Como o xamanismo organiza as relações sociais do povo Marubo

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[RESUMO] Autoras analisam o xamanismo entre o povo Marubo do Vale do Javari, região fronteiriça da Pan-Amazônia, e o papel da prática na estruturação social e nas relações de gênero da comunidade. Observam, por meio de pesquisa e entrevistas, permanência, centralidade e inserção de mulheres nos rituais.

Entre a etnia Marubo, o xamanismo é caracterizado por um forte domínio masculino, o que significa a prerrogativa do exercício do poder, este responsável por consolidar a trajetória do povo no vale do Javari.

Este texto é uma análise do mundo dos espíritos entre os Marubo, que vivem na fronteira da Pan-Amazônia. Além de pesquisa bibliográfica, foram feitas entrevistas para coletar narrativas que possibilitaram às autoras perceber as noções de cultura e etnicidade relacionadas às práticas xamânicas, além da importância da magia nos processos socioculturais e históricos da etnia do Vale do Javari.

Percebemos que as diferenças biológicas têm visibilidade e determinam papéis sociais entre eles, forjando a compreensão de gênero como uma construção social. Embora saibamos das conexões e diferenças entre gênero e divisão social dos papéis, interessa para este artigo analisar a questão no bojo dos processos socioculturais e históricos.

A organização social dos Marubo segue uma divisão “natural” do trabalho em que a mulher se vê excluída dos papéis sociais mais prestigiosos, um deles o xamanismo. Michelle Rosaldo diz, em “Mulher, Cultura e Sociedade: Uma Visão Teórica”, de 1974, que existem diversas dicotomias nos estudos antropológicos causadas pela tradição teórica que reduz a mulher ao papel de reprodutora.

Entre elas: a mulher privada versus o homem público e a mulher procriadora biológica versus o homem procriador social e cósmico, como também destaca Anne-Marie Colpron em “Monopólio Masculino do Xamanismo Amazônico: O Contra-Exemplo das Mulheres Xamã Shipibo-Conibo”, de 2005.

Para contestar a oposição homem produtor versus mulher reprodutora, diversos autores sublinharam o papel procriador do homem no plano simbólico: por meio da função de xamã, o homem se reserva o controle metafísico sobre a reprodução. A mulher, que já detém esse privilégio no plano físico, não poderia acumular esses papéis.

O xamanismo na comunidade indígena Marubo é uma prática exercida quase que exclusivamente por homens, assim como as demais comunidades indígenas da Amazônia. Algumas pesquisas etnográficas apresentam evidências da presença de mulheres xamãs em certas sociedades da Amazônia, a maioria delas, no entanto, é retratada apenas de passagem. Entendemos passagem segundo Cardoso de Oliveira, que destaca o fato de as passagens históricas e socioculturais e decisões políticas dos povos indígenas realizarem-se em meio às festas e rituais xamânicos.

A crença em poderes mágicos pode ser interpretada como um fenômeno sociocultural, sendo recorrente em inúmeras sociedades. Suas origens remontam a tempos e espaços amplamente divergentes, aspecto que funda um consenso entre os estudiosos sobre um conjunto de práticas e representações mágicas inerentes à todas culturas.

Tais práticas perpetuam-se ao longo do tempo, influenciando-se e adaptando-se junto a outros saberes sociais. Escritos e relatos dos povos indígenas amazônicos defendem a ideia de que o poder místico, a locomoção e a comunicação com o mundo dos espíritos são práticas exercidas essencialmente por homens, associando a função xamã ao elo entre o mundo dos espíritos, o curador, o caçador e o guerreiro — paradigmas da masculinidade, de acordo com Anne-Marie Colpron.

Fizemos nesta pesquisa entrevistas semi-estruturadas com alguns indivíduos da etnia Marubo oriundos da aldeia São Sebastião e Boa Vista, localizadas no rio Alto Curuçá e Médio Ituí, no Vale do Javari, mas atualmente localizados em uma maloca na BR-307.

No Amazonas, a rodovia liga os municípios de Atalaia do Norte e Benjamin Cosntant. Foram entrevistados o pajé Aramimpa, na qual contamos com a ajuda de um tradutor, e seu cunhado Pedro Duarte Comapa, que possui o chamado ao xamanismo, mas nunca continuou o aprendizado para se tornar pajé devido à morte do tio, Suzete Matias Duarte, além de outros familiares próximos.

A ideia era termos como referência os diferentes pontos de vista de ambos os gêneros em relação às práticas xamânicas do povo Marubo. As entrevistas foram gravadas e transcritas nos cadernos de campo.

Entre mundos

O Xamã é aquele que escuta o espírito que irá trazer a cura. As técnicas de cura são atos de purificação ritual do enfermo e seu grupo familiar que visam livrá-los das forças disruptivas que os ameaçam.

Simultaneamente, esses líderes representam formas de exercício do poder sobre os membros da sociedade. Preconizam a austeridade o reforço das disciplinas do corpo e do espírito, assim como promovem o controle moral dos mais velhos sobre os mais novos e dos homens sobre as mulheres.

As mulheres xamãs são pouco reconhecidas e frequentemente omitidas em relatos, poucos autores, como Anne-Marie Colpron e Celeste Cicarone, fizeram pesquisa etnográfica com foco nas mulheres xamãs. Isabelle Bellier afirma, em El temblor y la luna: ensayo sobre las relaciones entre las mujeres y los hombres maihuna, de 1991, que “apenas os homens podem ser curandeiros”, atividades que exercem com a ajuda de bebida alucinógena ayahuasca e rapé.

Durante nossas entrevistas, essa mesma afirmação foi dita por quase todas as pessoas ouvidas — apenas uma mencionou que as mulheres também poderiam escutar os espíritos em uma idade mais tardia, somente com o objetivo de ensinar aos mais novos. Encontramos algumas referências etnográficas sobre isso em outras culturas amazônicas.

Eram casos específicos de mulheres xamãs descritas como de segunda ordem e com poderes menores — Women of the forest, de Robert e Yolanda Murphy, de 1974, e no artigo Men control women? The Cath 22 in the Analysis of Gender, de Joanna Overing, publicado em 1986 — que se desenvolvem após a menopausa.

O xamanismo é uma prática que passa de pai para filho. Só o homem pode se tornar pajé, se ele tiver mais de um filho, só um terá o chamado. Já nasce com o dom, diferente dos outros, o que é percebido pelo pajé porque a criança tem medo, evita certas comidas, possui um olhar diferente, tem sonhos e fala quando dorme.

“Se nenhum dos filhos possuírem o dom, ou não nascer homens, um sobrinho deverá se tornar pajé. O dom está presente na família, é coisa de sangue”, disse o pajé Aramimpa em uma das entrevistas.

Nas falas das entrevistas é possível notar que a mulher pode atrapalhar o espírito durante o processo de cura. Por exemplo: durante a prática do xamanismo, as mulheres Marubo que estiverem no período de menstruação não podem entrar na maloca.

“Ninguém pode ter tido relação sexual com mulher antes da pajelança. Se fizeram tem que tomar um ‘copão’, uma masquita, um pau que raspa a madeira, tem cheiro de mato. Ele toma para sair o cheiro da mulher, se fez sexo antes, e tem que ser feito antes de se enfeitar e se preparar”, afirmou Pedro Comapa.

“Quando o menino que será pajé se torna homem e o espírito começa a atoar nele, ele passa por uma iniciação, um período de seis meses, e os curandeiros passam a cuidar dele, não pode ter menina atrás dele, ou seja, ele não pode se contaminar com mulher”, continua Pedro.

De domínio masculino, o mundo dos espíritos é descrito por Colpran como “transgressor de fronteira (animal/humano, morte/vida etc.), que não é constrangido por sua biologia, pode ultrapassar suas barreiras corporais.” Mulheres não podem ultrapassar essa barreira pela impureza que existe nela imposta por sua biologia, como a menstruação e o líquido amniótico secretado durante o parto.

Outros poderes

O papel da mulher em relação às práticas xamânicas é mais visível e permitido após a menopausa, quando são consideradas mais “puras”. Ensinam os mais novos e podem escutar os espíritos. Quando o jovem aspirante a pajé está se acostumando com os espíritos que não saem mais dele, a mãe ou a avó se tornam responsáveis por sua alimentação, já que sua alimentação deve ser preparada por alguém que o criou. Além disso, o iniciante deve comer sozinho até que esteja acostumado aos espíritos.

Alguns antropólogos afirmam que povos indígenas recriam suas histórias a partir de eventos mitológicos em que as mudanças históricas e socioculturais são decididas. Apesar da agressão dos colonizadores, que corroeu as organizações sociais dos povos indígenas, o xamanismo é um dos fatores que contribui para essas recomposições e afirmações de poder.

A recomposição etnográfica mostra-se constante entre os povos indígenas, principalmente na Pan-Amazônia, onde as decisões políticas são também socioculturais e onde encontram apoio para suas necessidades.

Podemos dizer que os processos históricos e socioculturais estão imbricados nas relações sociais, e que os papéis dos homens e das mulheres (e os aspectos de poder entre eles) estão presentes fortemente nas sociedades indígenas.

Nosso caso particular, a etnia Marubo, está revelado no fato de o mundo dos espíritos ser explicitamente do domínio masculino, que em diferentes momentos históricos reafirma e consolida o destaque desse povo no Vale do Javari. As formas de exercício do poder sobre os membros dessa sociedade são representadas no xamanismo.

Priscila Rocha Santos é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (PPGSCA/UFAM).
Heloísa Helena Corrêa da Silva é professora na Universidade Federal do Amazonas, onde orienta mestrado e doutorado no Programa de Pós Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia.
Imagem em destaque: Divulgação/Amazônia Latitude

 

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