Mídia corporativa e a cobertura de desastres ambientais
Cobertura de desastres ambientais como o rompimento de barragens em Mariana e Brumadinho não fogem à lógica corporativa
Em 5 de novembro de 2015, o Brasil se deparava com sua maior tragédia ambiental. O rompimento de uma barragem de rejeitos de minério da mineradora Samarco – consórcio entre Vale e a anglo-australiana BHP Billiton, duas das maiores empresas do mundo nesse setor – sofreu um rompimento que causou danos irreparáveis. Aproximadamente 62 milhões de metros cúbicos de lama tóxica tomaram a cidade de Mariana, entre outras, assim como o Rio Doce, que se tornou incapaz de sustentar qualquer espécie de vida.
Hoje nos vemos diante de um desastre semelhante – o rompimento da barragem de rejeitos da Vale em Brumadinho, a 60km da capital Belo Horizonte. Assim como em Mariana, a imprensa não demorou a enviar suas equipes para o local da tragédia, praxe de um jornalismo concentrado nas regiões metropolitanas do país. Resta saber se a cobertura vai investigar a teia de atores e instituições por trás do fato ou apenas estampar manchetes fadadas ao esquecimento no debate público.
O que sobrou de Mariana
No artigo “Molduras de uma tragédia anunciada: enquadramentos do desastre em Mariana”, publicado na Intercom 2017, os autores Rafael Cardoso Sampaio, Giulia Sbaraini Fontes e Paulo Ferracioli analisaram a cobertura da grande mídia a respeito do assunto. Para realizar o estudo, selecionaram amostras de veículos locais e nacionais, para observar como a proximidade com o fato influencia o trabalho jornalístico. Os veículos, todos em plataformas digitais, foram: Folha de São Paulo, O Globo, Estadão, O Estado de Minas, e os portais de notícia Uol, G1 e R7. Para gerar uma equivalência comparativa para as amostras, definiram datas específicas da cobertura: (1) o dia do desastre; (2) o dia seguinte; (3) passada uma semana; (4) passado um mês; (5) e por último, passado um ano. O estudo procurou analisar as amostras nos enquadramentos individuais de notícia propostos por Robert M. Entman (1993), assim como a diversidade de enquadramentos noticiosos, metodologia de Mauro Porto (2007).
A pesquisa mostrou que, em um primeiro momento, a grande mídia deu prioridade à contextualização do fato, divulgando o máximo de informações disponíveis sobre os impactos da tragédia – pessoas afetadas, poluição do Rio Doce, proporções do desastre, volume de rejeitos vazados e resgate de vítimas. Em um segundo momento, os pesquisadores notaram uma variedade de enquadramentos dados pelos veículos selecionados. No entanto, há uma constante – a priorização de “autoridades”, personagens clássicos do jornalismo corporativo usados para legitimar os fatos. A fala predominante em todos esses veículos é de prefeitos de cidades afetadas, corpo de bombeiros, governo estadual, Ibama, cientistas de todas as espécies, executivos da empresa responsável pelo desastre e comentaristas diversos.
A grande mídia expôs minimamente a voz das pessoas afetadas pela tragédia – quando o fez, foi de forma apelativa, sentimental e sensacionalista. Quanto aos tópicos elencados, meio ambiente e contextualização predominam massivamente na cobertura. Tópicos de importância crucial para a sociedade, como a investigação do desastre, crime ambiental, direitos humanos e impacto em comunidades tradicionais aparecem em raras notícias da extensa cobertura. Ao fim da pesquisa, os autores concluíram que, sobre esse aspecto, as falas oficiais foram a grande voz ouvida, tanto de técnicos e especialistas inclusive da própria Samarco, quanto representantes dos governos estadual e federal. Embora cobrança e responsabilização tenham sido tópicos presentes, os autores permitem a observação da ausência de vozes populares sobre o tema.
O quarto poder?
Por conta de sua função de monitorar, investigar e denunciar o mal-uso do poder público e privado, a imprensa ganhou a conotação positiva de quarto poder em diversos estudos, tão influente quanto os pilares Executivo, Legislativo e Judiciário. Essa ideia nos leva a entender que a mídia, dentro de sua responsabilidade social inerente, serve para garantir à população o direito à informação. Enquanto ponte entre o poder e a população, exerce certa pressão sobre os demais poderes consolidados. No entanto, o modelo de mídia privada, corporativa, importada dos EUA praticada no Brasil, em sua maioria, depende de verba governamental, publicidade e patrocínio da iniciativa privada – agravada durante a revolução digital – o que compromete seus ideais de imparcialidade e compromisso com a justiça social e direitos humanos.
A análise da cobertura do desastre de Mariana mostra um pouco dessa faceta – os responsáveis pelo desastre tiveram mais espaço para contar suas versões da história do que as vítimas. Em 17 de novembro de 2015, a BBC Brasil publicou uma matéria mostrando que a tragédia em Mariana dividia as atenções do público com a morte de 127 pessoas em Paris pelas mãos do Estado Islâmico. Não estamos dizendo aqui que essa atrocidade deveria ser ignorada, mas a importância dada a ela em território nacional, paralelamente à catástrofe da Samarco, é preocupante. Por que o brasileiro daria mais atenção a um massacre na Europa do que à maior tragédia ambiental na história do país?
Outro fato interessante foi a cobertura local. Jornais como “O Liberal”, “Panfletu’s”, “Espeto” e “O Mundo dos Inconfidentes”, localizados nos arredores de Mariana, abordaram a questão de uma perspectiva muito diferente. Esses jornais, mais ligados à comunidade afetada e à Samarco, veicularam matérias que expunham a preocupação local com a continuidade da empresa, pois a cidade depende da receita e dos empregos gerados por ela. Elvira Lobato, autora do artigo “A mídia e as duas tragédias em Mariana”, publicado no site Observatório da Imprensa em novembro de 2018, aponta para campanhas populares, também apoiadas pelos jornais locais, chamadas “Volta Samarco” e “Somos todos Samarco”. Este é um impacto social complexo não abordado na grande mídia, pois foge à dicotomia e ao julgamento simplório do fato, assim como a cobrança dos responsáveis mencionada no estudo de Rafael, Giulia e Paulo.
A cobertura da mídia alternativa e independente, que conta com boas matérias a respeito do tema, infelizmente não possui o alcance e o mesmo aparato técnico para investigar a fundo o problema. Um bom exemplo é a Agência Pública de Jornalismo Investigativo, que abordou o drama das tribos indígenas dependentes do Rio Doce depois da tragédia na matéria Watu Morreu, e a controversa decisão judicial que permitiu às empresas responsáveis decidirem como compensar a população em Samarco, Vale e BHP vão decidir quem e como indenizar por desastre.
Infelizmente, a cobertura da grande mídia é a que possui maior influência na formação da opinião pública. Sua forma de proceder, subordinada ao interesse econômico, permite que casos como o de Mariana sejam tratados apenas como mais uma tragédia, condenando essa gigante violação de direitos humanos e ambientais ao esquecimento, além de simplificar cenários complexos. Precisamos ficar atentos ao que se passa em Brumadinho e prestar atenção na cobertura dessa nova falha da Vale, para que situações como essa não se tornem rotina. A disposição do presidente da empresa, ao afirmar que a Vale é uma jóia e não pode ser condenada, simboliza a solidez do capital econômico, que precisa ser escrutinada pela imprensa.