Terra, Sol e o Xingu

DOI: 10.33009/amazonia2021.11.4

terra do meio

Uma árvore emerge de uma área alagada.

Com as obras da usina de Belo Monte, o nivel da água ficou permanentemente como na epoca da cheia.(Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

terra do meio

teus ombros suportam
a terra lavada no centro do mundo

garimpos formigas cavando
na lama esse poço sem fundo

toneladas de castanhas mal pagas

secas pancadas
de ouriços
partindo
cabeças

excelsa lágrima incendiada

bertholletia fumegante
que o fogo não mata
mas deixa isolada

silêncio na mata
um mogno se esconde
atrás de uma rebolada

mas seu primo cedro
já escuta o ronco

e sente nas pernas
os dentes do bronco

estala de dor
o tronco inocente
em queda brutal

colunas partidas

do fuste e
do homem

que corta
que corre
tropeça
nos nós
dos cipós

galho maciço
com medo do chão
acerta nas costas
paralisa o peão

medulas expostas

da árvore morta
do homem no chão

mascando capim
o gado medita

quanto mais pasto
mais morte se avista

é gado de corte
desdita bovina
sabe que morte
é machado
é pancada
é sina
de faca
assassina

nuvens pastam no céu
longe do capim
sob o dossel

jamaxi
em cabeça
de seringueiro

tapa com peso
os ouvidos e deixa

preso o pescoço
troncos membros tesos
embora indefesos

Pajé Pajé chamai Tupã
fechai o corpo desse rio

fazei dos peixes flechas mordentes

piranhas cravai enormes dentes
no concreto da barragem

piracema violenta lançai
suas lâminas de escamas
contra o muro

dezoito sucuris tornai do fundo
do verde escuro
Xingu barrado

engoli cada turbina assassina

destroçai num abraço toda maquinaria

destruí a prisão do rio

libertai as pernas das corredeiras

e deixai que as águas
desafoguem peixes

reguem pedrais

respirem sem dor

e ponham
peixes
na magra
canoa
e ponham
riso
na cara
magra
do pescador

terra do meio
terra do meio

teus ombros suportam
a ganância do mundo

e ela pesa mais que o Xingu
quando está cheio

o que é o Sol

Uma canoa no Xingu. Ao fundo, o por do sol que deixa a paisagem dourada

Raimundo Campos da Silva, 60 anos, casado, pai de 7 filhos, por 4 dias no rio Xingu, durante a pesca. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude).

o Sol é posseiro
dedos de luz
em treva
lavrada

o Sol é urucum
sangue puxirum

colheita das águas
pra descer mais água

o Sol é luz
câmera
in
Sol ação

o Sol é casamata
margem aveludada
rio verdemata

na mata

verdemata
que essa gente
ingrata
desmata
pra plantar
a planta
da pata
de bois
que depois
mata
mata
mata

o Sol é crescente
a Lua, xinguante

dentes de pedra
na boca repleta
do rio migrante

árvores caninas
dentes de ouro

gengiva roxa de Ipês

o Sol é garimpo de flores

o Sol é de-tarde
alaranjado
escamas vermelhas

o Sol é tanto respingo tanta
cor que nem Basquiat

o Sol é pedral pacamã tracajá

tucunaré, ô tucunaré!
o que é
o que é
que o Sol é?

 

xingu

para Roberto Rezende

Um homem ao lado de uma canoa na terra firme. Ao fundo, está escrito "Nível Água Belo Monte"

Marcação do nível das águas do Xingu durante a época de cheia. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

primeira vez no xingu e
eu imaginava os entocados braços
ao longo do corpo desengonçado,
já estariam secos? necrosados
sem água-verde-sangue?

depois ouvi alguém dizer ‘os arara’
e como se referia ao povo arara
na palavra não cabia mesmo o plural
que acompanha o artigo,
foi assim que achei ‘os arara’
ainda mais lindos que ‘as araras’
voando por cima do barco

– risos azuis, vermelhos

ervas, resinas, cinzas, jenipapo, urucum
o xingu abençoa se você pronunciar:

mebêngôkre kayapó kararaô

(mas só vale se disser em voz alta!)

mebêngôkre kayapó kararaô

o beiradão é mais silencioso de dia
porque boca-da-noite vem tudo que é onça,
porcão, veado, sapo, anta, pium, puim, pium

ouviu? são os tracajás mergulhando
seus escudos indestrutíveis

aliás, certa manhã na praia – pálido beiço de rio –
vi tanto escudo abandonado, areia úmida
sobre eles, sangue escuro aqui e ali,
vísceras, uma fogueira já fria, ossos

e milhares de ovos enterrados como sementes

contam que um pescador certa vez
fisgou um jaú no poção
lá pras bandas do iriri
que o peixe arrastou a canoa dele por treze dias
e só se rendeu porque era doido por fumo de corda
o pescador esfregou o fumo na linha
o peixe se embebedou
foi subindo subindo subindo
e… glup! engoliu o homem

coisa do iriri, foi lá também
um pacu de seringa cresceu tanto
que a lua, envergonhada, nunca mais saiu,
e toda noite o pacu se eleva, inflável,
sobre a mata, sobe, sobe tanto, que
lá do alto pode ver o
manelito
riozinho do anfrízio
morro verde
tucaiá

mebêngôkre kayapó kararaô

(você leu em voz alta?)

mebêngôkre kayapó kararaô

do lado de cá, a barragem
cinturão de concreto
estrangula o xingu

na volta grande
pedras pedras pedras
são o cinza esqueleto de um defunto
antes verde rio em corredeira

foi de lá que vieram aqueles juruna
ali na orla
empoeirados
a pele seca
como o rio
de onde foram expulsos

família inteira
pai, mãe rindo tanto
quanto os curumins
assistindo a uma partida
de vôlei na areia

outros dobrando à esquina
vagando pelo comércio

são refugiados do xingu
por muitos confundidos com
refugiados de venezuela, estes
pedindo aqui no semáforo
da brigadeiro
lá no da sete

altamira apaga as luzes
pois não pode pagar a conta
mas não dorme
porque o sono é dos injustos

madrugada quase fria
enquanto o rio xingu passa
devagar, silencioso,
olha para cada casa,
porto, cão, gato,
gente, cada rosto
mal iluminado
pelos postes
da usina

 

Paulo Vieira é professor na Faculdade de Etnodiversidade, Curso de Educação do Campo, da Universidade Federal do Pará (UFPA-Campus Altamira), Doutor em Literatura Brasileira (USP), Mestre em Populações Tradicionais da Amazônia (UFPA) e Engenheiro Florestal (UFRA). Publicou os poemas de “Infância Vegetal (2004)”, “Orquídeas Anarquistas” (2007), “Livro para pescaria com linha de horizonte” (2008), “Pablo no mundo das nuvens” (2017) e mais quatro livros.

 

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