A Voragem no Paraíso Suspeito
A narrativa de José Eustasio Rivera na leitura de Leopoldo Bernucci
Paraíso Suspeito: A Voragem Amazônica
Autor: Leopoldo Bernucci
Editora: Edusp
Ano: 2017
É correto afirmar que não é nada simples conjugar uma obra no início do século XX de tamanha importância em páginas de um livro, embora se possa dizer que Leopoldo Bernucci o faz de maneira instigante, informativa, sem deixar aquela sensação de que há algo a dizer, cumprindo, de tal modo, o que se propõe, conforme indica no texto introdutório do livro. Na leitura de Paraíso suspeito, Bernucci situa a narrativa de Rivera em cinco seções. No primeiro momento, identifica os que considera os leitores de Rivera, a crítica, e em seguida destaca as influências das leituras de autores brasileiros, inclusive de Euclides da Cunha, na produção do escritor colombiano; num fio de conexão, condiciona a narrativa de La Vorágine como romance sociopolítico e posteriormente considera o olhar Naturalista do escritor, fechando com o que identifica como os infortúnios da ficção.
O título Paraíso suspeito: a voragem amazônica, no ver do autor, carece de uma explicação. Explicação essa, para quem conhece o trabalho de Bernucci sobre Euclides da Cunha, não seria tão necessária, embora, na sua gentileza democrática, o autor não se furte a apresentá-la. Ei-la então nas palavras do próprio Bernucci:
Historicamente, a Amazônia sempre esteve associada à noção de Paraíso, embora de maneira questionável. A suspeita nasce da ideia de que essa selva tropical é também um “Inferno Verde”, como foi sugerido por alguns daqueles que ali estiveram como ficou plasmado na ficção do escritor Alberto Rangel. Razões de ordem histórica, científica e estética fizeram com que viajantes e naturalistas ao longo dos séculos descrevessem a grande floresta de modo paradoxal. […] Esse paraíso suspeito situa-se num vórtice, um lugar de destruição contínua e natural, provocando a lenta e incansável devoração da matéria, não só do seu mundo vegetal, mas também do reino animal, inclusive do homem que nele habita. […] Ao escrever sobre a majestosa floresta, tivemos nós também que lidar com este ponto de vista problemático.
[…]
Demos ainda à floresta amazônica a denominação de “paraíso suspeito” por sua capacidade de esconder ou disfarçar seus perigos. Uma visão algo complacente desse vasto território verde poderia demonstrar que suas densas matas, seu difícil acesso, sua malária e outras árduas condições ambientais ajudam a manter de longe dele os curiosos ou intrusos.
– trecho de “Paraíso Suspeito: A Voragem Amazônica”, de Leopoldo Bernucci.
Há, em Paraíso suspeito: a voragem Amazônia, um filete do que a história ainda não explicou por completo em nossos tempos. Bernucci nos lembra de que o genocídio de índios nas três primeiras décadas do século passado continua hoje, não apenas na Amazônia, mas também em outras partes do mundo com grupos étnicos, como aconteceu no Bangladesh, na Ruanda e vem ocorrendo em outros países do continente africano, assim como também em países latino-americanos, inclusive no Brasil, em terras amazônicas. A crueldade com os invisíveis que Eustasio Rivera aponta no seu La Vorágine não fica nas páginas da ficção – se bem que a ficção expressa na narrativa riveriana confunde-se com a realidade. Constata-se, em pleno século XXI, inúmeros casos de trabalho escravo, principalmente no Estado do Pará, o campeão nesse tipo de atrocidade – uma busca no site da Justiça do Trabalho pode dar a dimensão dessa situação. Os Aranas e Funes de outros tempos metamorfoseiam-se em peles de senhores do agronegócio brasileiros, afrontando a Lei e o senso humanos em solo paraense e em outras terras brasileiras.
De acordo com Bernucci, é diverso o número de resenhas que se tem sobre a produção romanesca de Rivera, visto que La Vorágine foi traduzido em vários idiomas. A maioria dos leitores do escritor colombiano tece críticas favoráveis à obra, embora, quando de seu lançamento, em 1924, as resenhas que se escreveram sobre o romance tenham sido parcas e, de tal modo equivocadas, pela incompreensão dos objetivos do autor, outras focalizando as discussões nas questões regionalistas e linguísticas, estas de certo modo secundárias, o que, no ver de Bernucci, obscureceram as extraordinárias qualidades estética e histórica do romance. “[…] um número muito reduzido de leitores, inclusive críticos conseguem apreciar a forma como Rivera usa as fontes históricas ligadas a essas atrocidades, fontes que emprestaram ao romance um realismo único, visto que através delas o autor assim pôde encontrar uma solução para chegar à verdade por meio da ficção”. Apesar disso, a crítica reconhecia a importância que La Vorágine apresentava, principalmente para o espaço político e da justiça social colombiana, no contexto literário do início do século XX, quando temas relacionados ao patriótico e à realidade social eram bastante debatidos, numa sociedade que começava a sair dos estrados românticos. Alguns excertos das resenhas são apresentados na segunda edição, em que Rivera apresenta ao público as considerações dos leitores sobre a obra. No ver de Saul de Navarro, crítico da década de 1920, La Vorágine não se apresentava como um romance vão, era como “um pedaço de carne que sangra e treme nas mãos da pessoa”.
Na década de 1930 são poucas as referências à obra de Rivera; já em 1940, as críticas parecem se voltar contra o romance, sendo considerado desimportante e inferior, como o classificou Otis H. Green; visto como um romance de um escritor confuso, no ver de William E. Bul, e até mesmo excluído da lista dos grandes romances do seu tempo, como fizera Antonio Torres-Ríoseco. Já, na década de 50, segundo Bernucci, a crítica parecia haver perdido o interesse por La Vorágine, vendo-o como irrelevante. Na década de 60 e 70, com o que se chamou Boom Latino-americano, capitaneado pelos escritores que faziam parte desse novo momento da literatura latina, a crítica retorna ao romance de Rivera, algumas com tom de censura, adjetivando-o até mesmo como ingenuamente autoritário e demagógico, demasiadamente telúrico, como o classificaram Carlos Funtes, Gabriel García Marques e Mario Vargas Llosa. Para Llosa, como um romance de cunho regionalista, La Vorágine constituía-se extremamente pobre pela sua rudimentar estreiteza provinciana. Fuentes chegou a considerar o romance mais próximo da geografia do que da literatura, como se escrito fosse pelas mãos de exploradores do século XXI, dado o seu caráter, no ver os críticos, regionalista, principalmente pelo uso exagerado de vocabulário regional e até mesmo de mau gosto, ou maniqueísta ao cabo das caracterizações da personagem Arturo Cova.
Para Bernucci, as críticas de alguns escritores do boom causam de tal modo surpresa e soam um tanto estranhas no que diz respeito ao caráter histórico, documental e de denúncia de La Vorágine, uma vez que muitos desses escritores escreveram romances sobre a ditadura e violência no continente sul-americano e, a exemplo da obra de Rivera, também se ocuparam de temas sociais e políticos.
Apesar das críticas – tantas delas injustas – houve os que aplaudiram o romance, tomando-o como uma narrativa que não se ajustava às cópias e aos modelos a que o público acostumara-se, fazendo-se um romance de caráter latino-americano, de denúncia contra os crimes cometidos nas brenhas da selva contra caucheiros, indígenas, jovens, mulheres e idosos, até mesmo crianças, para cujo acontecimento as autoridades pareciam fechar os olhos; e talvez por isso as duras críticas daqueles que ignoravam as atrocidades descritas no romance, inclusive sob o silencio de autoridades do governo colombiano, de quem Rivera sente a falta de defesa e a quem faz observações nada amistosas, como a enviada ao ex-cônsul Luis Trigueros: “Como você pode não mover uma ação oficial para quebrar-lhe as correntes? Deus sabe que, ao compor meu livro, não obedeci a nenhum outro motivo senão o de buscar a redenção para esses infelizes que têm a selva como cárcere”, segundo citação retirada do livro de Bernucci. Alejo Carpentier fora um dos que saíram em defesa de Rivera e seu La Vorágine, buscando desfazer as injustiças que cambiavam contra Rivera e seu romance, no trato dos argumentos sobre o maniqueísmo com que alguns escritores adjetivavam a personagem Arturo Cova. Além disso, Carpentier compara o romance do escritor Rivera a outros Don Segundo Sombra e Dona Bárbara, considerados pelo escritor cubano como os três romances ditos “romances da terra” que mudaram radicalmente o panorama do romance latino-americano, principalmente pelo fato de colocarem a natureza mais forte que os homens, além disso La Vorágine põe no centro de sua narrativa as questões trabalhistas e os negócios escusos dos investidores britânicos, embora não tenha sido contundente com relação ao regime de escravidão de Putumayo.
A partir da década de 70, segundo Bernucci, outros críticos passaram a fazer uma releitura de La Vorágine com viés positivo, abordando as diferentes facetas do romance, outros adensando os argumentos de Carpentier, com vistas a desfazer o rótulo que fora dado a La Vorágine de “romance primitivo”. Entre os leitores destacam Doris Sommer, Sylvia Molloy, Monteserrat Ordóñez Vila e Carlos Alonso, entre outros.
Conforme analisa Bernucci, no segundo capítuloRivera e o Brasil, a relação de Eustasio Rivera com o Brasil e escritores brasileiros, na influência da escrita da narrativa de La Vorágine, é estreita, a considerar sua passagem pela Amazônia brasileira e por cidades como São Gabriel da Cachoeira, Manaus e Belém quando do seu trabalho como membro da Comissão de observação de fronteira admitida pelo governo colombiano. Em sua estada no Brasil, Rivera teve contato com obras e leituras de escritores como Alberto Rangel, Inferno Verde, Euclides da Cunha,Os Sertões e À margem da história, Mário Guedes, Os Seringaes, além de ter adquirido obras de outros poetas e escritores, como Graça Aranha, Silvio Romero, Casimiro de Abreu, José Veríssimo, José de Alencar, Olavo Bilac e Raimundo Correa. Os três primeiros romancistas, Rangel, da Cunha e Guedes influenciam, no ver de Bernucci, a narrativa de Rivera, o que o leva a ser acusado, por alguns dos seus críticos, de plágio, principalmente de trechos dOs Sertões e até mesmo de artigos do livro À margem da história, de Euclides da Cunha.
Para Bernucci, se há indícios de plágios da obra de Euclides da Cunha no romance de Rivera – na análise, o ensaísta apresenta alguns quadros comparativos de trechos dOs Sertões E La Vorágine em que se percebem claras semelhanças – entre esses dois escritores há grande proximidade de caráter, cargos que exerceram e idade de morte, além dos problemas enfrentados quando de seus deslocamentos pelas terras amazônicas onde teriam que resolver questões ligadas a interesses de seus países, também seus interesses pelos estudos da Amazônia e pela escrita sobre os problemas que, àquela época, perturbavam os trabalhadores dos seringais amazônicos. Euclides pensava escrever o seu “Paraíso perdido” para vingar a Hileia amazônica, certamente onde denunciaria as brutalidades da escravidão e outras arbitrariedades dos seringais da Amazônia brasileira. Eustasio Rivera planejava seu , em que prometia denunciar “as arbitrariedades dos magnatas dos campos petrolíferos, a exploração do trabalhador, […] os modos sujos como os contratos foram redigidos, enriquecendo mais um grande número de patifes do que a nação”. Ao fim das contas, os dois morreram antes de pôr em prática seus projetos de escrita de narrativas.
No ver se Leopoldo Bernucci, interpretar a visão que Euclides e Rivera tiveram da Amazônia torna-se uma tarefa um tanto difícil, se se levar em conta tão somente Euclides como engenheiro e Rivera como advogado, pelo risco de perder de vista o poeta altamente imaginativo que viveu em cada um. Assim como se torna complicado considerar os dois escritores apenas como poetas, uma vez que suas ideias estão baseadas em observações pessoais, impressões subjetivas e menos em evidências históricas. O olhar de Euclides, no ver de Bernucci, aparece numa abrangência de larga amplitude em relação ao de Rivera, pois oscila da natureza à paisagem representada, e é impossível separar o Euclides, homem da ciência, do Euclides artista posto que seu modo de raciocinar é produto dessa dualidade, e o modo como Euclides via a Amazônia de um modo paradoxal, aos fragmentos e num todo, aproximando do pensamento Heideggeriano, um estar em ser. A Amazônia, para Euclides, estava evoluindo continuamente, e sempre adiando a sua completude.
Não diferente era o olhar de Rivera ao de Euclides. Para o escritor colombiano, a Amazônia era diferente daquela que imaginara, num primeiro momento de potencial utópico, como celebrada em Terra de Promissión, depois como desencanto, quando, a exemplo de Euclides, vislumbra o homem em suas lutas diante da natureza. A selva tropical, para Rivera, seria como a hidra mitológica, uma vez abatida, deve-se cortar-lhe a cabeça imediatamente; porque, do contrário, ela ressuscitará com maior força; traduzindo-se, assim, não numa descrição imaginativa, mas numa definição real e objetiva, com dotes poéticos, com valor figurativo que se pode nomear e sentir. E, a propósito, numa comparação simplista até, mas não menos significativa, a Amazônia, nos escritos de Euclides e Rivera, era, como também a via Rafael Reyes, o resultado das metáforas conflitantes de El Dorado e do inferno verde.
Esse valor figurativo, que Rivera advoga, e não escapa do olhar de Euclides, quando se percebe a selva tropical num transe entre o real e o mítico, permite o que Paes Loureiro chama de criação da teogonia cotidiana, num espaço infinito em que a visão e o repouso do espírito são desfeitos pela encantaria do olhar e da diversidade da imaginação. Enquanto o olhar contempla em repouso, o espírito trabalha incansável nas minas subjacentes da imaginação, quando o equilíbrio inquieto da solidão leva o homem que observa a buscar a realidade além da superfície, transferindo a profundidade da alma para a natureza. “Essa transfiguração do real pela viscosidade ou impregnação do imaginário poético acentua uma passagem entre o cotidiano e sua estetização na cultura. […] Interesse que direciona o prazer da contemplação à forma das coisas marcadas pela ambiguidade significante própria do que é estético”.
Os críticos também associavam a escrita de La Vorágine à de Inferno Verde, de Alberto Rangel. As semelhanças, embora superficiais, em sutis intertextualidades no ver de Bernucci, ocorrem na figura, práticas e atitudes de alguns personagens ou de informações sobre a flora, até mesmo numa relação entre a heroína Maiby, do romance de Rangel, e Alicia, de personagem de Rivera, no que diz respeito à cena de tortura; Maiby é torturada com o corpo sangrando atado a uma árvore; Alicia é a própria árvore; ambas constituem-se metáforas da seringueira, já que seus corpos, retalhados em torturas, sangram, embora Alicia tenha sido transformada numa araucária. O próprio título do romance de Rivera, La Vorágine, no ver de Bernucci, poderia ter sido uma ideia da leitura de um conto de Rangel, na adaptação da palavra portuguesa “voragem”, com sentido de velocidade brutal, ou vórtice, da floresta tropical. Entretanto, como o próprio Bernucci considera, o título do romance de Rivera fora sugestão de Policarpo Neira Martínez, a cuja referência Rivera faz em dedicatória escrita em um exemplar do romance. Com relação à obra Os Seringaes de Mário Guedes, Bernucci considera que é necessárias uma análise profunda para que se possa identificar as influências que se podem perceber em La Vorágine, principalmente as informações que o livro de Guedes oferece sobre a extração da borracha e a indústria do produto na Amazônia. Deve-se, porém, considerar as anotações que Rivera faz num exemplar dOs Seringaes sobre algumas palavras que podem ter ajudado a constar de espécie de um longo vocabulário que se encontra no final de La Vorágine.
Eustasio Rivera, ao escrever La Vorágine, propunha iniciar um debate sobre os problemas sociais e políticos que aconteciam na região de Putumayo e Caquetá – que teria continuidade com o seu La Mancha Negra, que não chegara a escrever. Por isso, no ver de Leopoldo Bernucci, La Vorágine é um romance que se assegura como arma sociopolítica: “o romancista colombiano sempre considerou o seu livro como uma poderosa arma sociopolítica e que podia emparelhar-se a outras publicações contemporâneas de não ficção onde se denunciam os terríveis maus-tratos e mortes perpetrados nos seringais da Amazônia”. E não há como questionar as considerações de Bernucci sobre isso, uma vez que o próprio Rivera faz questão de demarcar suas orientações de denúncias sobre aquilo que vira ou ouvira enquanto esteve como enviado do governo colombiano nas fronteiras do Brasil, Colômbia e Venezuela, permitindo, na sua narrativa, situações que envolveram pessoas reais postas no romance como personagens fictícias.
O discurso dialógico, no ver Bernucci, ajuda a ter em conta o caráter quase autobiográfico do autor com que se atribui ao personagem Arturo Cova. Além disso, Rivera também emite seu ponto de vista não só por meio de Cova, o principal narrador do romance, mas também no próprio assunto do romance, como um ponto de vista que difere daquele do narrador. Lembra-nos Bernucci de que, por trás da saga de Cova, lemos uma segunda história, a do autor, na qual Rivera se expressa, uma aposta no que Bernucci considera “intensidade de ilusão” por meio da qual visa “apresentar uma história ficcional que seja “verdadeira ao coração humano” e desfazer ao mesmo tempo esse poderoso efeito de ilusão por meio de uma extraordinária semelhança de registro histórico”. O próprio prólogo de La Vorágine é uma espécie de carta formal, em linguagem ambígua, escrita pelo Rivera ficcionalizado, e dirigida a uma autoridade de governo, um “Ministro”. O caráter ambíguo da carta é, segundo Bernucci, um lembrete ao leitor de que a história de Cova é uma ficção, embora queira persuadir o leitor da veracidade da história; persuasão que, de tal modo, se faz com fatos reais colhidos pelo próprio Rivera de jornais colombianos da época, ou aqueles lidos inclusive dos relatos publicados por Roger Casement, em que descreve locais, instrumentos e cenas de torturas que vira ou ouvira em seus interrogatório como chefe da Comissão britânica para averiguar as denúncias de crimes cometidos na região de Putumayo e Caquetá. Rivera era leitor atento dos relatos de Casement, os quais entremeia na sua narrativa ficcional.
Apropriando-se também dos escritos de Euclides de Cunha e do romance Os Seringaes de Mário Guedes, Rivera, no seu romance sociopolítico, revela a complexidade de um sistema comercial selvagem, espoliativo, escravocrata e destinado a beneficiar somente os comerciantes de Manaus, Belém e Iquitos, onde ficavam as poderosas casas de comércio e seus ricos proprietários. O sistema em forma de pirâmide socioeconômica funcionava de tal modo instável, pois dependia da exploração dos mestiços, que começavam como trabalhadores livres e depois tornavam-se escravos devido às dívidas que contraíam e não conseguiam saldar os gastos, além dos índios, estes capturados nas correrías, eram a maioria escrava, explorada e castigada nas matas. O fio que Rivera encontra para revelar o intercâmbio entre a ficção e a realidade sobre o comércio da borracha e seus métodos exploratórios e violentos nas matas amazônicas são os índios, mas principalmente Clemente Silva, velho seringueiro que conhecia muito bem a região dos seringais, e por isso era visto com respeito e confiança. Era um verdadeiro mateiro, “rumbero”, aquele que sabe orientar-se na selva – Clemente, clemência; Silva, selva. Foi feito escravo quanto procurava seu filho que fugira com os seringueiros, e dele o que encontra são os ossos, que os leva para onde quer que prossiga.
É também através da fala de Clemente que Rivera mostra, como em retalhos, as condições de dependência dos homens dos seringais: “A ânsia por riquezas convalesce o corpo já desfalecido e o cheiro da borracha produz a loucura dos milhões. O peão sofre e trabalha com o desejo de virar empresário que possa um dia sair para a capital para esbanjar a borracha que está levando, para gozar das mulheres brancas e para embebedar-se meses inteiros, sustentado pela evidência de que nos montes há mil escravos que dão sua vida em troca da procura desses prazeres […] Só que a realidade anda mais devagar que a ambição e o beribéri é mau amigo. No desamparo de veigas e estradas, muitos sucumbem de febres, abraçados à árvore que brota leite, colando suas ávidas bocas ao córtex para, na falta de água, acalmar a sede da febre com a borracha líquida, e ali apodrecem como folhas, roídos por ratos e formigas, únicos milhões que lhe chegaram ao morrer“, revela Clemente enquanto lava as pernas cheias de úlceras e vermes, em um trecho de A Voragem.
Outro elemento que torna A Vorágine um romance sociopolítico, no ver de Bernucci, é a referência a personagens que retomam funcionários da PAC, contatos da região de Putumayo e Caquetá. Embora não se detenha de forma aprofundada, Rivera menciona os irmãos colombianos Calderón, Benjamín Larrañaga e Hipólito Pérez, que fazem parte de um grupo dos primeiros colombianos a explorar a borracha nessa região da Amazônia. Larrañaga, juntamente com um filho de Rafael Reyes e um grupo de exploradores de borracha fundaram La Chorrera, depois El Encanto, dois grandes redutos produtores de borracha, que depois passaram às mãos do peruano vendedor ambulante que se tornou um grande proprietário de negócios, Julio César Arana, devido às dívidas contraídas por Larranãga. La Chorrera foi local de inspeção de Roger Casement, cujos relatos, de certo modo, serviram de aporte para Rivera adensar suas narrativas. Arana foi um dos mais cruéis administradores, conforme relatos de Rivera e de Casement. Casement descreve Arana como um homem cruel, covarde, sanguinário, maldoso, assassino, chefe de um grupo de homens – muchachos – que castigavam e assassinavam seringueiros mestiços e índios que não apresentavam a seringa segundo a meta estabelecida para o mês.
O caráter naturalista de Rivera está expresso em La Vorágine por meio de diversos elementos que entrecruzam todo o romance, alguns em consonância com a realidade da região, outros, ainda que distante da imagem real, adaptados pelo Rivera ficcionista, adensam a paisagem imaginária do leitor. Para Bernucci, esse caráter dialógico que percorre toda a narrativa do escritor colombiano atesta de tal modo o seu esforço de mostrar todo um conjunto do que vira ou ouvira quando das suas viagens pela região como representante do governo da Colômbia. Mas, mais que isso, revela o papel do Rivera cronista, pesquisador e etnógrafo da vida e da variedade amazônicas. Não escapam do olhar riveriano as várias facetas do mundo amazônico: a cultura, a fauna, a flora, os costumes, as crendices, além daquelas já vistas, como as mazelas, as lutas no meio das matas, os problemas sociais e econômicos. Rivera, ao mesmo tempo em que toma emprestadas as informações dos relatos dos viajantes e naturalistas, assim como de romancistas com cujos escritos tivera contato, faz-se também um deles, um com eles, quando enaltece a paisagem amazônica na sua variedade incontável. A floresta, no ver de Arturo Cova, ao mesmo tempo em que dá abrigo e alimento, destrói e mata. É amiga e inimiga ao mesmo tempo. Devora.
Se, ao olhar estrangeiro, as crendices minaram com sua estranheza de um território que ia sendo revelado ao mundo civilizado – o europeu principalmente – pelas crônicas de viagem, no romance de Rivera elas preenchem o cenário aberto, porque fazem parte do repertório cotidiano do homem amazônico, num universo em que crenças e costumes são elementos coesivos e perfazem o que Paes Loureiro chama de “diversidade diversa”, que constitui uma constelação de conceitos reveladores do reconhecimento de que há culturas diferentes e a possibilidade de absorção desse pluralismo por um processo globalizador. Esse processo globalizador, ao cabo do romance de Rivera, se percebe pelas retomadas que o romancista faz com outras narrativas, com que tivera contato, e atualiza-as ou adapta-as às cores do cenário amazônico disposto em La Vorágine. Assim, não escapam os mais diversos componentes da selva: espécies vegetais, animais, aves, insetos, doenças, meios de subsistência, em conjunto com um misto do vocabulário boliviano, brasileiro, colombiano, peruano.
O caráter panteísta das crenças de tal modo comprime-se no viés monoteísta dos espanhóis e portugueses colonizadores da América Latina principalmente que apresentaram um Deus único e criador de todas as coisas e sob cujo nome impuseram a sua fé. A propagação da fé católica não foi suficiente para apagar as crendices do homem que vive em contato direto com a natureza e dela busca respostas para os seus males. As superstições diversas – entre elas aquela que se liga ao poder mágico do pássaro piapoco –, a cura pelas plantas, pelos poderes sobrenaturais das orações, ratifica, no ver de Bernucci, o caráter metafísico de La Vorágine, além de permitir aos seus leitores uma variedade de informações sobre os elementos culturais da região de Tupumayo, Caquetá e de toda a grande região amazônica. Ao destacar crendices e mitos amazônicos no seu romance, Rivera permite entender que o mito, quando transformado em literatura, não se dirige à provocação de um acontecer, mas ao mistério gozoso da poesia ou ao desfrute desse vago estado de crispação suspensa de alma a que denominamos estética, como nos lembra Paes Loureiro.
Os poderes sobrenaturais da floresta parecem em sincronia com os poderes dos homens que demonstram habilidades nas práticas de feitiçarias ou adivinhações, como Rivera nos faz vermos nas práticas do personagem Mauco, que se vale dos seus poderes sobrenaturais para aliviar as dores e proporcionar a cura dos enfermos. Laura de Mello e Souza, ao pesquisar sobre a feitiçaria no Brasil colonial, considera que bruxaria e a magia devem ser entendidas a partir de suas práticas e contextos, pois não se pode pensar que as práticas de adivinhações, feitiçarias e outros poderes sobrenaturais sejam particularidades dos indígenas da Amazônia, como as que são citadas nos relatos do Santo Ofício sobre o Pará, haja vista o fato de que, na Europa, era uma prática costumeira, inclusive na Inglaterra e na Espanha, o que levou a ocorrência da Inquisição pelo Santo Ofício na caça aos feiticeiros e bruxos, inclusive no Brasil. Enquanto a bruxaria tem um caráter coletivo, a magia limita-se ao espaço pessoal, no trato de que uma pessoa usa de poderes sobrenaturais para questões benéficas, como é o caso de Mauco. E Rivera, assim como fizera Mário de Andrade no seu Macunaíma, faz um apanhado de elementos das culturas amazônicas para tecer o seu La Vorágine, que é, pode-se dizer, um mosaico da vida, da cultura e dos costumes da vida do homem amazônico.
Bernucci considera, na última parte de Paraíso suspeito, que Eustasio Rivera metamorfoseia-se entre o Rivera formalista, alinhado ao Modernismo hispano-americano em ebulição no início do século XX, mas, em caráter pessoal, continha-se como um Rivera romântico, enquanto alguns dos seus críticos põem-no nas esteiras do Rivera neonaturalista, este cujos traços são visíveis em La Vorágine. Essa espécie de mimetismo riveriano é vista no personagem Arturo Cova, que encarnam a combinação biográfica do Rivera colombiano, e alarga-se na construção de outras personagens, que, para alguns, são caricaturas de pessoas reais; para outros, não passam de personagem de ficção. Esse caráter dúbio que Rivera deixa escapar no romance em suas personagens, como é o caso de Arturo Cova, Alicia e Clemente Silva, prega peças ao leitor desavisado, que tende a crer que o romance não é bem um romance, mas uma narrativa naturalista de cunho histórico, e Arturo Cova é o fiel autor do romance. Para Bernucci, “Rivera estabelece para seus leitores um protocolo de leitura que faz com que eles acreditem que de fato Cova poderia ser Rivera. Esta última possibilidade não é de todo descartável. Há muitas passagens no romance que poderiam ser uma direta transposição da biografia ou do diário de Rivera, se estes textos realmente tivessem sido escritos”. A dúvida e até mesmo a confusão da parte de alguns leitores levaram estudiosos dos trabalhos de Rivera a buscarem esclarecer as dúvidas. Neale-Silva, um dos críticos que melhor podem ser considerados quando o assunto é José Eustasio Rivera, segundo Leopoldo Bernucci, considera que La Vorágine utiliza informações e personagens históricas, mas, como qualquer outro romancista que opera dentro desse tipo de realismo, Rivera os ficcionaliza, sendo, portanto, um romance de ficção, não uma narrativa autobiográfica como tendem acreditar alguns dos leitores do romance de Rivera.
A preocupação de apresentar uma narrativa que convencesse os leitores sobre os horrores de Putumayo e Caquetá levou Rivera a usar recursos visuais de que dispunha – fotografias e mapas – para adensar aquilo que apresenta nas vozes de seus personagens. A confusão dos leitores decorre principalmente porque Rivera usa, nas primeiras edições de La Vorágine, fotografias as quais referencia como sendo das personagens do romance. Numa das fotografias, indica ser Arturo Cova e em outra, o seringueiro Clemente Silva. Com o uso desses artifícios, Rivera esperava não só deixar mais evidente o que narra em La Vorágine mas também desconstruir – ou ao menos tornar menos ácidas – as críticas de seus leitores e resenhistas, o que nem sempre lhe fora possível, haja vista que grande parte de seus leitores se beneficiara da indústria da borracha que, de tal modo, direta ou indiretamente, compactuavam com o regime torpe que Rivera buscava denunciar numa postura de escritor que apresentava aos leitores um romance de cunho sociopolítico em que o Rivera escritor mescla-se ao Rivera cidadão e político combativo como sempre fora, e que usava a literatura como veículo de protesto.
A leitura de Paraíso suspeito: a voragem amazônica que Leopoldo M. Bernucci nos oferece ajuda a preencher uma lacuna, por tanto tempo deixada, sobre um dos mais importantes romances escritos nas duas primeiras décadas do século XX, sobre a Amazônia. E não porque fala sobre a Amazônia fora do território brasileiro, embora a Amazônia no seu conjunto, principalmente com cenas brasileiras, não lhe escape, mas porque se trata do romance de um escritor ainda pouco conhecido do leitor brasileiro e pouco debatido nas nossas academias, principalmente nos batentes dos estudos literários e da crítica brasileiros. Além do tema que La Vorágine põe em evidência, quase apagado da nossa memória um século depois, a importância que José Eustasio Rivera tem para a literatura latino-americana exige que suas duas obras – além de seus tantos outros textos desconhecidos do público brasileiro – seja posto ao escrutínio da sociedade e seja revisto pela crítica atual.