Sandra Godinho

Paulista radicada no Amazonas, é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB), e tem 10 livros publicados.

Ararinha Azul

Ararinha azul Cyanopsitta spixii
Ararinha azul Cyanopsitta spixii

Sabia que a mãe não ia voltar só de olhar para seus olhos. Aquele dia, estavam diferentes. Ela estava diferente. Ela, acostumada a viver em silêncio, com os remos nos braços, aquele dia era só palavra, tagarelando igual a velha Sebastiana, que tinha queimado na rede junto com sua casa. A mãe sempre foi uma sombra murcha, mas desatou a pilheriar sem se importar se eu escutava, entendia ou discordava. Falava mais para si; eu fiquei lá, na canoa, sentado na rabeta, sabendo que a mãe não ia voltar para pegar meu passarinho enquanto remava naquele veio quase seco de rio, dizendo que o Negro a entendia porque era ancestral que nem ela: o leito trazia a soma de seres pré-históricos e seu dorso trazia um pedaço de céu. Estar dentro das águas lhe dava paz, dizia, enquanto eu pensava no que me dava paz: o sanhaço esquecido dentro da gaiola.

Paciência, seu pai vai alimentar o bicho. Sabia que ela mentia. Primeiro, o pai nunca foi meu pai de verdade; segundo, ele nem gostava de animais. De mim, tampouco. Dizia que eu era esquisito e ficava me encarando com aquele sorriso de lâmina. Eu gostava mais da dona Sebastiana que, mesmo bruta, tinha inúmeros sóis cintilando na boca, os dentes todos recobertos de ouro. Embora esbravejasse, não deixava de ser engraçada, dourando o dia de todo mundo. O pai, não. Queria escrever em mim sua sina, latir nos meus ouvidos a fome antiga de ganhar dinheiro na garimpagem. A verdade é que os dias lhe mordiam o rosto, era mais um garimpeiro gaiato, existindo apenas nos intervalos entre as estações, enquanto a mãe amassava os descontentamentos na beirada do fogão, sovando a massa de algum bolo, acostumada a se afiar em paredes banais de flutuantes ainda mais banais. Já eu gostava mesmo é dos brilhos.

Os passeios dentro das águas me abismavam, com o zunido dos insetos fazendo ecoar ainda mais o vazio dentro da gente. Não fosse o brega de Sebastiana, nem música haveria para embalar a vida nessas beiradas de rio. Depois que a velha morreu, a mãe e eu vivemos alternando destinos, ora em brega, ora em restaurante, até que se amasiou com o pai. A mãe se acostumava a tudo. A tudo que era ruim. Seus olhos cresciam mesmo dentro das águas, abestando lenta nesse vaivém, vendo o brilho do sol coruscar no banzeiro. Gostava de marulhar no regaço do rio, fazia gosto de lá estar, até distribuía carinho, como naquela manhã. Mesmo que algo de diferente houvesse no ar.

Ela quis se despachar para um novo mundo outra vez, os remos abertos feito asas, ajeitando o motor da voadeira, dando partida até começarmos a deslizar pela superfície, entre raízes e ramagens, escolhendo a parte profunda, onde ainda havia correnteza, sem perigo de a canoa encalhar. Um passeio, mesmo depois de me pegar em flagrante, usando seus penduricalhos dourados nos pulsos, orelhas e pescoço, todo fantasiado de sol e pedra falsa, trajando o mesmo vestido que ela usava para deixar o pai desguaritado, em noites de alegrar o corpo em algum brega, empurrando a vida para dentro dela novamente. É só um passeio, disse, mesmo depois do pai me chamar de menino enfeitiçado, filho do boto. Então que seja, eu me nomeio Filho do Boto, sim, senhor. A mãe me tomou pela mão e me pôs na voadeira, só parou ao atracar no flutuante da dona Jovelina, dizendo que a velha ia tomar conta de mim por um tempo, assim como tomava conta das meninas que lhe chegavam às mãos. Que eu não malinasse, que cumprisse minha parte nos conformes, que não enjeitasse serviço, e o mais importante: que logo viria me buscar. Atochou minha boca com uma tapioquinha e partiu, tocada pela aragem do dia, canoando pelo Negro enquanto me enxovalhava a alma de saudade.

Passei dias amuado, não arreliava com ninguém naquela casa enfeitada de vermelho e púrpura, prostrado na rede, sem me incluir no converseiro dentro do flutuante que abrigava crianças como eu, saudosas das mães e um tanto decepcionadas por terem sido deixadas aos cuidados de Jovelina em troca de dinheiro para ajudar no rancho da família. Bocas precisavam comer, o sacrifício valia para todos, a velha Jovelina arrematava, uma justificativa que não consolava. Aos poucos, as meninas aprenderam que a alegria se faz mesmo é no corpo, dando e recebendo prazer, requebrando ao som das cantigas, se enfatuando com vestidos chamativos, apertando o afeto nas curvas e na cintura em noites aleitadas pela lua, quando homens apareciam por lá atrás de alegria e afeto. Assim os dias foram passando, com o alvoroço das camas à noite, enchendo os ânimos, as pernas bambeando com bebidas e o coração puxando lembrança. Eu servia as meninas no que precisassem, ajudando com as tarefas domésticas quando solicitado. Em retribuição, elas me vestiam com suas roupas, sem sovinar penduricalho nem mangar da minha figura.

A paisagem mudava, ia e vinha, conforme o rio e as estações. Também as meninas chegavam e saíam, indo para outras cafetinas no interior do estado, servindo aos apelos de novas autoridades e políticos, ou aos afetos dos turistas que chegavam em cruzeiros, ou no centro, próximo do porto. Foi assim que minha infância se desfez, com badulaques nos braços, batom carmim na boca, fantasiando uma vida. Às noites, Jovelina me deixava andar vestido de menina no meio de gente graúda e miúda, quando o Lanterna Vermelha coruscava, enxameado de gente vinda de todos os cantos.

Numa dessas noites, a escuridão trouxe um homem de pele endurecida, cheio de lero-lero. Ele descarregou o cansaço na cama de uma das meninas. Era só mais um desconhecido não fosse o pacote, deixado de lado enquanto se divertia. Uma trouxa de pano enrolada que abri com cuidado, sem ninguém perceber, durante o vaivém de comes e bebes. Uma trouxa repleta de passarinhos costurados ao pano. Uns, mais quietinhos; outros, ainda afoitos; poucos haviam morrido. Foi a ave azul de maior tamanho que me chamou a atenção. Não fosse o tapa que tomei do dono, assim que me viu e que me levou ao chão, teria me aproximado da ave anil, tocado suas penas, pousado-a sobre minha mão. Deixa de enxerimento, cunhantã! Levou algum tempo até ele notar que eu era um menino, apenas um menino admirado. Puxou-me do chão, da miséria onde me encontrava e, pressentindo minha querença na ave, foi-se achegando com olhos esgazeados, luscofuscando uma mão boba no meu membro sem me deixar reação. Você é o enjeitado de mãe? Odiei a pergunta, mas gostei da ararinha azul. Deixo essa bichinha com você se me pagar. Tenho dinheiro, não, moço. Mas tem outras coisas, respondeu, se derretendo num palavreado empolgado, naquela leseira dele, a mão boba me procurando até me achar.

Dona Jovelina nos pegou no ato, disse que dessa vez ia deixar passar, que era uma mulher boa e também ia se fazer de cega, mas que eu atentasse. Se acaso quisesse colocar minhas asinhas de fora, cortava-as logo, o que não entendi muito bem. Com dez anos a gente não entende muita coisa.

O homem se foi naquela mesma noite, saiu atrasado para o voo, com receio de passar pela fiscalização dos federais no aeroporto. Dona Jovelina assegurou que tudo se ajeitava e lhe piscou umas pestanas postiças. Aquela noite foi a primeira que vomitei, cuspi estrelas e todo o meu sol, ardendo, deixei na Lanterna Vermelha minha infância. O homem voltou depois, com novas trouxas e outras aves. Foram muitos os pagamentos sob a lua até que eu quitasse a dívida que incluía, além da ave, também a gaiola, grande e robusta. Quase em extinção, ele disse, referindo-se à ave, acrescentando que colecionadores pagariam uma fortuna para tê-la no próprio viveiro, me dando a preferência por me ter apreço.

E quando dona Jovelina me ensinou a escrever meu nome, numa folha de papel em branco, sem qualquer explicação, tive a certeza de que eu assinalava também uma linhagem de gente que não se cansa de campear pelos buracos do mundo em injusta causa. Na primeira noite após a quitação da dívida, acheguei-me na beirada do rio, gritei o nome da minha mãe, Luara, um filho chamegando aquela que o pariu, numa sedução ao contrário. Mas o rio era um silêncio morto de minério dourado que me deixou ainda mais morto. Só voltei à vida em casa de Jovelina, quando aproximei a gaiola da janela, abrindo-a e aguardando até a ararinha azul bater asas e voltear em círculos até se perder na escuridão. A liberdade nunca foi para qualquer um.

Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com “Orelha lavada, infância roubada” (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com “Verso do reverso” (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance “Tocaia do Norte” (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, “A morte é a promessa de algum fim”, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Seu mais recente romance é “Estranha entre nós”, publicado em 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, “Memórias de uma mulher morta” (inédito) e “A Secura dos ossos”.

 

Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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