortes rapidamente se multiplicaram pelas ruas do centro, dos bairros e nas cercanias. O número de cadáveres era considerável, obrigando as autoridades a requisitar forças militares e de voluntários para realizar os sepultamentos dos corpos que entulhavam as estradas – os lugares mais infectados podiam ser reconhecidos a partir das nuvens de urubus sobrevoando os restos mortais.

O bairro da Cachoeirinha, um dos locais mais afetados, foi despovoado e os cemitérios ficaram pequenos para tantos cadáveres, obrigando o poder público a abrir valas comuns em lugares ermos como as margens das Estradas de Flores e do Tarumã, para enterrar os indigentes e mesmo os que eram abandonados pelas famílias, temendo mais contágio.

Calcula-se que mais de seis mil pessoas ou o equivalente a quase 10% da população de Manaus morreu em consequência do contágio direto dessa gripe, situação que se agravou em função da cidade já viver os primeiros sinais da falência da economia gomífera.

Valer ressaltar o papel da imprensa, que não deixou de realizar seu trabalho de informar a população do que estava ocorrendo à época, mesmo que minimamente. Os jornais tiveram função decisiva na orientação de procedimentos profiláticos, na prevenção e alerta dos perigos que a doença representava, bem como levando informações sobre o andamento da pandemia e seus números assustadores de contaminados, mortos e recuperados.

O “Jornal do Commércio” noticiava diariamente os números dos mortos, às vezes até os nomes dos falecidos, divulgando os locais de riscos e os postos de atendimento ao povo, assim como os plantonistas para atendimento imediato. Divulgavam também as receitas “médicas” recomendadas pelos “especialistas” e a lista de consultórios particulares habilitados para o atendimento dos pacientes mais abastados.

Uma situação que é digna de citação, com todos os méritos e louvores, nesse episódio deve-se à solidariedade do povo, principalmente dos médicos, enfermeiros, membros da Maçonaria e voluntários envolvidos no combate à pestilência, que se prontificaram a prestar sua contribuição naquele momento delicado da cidade, demonstrando mais uma vez a altivez, a dignidade e o espírito público dos manauaras. Diferente dos dias de hoje, não se viu explicitamente o oportunismo político e o desprezo com a vida humana nas ações que nortearam o combate à maligna. Em janeiro de 1919, a doença perde poder de letalidade, sendo paulatinamente extinta do território de Manaus.

AGUINALDO NASCIMENTO FIGUEIREDO é colunista da Amazônia Latitude e responsável pela seção “Viagens pelo Amazonas”. Em 2000 graduou-se em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). É professor efetivo da rede pública de ensino estadual. Escreveu três edições do livro “História Geral do Amazonas”, e é autor de mais de 500 artigos no jornal “O Estado do Amazonas” nos cadernos de “História e Geografia do Amazonas” e “Museu do Conhecimento”, trabalhos que lhe renderam os “Votos de Aplausos” no Senado Federal em 2006. Desde 2017 é membro efetivo do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), ocupando a cadeira 22, que tem como patrono o memorialista português Gabriel Soares de Souza.

 

A imagem em destque é uma arte de Fabrício Vinhas, designer da Amazônia Latitude.

 

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