Índios urbanos: a vida dos Sateré-Mawé numa Casa de Trânsito Indígena

Unidade móvel de saúde. Prefeitura de Parintins/Divulgação

[RESUMO] Como vivem os indígenas da etnia sateré-mawé na Casa do Índio em Parintins? Como utilizam serviços públicos? A vivência em áreas urbanas configura novas formas de condições de vida, diferentes das vivenciadas em terras indígenas. Esse novo cenário incita a criação de mecanismos próprios de interação com a sociedade envolvente, sem deixar de lado sua essência cultural.

Atualmente existem cerca de 10 mil indígenas sateré-mawé habitando o leste do estado do Amazonas na divisa com o estado do Pará, compreendendo as regiões do Andirá-Marau, Koatá- Laranjal e Uaicurapá. Esses indígenas, nos últimos anos, têm se deslocado de suas aldeias de origem para buscar melhores condições de vida na cidade, porém, acabam por encontrar péssimas condições de vivência em meios urbanos.

A etnia Sateré-Mawé é organizada política, social, econômica e culturalmente conforme as tradições presentes na sua formação étnica. Sateré, nome do clã mais nobre, considerado no passado como o clã dos tuxauas: chefes da tribo, é um animal que se parece com uma centopeia peluda. Mawé é o nome mais completo da tribo e também de um papagaio falante da região em que vivem.

Embora essa tenha passado por mudanças ao longo da história ainda apresenta referenciais arraigados a sua tradição, os quais direcionam o seu modo de vida. Dentre estes referenciais está a figura do tuxaua, que representa a autoridade da tribo, o cacique; o artesanato, com destaque para teçumes que viram cestos, abanos e bolsas, além de brincos e pulseiras fabricados com sementes. O guaraná guarda significados econômicos, espirituais e ritualísticos — faz parte do Ritual da Tucandeira, que marca a passagem do adolescente para homem adulto.

Na cidade, os indígenas se deparam com situações precárias de trabalho, renda, moradia, saúde e educação, decorrentes quase sempre da dificuldade ou negação de acesso aos direitos assegurados em lei e através das políticas públicas. Os povos indígenas, ao longo da história, sofreram um processo de dizimação causada pelo etnocentrismo dos não índios que acharam ser sua cultura a melhor, a mais correta.

A literatura estudada nos mostra que, na sociedade contemporânea, as relações sociais, fruto do sistema capitalista, condicionam e determinam os indígenas a saírem de suas terras e constituírem moradia fixa nas áreas urbanas. Mesmo diante dessa nova conjuntura, os indígenas que passaram a residir na Casa de Trânsito não deixaram de ser indígenas, mas agregaram a sua cultura novas formas, ideias, valores, sentimentos e sentidos.

A pesquisa foi desenvolvida em duas etapas, a bibliográfica e a de campo, em 2011, e essa discussão é uma síntese presente no Trabalho de Conclusão de Curso de Serviço Social no Instituto de Ciências Sociais, Educação e Zootecnia da Universidade Federal do Amazonas.

Foram entrevistadas sete famílias sateré-mawé que mantinham residência na Casa de Trânsito Indígena no momento da mesma. Os instrumentos para a coleta de dados quantitativos foram questionários semiestruturados e entrevistas com um roteiro pré-estabelecido.

Migração para a Casa de Trânsito Indígena de Parintins

A Casa de Trânsito Indígena, popularmente conhecida como Casa do Índio, pertence oficialmente à Diocese do município de Parintins, mas foi cedida aos indígenas para que estes pudessem se hospedar temporariamente. Ocorre que, há mais de dez anos, famílias têm morado na Casa de forma permanente. Apesar de o espaço ter sido cedido aos indígenas sateré-mawé, a Diocese de Parintins, estabelece as regras de uso e convivência no interior da Casa. Entende-se que tal situação revela a continuidade de um processo de dependência estabelecida durante a colonização entre os indígenas e os missionários.

Dentre os motivos que levou essas famílias a migrarem para a Casa está a saúde com 28,54 %, seguida de educação com 14,27 %; a opção “outros motivos” apresentou 14,29%. As outras opções elencadas no questionário como trabalho, casamento e perda da posse da terra não foram motivos que os fizeram vir para Parintins.

O fato de a saúde ser um dos principais motivos da migração está relacionado com a ausência nas comunidades de suporte médico e material para aqueles que necessitam de atenção médica contínua e permanente. Um dos nossos interlocutores comprova este fato:

“Primeiramente nós viemos por motivo da minha filha ter uma doença que impediu ela de andar direito e ter que tomar remédio controlado. Aí, a mulher com dois filhos meu ficaram aqui, depois ficaram pra estudar […]”, disse José, nome fictício, assim como todos os outros, para preservar a identidade dos entrevistados.

Quanto à educação dos filhos, também elencada, compreende-se que o contato cada vez maior com a sociedade envolvente faz surgir nos indígenas o sentimento da importância da formação escolar. Roberto Jaramillo Bernal, em “Índios Urbanos: processo de reconformação das identidades étnicas indígenas em Manaus”, de 2009, diz:

“A necessidade de estudar é a primeira razão expressa quando se trata de falar da migração de um núcleo familiar. No imaginário de todas as tribos amazônicas que tiveram contatos mais ou menos prolongados e intensos com a sociedade nacional, a educação das crianças é uma prioridade que determina fortemente o fluxo migratório de grupos familiares inteiros. Na origem da criação dessa ideologia, encontra-se o trabalho “civilizador” realizado pela igreja Católica, mas também pelas forças armadas, pelos funcionários da Funai, e, mais recentemente, por outros organismos, tais como as Secretarias Municipais e Estaduais de Educação ou certas organizações não-governamentais”.

É dentro dessa realidade e sob essa ideologia que as famílias que passaram a residir na Casa de Trânsito vieram para Parintins. Para estes, a educação dos filhos é importante, uma vez que os estudos permitirão que os mesmos voltem para suas aldeias de origem para ali conribuírem com a sua família e a comunidade como um todo.

Durante a pesquisa foi apresentado um motivo para a migração não previsto como elemento de análise, referente à representação indígena. Em conversa com o responsável desta família, ele alegou que veio para a cidade por uma escolha e indicação das lideranças indígenas Sateré-Mawé e pelo tuxaua geral da Tribo.

“Vim para a cidade por escolha do tuxaua geral que me nomeou para ser o coordenador responsável pela casa, para que eu pudesse tomar conta dela”. O fato de este indígena migrar para Parintins encarregado de uma obrigação/função política demonstra a autoridade que o tuxaua geral tem sobre seus parentes e se reflete no que expõe a pesquisa que Bernal realizou sobre os índios urbanos em Manaus. Um dos motivos encontrados para os índios virem para a cidade se refere ao fato de terem sido “eleitos para representar suas associações ou organizações indígenas; é o caso do índio do sexo masculino. Para ele viver na cidade foi uma exigência da luta pela terra, pela organização, pelos direitos”, diz no livro.

Os indígenas, visando consolidar direitos, deixam suas terras para fixar residência na cidade, a fim de lutar por políticas públicas para sua comunidade e para os próprios indígenas que residem nos centros urbanos.

Sendo assim, ao migrarem para Parintins, não tendo parentes ou moradia própria, passam a residir na Casa de Trânsito Indígena. Ocorre que a vida na cidade apresenta condicionantes que implicam na permanência destes indígenas, dentre estes estão o desejo de continuidade dos estudos dos filhos e melhores serviços de saúde. Desse modo, os sateré-mawé acabam permanecendo por muito mais tempo. Essa permanência vai ter relação direta nas suas condições de vida, uma vez que a consolidação ou a negação de direitos através do acesso às políticas públicas influenciam-nas diretamente.

A vida dos Sateré-Mawé na Casa

Para se falar em condições de vida é necessário levar em consideração alguns aspectos demográficos e socioeconômicos, os quais servem como indicadores sociais para mensurá-las.

Os indicadores utilizados neste trabalho se referem à educação (grau de instrução e oferta de educação escolar indígena), situação de trabalho e renda, composição da família/arranjos familiares, acesso aos serviços de saúde (ocorrência de doenças e cobertura dos serviços segundo a ótica dos indígenas) e habitação (condições de moradia). O primeiro indicador social refere-se à composição das famílias aqui abordadas, bem como os arranjos familiares que as caracterizam (estado civil).

A pesquisa revelou que 14,29% dos representantes vivem sozinhos na Casa, enquanto solteiros;o mesmo percentual foi identificado na composição familiar por 5 pessoas, cujo estado civil se apresenta como união estável; mas algo importante a destacar é o fato de que 71,43% das famílias são constituídas por mais de 6 pessoas, sendo 28,58 %, sendo casados, 14,29 %, viúvos e 28,58%, em união estável.

Desse modo, percebe-se que as famílias formadas por mais de 6 pessoas são constituídas por pelo menos mais de um arranjo familiar; ou seja, além de haver a presença das pessoas de referência da família (pai e mãe) e filhos, há ainda, os filhos dos filhos e marido/mulher destes filhos.

Essa realidade demonstra que dentro de um grupo familiar existem outras pequenas unidades familiares. Ocorre que a maioria destas famílias, se não todas, mesmo sendo constituídas por outras unidades, continuam sob a responsabilidade do chefe maior, que conforme a pesquisa 42,86% são mulheres e 57,14 %, homens.

Outro indicador social se refere ao grau de instrução dos chefes das famílias indígenas residentes na Casa de Trânsito: 28,57 % nunca frequentaram escola; 42,86 % possuem o Ensino Fundamental incompleto e 28,57 % pessoas possuem o Ensino Médio incompleto. Esses dados evidenciam que os chefes das sete famílias que residem permanentemente na Casa de Trânsito Indígena não concluíram seus estudos. O principal motivo aferido se refere à falta de oportunidades de estudo em suas comunidades.

Para complementar a análise acerca da escolarização dos chefes das famílias residentes na Casa de Trânsito, procurou-se verificar se este grupo, ao vir para cidade buscou continuar ou dar início a sua escolarização. Em conversa, tomou-se conhecimento de que aqueles que tiveram oportunidade de estudar o fizeram em terras urbanas, inclusive através da Educação de Jovens e Adultos – EJA:

“Na área o estudo no meu tempo era sempre difícil, aí eu vim pra cidade estudar… mas aí né… eu acabei desistindo e depois que eu arrumei filho ficou mais difícil ainda, eu passei um tempo estudando na EJA, mas era muito longe e difícil e tinha os filhos, aí desisti”, afirma Maria em entrevista de 2011.

Conforme a fala desta chefa de família, que há dez anos reside na Casa de Trânsito, na área indígena, por volta de vinte anos atrás, existiam poucas escolas e mínimas oportunidades de estudo. Assim, vindo para cidade, buscam como opção a escolarização por meio de um sistema de aceleração das séries através de disciplinas modulares. Ocorre que nem sempre estes costumam terminar estes estudos, ainda que de forma acelerada.

Outra situação encontrada, frente à falta de escolarização oficialmente reconhecida, é a perda de oportunidades de empregos. Nesse sentido, acredita-se que os indígenas chefes das famílias residentes na Casa, certamente, encontram maiores dificuldades para conseguir emprego do que aqueles que possuem o Ensino Médio ou nível superior completo.

Para verificar tal assertiva apresentamos os indicadores sociais referentes à situação de trabalho e renda. Das famílias entrevistadas, 71,43% atualmente são autônomas, sendo que, destas, 42,86% tem como renda familiar menos de um salário mínimo e 28,58%, até um salário mínimo. Pudemos verificar que 28,57% são aposentados, porém, destes, 14,28% tem como renda um salário mínimo e 14,28%, dois salários mínimos ou mais.

Assim, evidenciamos que estas famílias têm como fonte de renda o emprego informal. A principal atividade laboral desenvolvida pelos indígenas residentes na Casa de Trânsito é o artesanato, instrumento de geração de renda para os indígenas da Casa. Estas famílias trabalham com o artesanato, mas não recebem incentivo, principalmente material para uma maior produção. A pesquisa também revelou que outra fonte de renda das famílias cuja situação de trabalho foi identificada como autônoma diz respeito aos programas de transferência de renda ou benefício social.

Das famílias residentes na Casa de Trânsito, 20% recebe Benefício Social e 80% estão inscritas em programas de Transferência de Renda, nesse caso o Programa Bolsa Família. Sobrevivem em grande parte do dinheiro do Bolsa Família, uma vez que nem sempre a comercialização do artesanato consegue cobrir todas as despesas.

O acesso aos serviços de saúde, levando em consideração a cobertura dos serviços segundo a ótica dos indígenas, foi outro indicador social utilizado. A pesquisa revelou que 28% das famílias, quando acometidas por enfermidades, recorrem aos centros de saúde existentes no município de Parintins; 29% recorrem à equipe da CASAI/SESAI e 43% utilizam os hospitais.

Com base nestes dados, percebemos que os sateré-mawé urbanos costumam se utilizar mais dos serviços de saúde oferecidos pelo SUS do que pelo órgão indigenista, no caso a Secretaria Especial de Saúde Indígena – SESAI. Este fato se dá por dois motivos, a saber: A SESAI não é responsável pelo atendimento dos indígenas que residem em área urbana, apresentando resistência quando procurada por esses grupos.

Outro motivo se refere ao fato de que os indígenas costumam buscar atendimento médico somente quando estão acometidos por enfermidades, buscando, então, a emergência dos hospitais do município. Conforme nos revelou uma de nossas informantes:

“Nossas crianças de vez em quando ficam doentes, mais é de gripe. Aí a gente leva no posto que tem aqui perto, quando a agente de saúde marca a consulta para nós ou corremos na CASAI. Mas, tem vez que nós levamos na emergência mesmo, porque lá tem médico e atende rápido”, conta Maria.

A fala desta indígena demonstra que a busca por serviços de saúde nos hospitais é uma prática comum entre os índios da Casa, uma vez que no setor de emergência dos hospitais não é necessário marcar previamente uma consulta. Contudo, verificamos que este e outros serviços são vistos com certa insatisfação pelos moradores da Casa.

De acordo com o senhor José: “A saúde é complicada aqui na cidade. Nós costumamos enfrentar dificuldades quando vamos na CASAI ou no hospital, porque demora muito o atendimento. É isso, no hospital demora muito para o médico atender o índio e, na CASAI, não é toda hora que a gente pode contar”, afirma.

Por último, apresentam-se como indicador social as condições de moradia na Casa. Buscamos avaliar estas condições a partir do modo de viver indígena. 14% das famílias consideram as condições timas, 28%, boa, 29%, regulares e o mesmo percentual para precárias. Deste modo, percebe-se que os indígenas, em sua maioria, não estão satisfeitos com as condições de moradia da Casa, principalmente no que se refere ao aspecto estrutural. A estrutura física da mesma é a principal reclamação dos indígenas, já tendo sido, inclusive, alvo de denúncia nos meios de comunicação local e nacional; fato que foi observado em uma de nossas visitas a Casa.

No entanto, acredita-se que a situação de maior vulnerabilidade dos moradores da Casa de Trânsito se dê com relação à segurança da posse/permanência no espaço, pois este foi cedido para os indígenas em ordem de comodato pela Diocese Católica de Parintins.

“De vez em quando ocorrem alguns conflitos aqui. Uma pessoa que mora aqui fez algumas denúncias na rádio e para a igreja e o bispo já falou que nós vamos ter que sair daqui”, afirma Joana.

Sendo assim, percebe-se que os indígenas não tem nenhuma segurança com relação a sua permanência nesse lugar. Diante dos indicadores elencados acima, verificou-se que as famílias enfrentam dificuldades financeiras e de acesso aos serviços de saúde e de educação. Na cidade, observamos, ainda, que estas pessoas não têm perspectivas de emprego formal e se apoiam na renda oriunda de Programas de Transferência de Renda do governo federal e do artesanato por estes produzidos.

Contudo, embora tenham o artesanato como um instrumento de resistência e afirmação étnica, não possuem incentivos materiais e financeiros para alavancar sua produção. Quando perguntadas sobre a vontade de voltar para sua comunidade de origem, com exceção de uma família, todas manifestaram este desejo, embora prevaleça a necessidade de buscar melhores condições de acesso aos serviços de saúde e de educação, uma contradição revelada pelos dados da pesquisa.

Reflexos

Os povos indígenas são possuidores de uma cultura que respeita o próximo, a natureza e a si mesmo. Seu ethos é guiado por um espírito de reciprocidade coletiva que determina suas relações sociais. Em contato com a sociedade branca, estes, em um primeiro momento, estranham-na, mas absorvem costumes na tentativa de conseguir sobreviver na selva de prédios.

Percebemos uma realidade torpe enfrentada pelos sateré-mawé urbanos residentes em Parintins, que reflete a forma histórica com que os indígenas são vistos e tratados pela sociedade ocidental. O fenômeno da migração é frequente entre os sateré-mawé, é um processo cultural que ocorre desde suas origens étnicas.

No entanto, além do fator cultural, a busca por melhores condições de saúde e educação aumentou a frequência dessas mudanças, embora Parintins tenha se revelado um ambiente de piora. Vivendo de programas de transferência de renda do governo, além do seu artesanato, que permanece como instrumento de afirmação de identidade étnica, os sateré-mawé vivem a pobreza.

Ressaltamos a importância de políticas públicas voltadas para esta camada da população brasileira que se junta aos grupos considerados vulneráveis. Os sateré-mawé urbanos enfrentam em seu cotidiano as mais complexas refrações da questão social e, não bastasse isso, são relegados a uma condição de tutelados.

Maria de Lourdes Ferreira da Silva é assistente social especializada em saúde pública e da família pela Universidade Federal do Amazonas.
Milena Fernandes Barroso é professora no curso de Serviço Social do Instituto de Ciências Sociais, Educação e Zootecnia da Universidade Federal do Amazonas.
Imagem em destaque: Unidade móvel de saúde. Prefeitura de Parintins(AM)/Divulgação.

 

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