Amazônia Urbana

1.

Eis uma imagem para você. É um quadro de um vídeo com o qual me deparei anos atrás em uma página de Facebook chamada No Amazonas é Assim – uma página que coleta e seleciona mídias, imagens e artigos populares que captam a vida no estado brasileiro do Amazonas e em sua capital Manaus.

O vídeo produzido pela Globo, gigante da mídia brasileira, conta a história de um grupo em Manaus que pratica Stand Up Paddle ao mesmo tempo em que coleta lixo ao longo das margens do imenso Rio Negro. A reportagem narra que em 2014 mais de 7 mil toneladas de lixo foram retiradas só de rios e afluentes de Manaus. Ao final, o vídeo mostra os remadores fazendo seu caminho para o famoso Encontro das Águas, onde o turvo Rio Negro encontra as águas sedimentosas de cor marrom da Amazônia, a leste da cidade. Após uma longa manhã de coleta de garrafas plásticas descartáveis, sacolas plásticas, frascos de iogurte e caixas de detergente em pó, os surfistas de remo se descontraem no cartão postal que é o ponto de encontro entre dois dos maiores rios do mundo.

Em um primeiro momento, o que me impressionou sobre o vídeo foi como estão introduzidos na vida em Manaus, de um modo virtualmente integrado, os valores morais burgueses de “cuidar do planeta” recolhendo lixo enquanto se pratica esportes aquáticos recreativos a fim de experienciar a sublime natureza. Estranha-me por causa da minha ignorância em pensar que paddle-boarding e ações de limpeza comunitária são monopólios da classe média do hemisfério norte ou de centros de poder como Rio de Janeiro e São Paulo. É especialmente irônico pois me torna culpado daquilo que eu mesmo já acusei outros antropólogos de fazerem – limitar a Amazônia, ou pior, reduzi-la a imagem de uma região dominada por indígenas isolados ou por agroindustrialistas firmemente determinados na destruição de florestas e apenas isso. Por ter vivido na cidade de Manaus por alguns anos, eu deveria ter suspeitado que ali poderia também ser o lar de “surfistas-de-remo-catadores-de-lixo”.  Como essas imagens me pegaram desprevenido? Como eu ainda pude pensá-las de algum modo como “fora do lugar”?

Evidente que há mais se passando por aqui. Mas também temo estar adiantando demais e sabotando a história e suas imagens, de modo a não deixar você, o interlocutor, fazer os desdobramentos por si mesmo.

Então, vamos a outra imagem.

2.

Quando Manaus foi nomeada uma das cidades-sede da Copa do Mundo de 2014 – única cidade-sede na região amazônica brasileira – especulações sobre melhorias de infraestrutura começaram a circular. O governo do estado afirmou que um monotrilho seria implementado, misturando residentes das periferias da cidade com o centro em exatos 15 minutos. Normalmente demora-se uma hora e meia entre múltiplas viagens de ônibus impregnadas de suor. As multidões nos terminais de ônibus fantasiavam tal possibilidade. E eu também.

E então a Copa do Mundo veio e se foi e não se concretizou nenhum monotrilho. Em vez disso, tornou-se uma piada – teatro político risível do Amazonas. Uma promessa absurda que nunca deveria ter sido feita. Uma que nunca deveria nem sequer ser estimulada. Uma promessa que brincou com a fantasia das pessoas de viverem em uma cidade parecida com ficção científica. Agora é uma espécie de ficção política em vez disso.

Do lado de fora do novo estádio – sim, claro, teve que ser construído um – o homem nessa imagem acena de um monotrilho construído com caixas de papelão entre a multidão. As pessoas riem e gritam diante dessa performance satírica. Uma brincadeira com caixas de papelão é o mais perto que a cidade verá de um monotrilho de verdade, pelo menos por agora.

Mas há piadas que são engraçadas e não tão engraçadas ao mesmo tempo. Rimos porque às vezes isso é tudo que podemos fazer.  Rimos sabendo que a momentânea sensação de leveza logo se dissipará, desaparecendo no calor da cidade. Rimos porque, apesar da admiração que muitos expressam pelo magnífico estádio e pela beleza do futebol brasileiro, humor é ainda a arte mais sólida do Brasil.

3.

Vamos a mais uma.

Uma garota (de dezesseis, talvez dezessete anos?) abre a perna de seu shorts rosa apenas o suficiente para fazer xixi sem pegar nele enquanto está no meio da rua. São 10h da manhã. Esse é o Manaus Moderno, o principal porto comercial da cidade. Faz jus ao seu nome no sentido em que é uma mistura caótica de pessoas, comércio e concreto.

Não muito longe de onde eu vejo a garota fazendo suas necessidades, meu amigo Rafa foi assaltado a facão em plena luz do dia. Quando o vi novamente de volta aos Estados Unidos, alguns meses após esse ocorrido, tudo o que me disse sobre foi: “Manaus é perigosa pra caralho”.

Próximo dali, nas docas flutuantes, homens pingando suor transportam bananas e polvilho doce de barcos recém-atracados, enquanto outros vendem chips de banana em pacotinhos de plástico para viajantes que vão embarcar. Ao longe, parte de uma pichação diz: “tem muito corno que não sabe que é corno”. Abaixo, os carregadores continuam a carga e descarga dos barcos, indo e vindo, entre doses de cachaça durante os intervalos para se manterem amortecidos. A socióloga Elenise Scherer denomina o trabalho deles de trabalho ocultado. Trabalho escondido. Não que seja um trabalho escondido a olho nu. Os carregadores são como formigas no porto, de modo a se parecerem com uma eterna corrente de idas e vindas, vai e vem, com tanto peso nos seus ombros, costas, pescoços, mãos.

Papito costumava ter um restaurante ali próximo. Depois de trabalhar na Philips por 20 anos como químico, ele deixou a companhia. Ou melhor, devido à redução pediram que ele se aposentasse mais cedo. Então ele entrou no ramo de restaurante através de um amigo. O lugar foi batizado de Good Gula – uma mistura de inglês e português que significa algo como “gula boa”.

Mas, com a Copa do Mundo, reformas também chegaram à área do porto. E após muita briga judicial, Papito perdeu a autorização para o restaurante. Agora ele está aposentado de verdade. Quando o visitei em julho de 2017, ele ficou feliz em me levar para uma volta na cidade e contar piadas. Fomos até Educandos, um bairro proletário que fica bem acima do grande Rio Negro. Paramos em uma pequena praça e ficamos admirando as águas escuras refletindo o tardio sol matutino. Ele me diz: “Se o mundo acabar em fogo, nós seremos os últimos a morrer aqui”.

4.

Este painel abre uma oportunidade proveitosa para se meditar sobre o trabalho cultural da estética – e noções de beleza no Brasil em particular – e aqui eu gostaria de levantar algumas questões ao longo deste parágrafo. Primeiramente, fico curioso em como antropólogos podem chamar atenção para “estéticas cotidianas” muito da mesma maneira que Kathleen Stewart (2007) nos ajudou a abordar os “afetos comuns” ou aquelas pequenas ondas que crescem e tomam forma nos encontros humanos cotidianos. De piadas improvisadas que as pessoas contam para a sátira pública de inadequações infraestruturais, até encenações de adoração da natureza ante o crescimento de excessos industriais, eu estou interessado naquilo que esses pequenos exemplos práticos podem nos ensinar sobre a Amazônia urbana, um lugar que recebeu atenção antropológica relativamente pequena considerando o incrível interesse antropológico na região.

O filósofo Yuriko Saito (2001) lembra que qualquer coisa, seja sentida ou considerada, seja produto da imaginação ou pensamento conceitual, pode se tornar objeto de interesse estético. No entanto, muito da teorização relativa à estética continua a ser encontrada nas artes e no design. Por essa razão, Saito argumenta: “Nossa estética centrada em arte – e espectador – não pode adequadamente considerar nossa igualmente importante experiência estética de objetos e atividades cotidianas que quase sempre nos envolvem integralmente”.

Meditando sobre as observações de Saito, eu também me pergunto como essas estéticas cotidianas podem nos levar a refletir e examinar as formas estéticas – e também possivelmente as dimensões afetivas – da representação etnográfica.

Nos últimos anos, dediquei tempo a considerar como o modelo de “mostrar e contar” (show & tell) – um formato tipicamente visto como adequado para apresentações em salas de aula do ensino fundamental – pode ser útil para nós, antropólogos, pensarmos a etnografia e seus aspectos. Isto porque quando antropólogos tentam atrair um leitor com a introdução de uma vinheta etnográfica – aparentemente para “mostrar” o que está acontecendo – quase sempre segue-se um comentário exegético que reivindica explicar o que realmente está acontecendo, ou o que o material etnográfica é realmente sobre.

Nós mostramos. E então contamos.

(E, de muitas formas, eu estou reproduzindo esse modelo aqui, a não ser pela introdução de três quadros etnográficos e algumas análises antropológicas ou quase teorização.)

O problema com esse modelo de escrita é que ele geralmente minimiza as incertezas e a evolução da investigação etnográfica – aquela sensação gradual de que logo ali na esquina há algo iminente que abrirá as portas para um mundo totalmente novo, o vislumbre de um outro tipo de vida, ou ainda nada que você possa esperar ao certo. Nesse sentido, escrita etnográfica se difere fundamentalmente de filme e fotografia etnográficos.

Como escreve David MacDougall (1998): “Escritos antropológicos geralmente nos contam sobre o que o texto discute, mas em filmes espera-se que descubramos por nós mesmos”. É por essa razão que a antropologia visual frustra antropólogos que podem estar (demasiadamente?) acostumados à escrita expositiva como sua principal forma de representação.

MacDougall deixa seu ponto mais explícito em termos de convenções antropológicas e expectativas metodológicas: “Um contraste significativo entre a escrita e o visual na antropologia pode […] não repousar em suas grandes diferenças ontológicas, ou sequer nas tão diferentes formas de construção de significado, mas sim em seus controles de significado”. Ele aponta que uma acusação frequente feita contra a fotografia é que ela contém muitos significados.

O visual e, mais amplamente, o sensorial, acabam sendo, então, problemáticos pois contestam o anseio do antropólogo de controlar a recepção e interpretação da audiência sobre o material etnográfico. Reprimem a habilidade do antropólogo de oferecer uma consideração simplificada e autoritária sobre os eventos em questão. Eles possuem significados que proliferam e escapam do controle – significados desenfreados! Editar, aparar, condensar, cortar podem trabalhar para domá-los, mas as possibilidades nunca se reduzem a uma ou duas.

Paradoxalmente, ou por isso mesmo, para antropólogos textualmente dependentes o visual exerce um forte apelo. Esse fascínio está enraizado, MacDougall suspeita, na “insatisfação sentida por antropólogos junto ao descompasso entre seus encontros com pessoas reais e os termos que eles frequentemente se sentem constrangidos a usar para descrevê-los”.

Alguns desses constrangimentos podem incluir:

  1. A tendência dominante de empregar interpretações esboçadas a partir de conceitos ou reflexões de filósofos e estudiosos europeus ou norte-americanos, muitos dos quais são homens brancos;
  2. A evasiva geral sobre funções corporais e excitações físicas cotidianas, ou outros “indefiníveis”;
  3. O uso restrito do humor, talvez devido ao receio de que as pessoas possam não levar nosso “tão sério trabalho” tão a sério assim;
  4. A necessidade de retratar a si mesmo de uma maneira depreciativa (porém charmosa), se possível;
  5. A pressão para oferecer explicações impositivas mesmo quando o entendimento de alguém sobre o assunto em questão é repleto de ambiguidades e ambivalências;
  6. O sutil, ainda que persistente, privilegiar de explicações post hoc sobre constatações vigentes;
  7. O desafio de transmitir o que alguém sente e vê e cheira e ouve através de palavras;
  8. O desafio de determinar quais sentimentos e sentidos são apropriados para a audiência e quais deveriam ser mantidos para você mesmo;
  9. A loucura de tentar transformar esses sentimentos e sentidos em palavras e esperar que outros possam senti-los também;

Essas questões levantadas sobre emoção, afeto e personificação são aspectos cruciais da escrita e teorização etnográficas no final do século XX e início do século XXI. Em um momento revelador do livro Insectopedia de Hugh Raffles (2010), o autor entrevista um homem que é caracterizado por possuir um fetiche por “esmagar pisando”. Apesar das várias tentativas de diagnosticar, criminalizar e intelectualizar as inclinações do homem, Raffles comenta que entendê-las pode chegar a uma única pergunta afinal: você sente ou não?

Então, o que tudo isso pode significar para a escrita etnográfica e como isso pode ser empregado no engajamento com as estéticas cotidianas de lugares como a Amazônia urbana?

Uma das maiores forças da etnografia é sua habilidade de articular ou tentar processar aquilo que nós (etnógrafos) não conhecemos, ou o que continuamos a não entender. Essa habilidade pode também ajudar a trazer novos elementos em primeiro plano na análise antropológica e direcionar tipos diferentes de interesse a eles. Nós podemos cultivar diferentes “artes de perceber” como Anna Tsing descreveu. E podemos encontrar maneiras para melhor articular elementos cruciais que nós ainda simplesmente não “entendemos”.

Naturalmente, fica claro que explorações etnográficas em aberto, ou “mostrar-apenas-por-mostrar”, têm os seus próprios problemas, talvez tão vexatórios quanto o trabalho etnográfico restritamente centrado em explicações somente. Talvez seja isso o que as pessoas querem expressar quando dizem desdenhosamente “é tudo só para mostrar?” Você apenas risca a superfície e nunca chega ao que está acontecendo no interior? Não significa nada e, assim, não tem um ponto, não tem uma “razão”? Ou de fato, talvez o que realmente seja assustador é que possa haver significados demais.

5.

Uma mulher nua corre por mim na calçada da Avenida Djalma Batista, oposta ao Amazonas Shopping Center, enquanto eu caminho em uma tarde de volta do trabalho. Quando eu chego em casa 15 minutos depois, conto à Miriene que eu vi uma mulher nua na rua. “Ah, ela deve ser doida”, ela responde. Provavelmente era o meu primeiro mês em Manaus porque eu sei que foi precisamente nesse momento que eu aprendi essa palavra comum para maluquice.

Então eu vi a mulher novamente. Ao menos duas vezes. Eu posso tê-la visto três vezes, mas não sei ao certo. Depois que você vê pessoas nuas na rua algumas vezes, elas não são mais tão memoráveis.

Existem muitas doidas e doidos nesse mundo.

E Manaus me colocou em contato com alguns deles, ou pelo menos, ajudou a deixá-los em perspectiva. E como Clarice Lispector disse sobre sua escrita, talvez entender Manaus e sua estética cotidiana não seja uma questão de inteligência, mas sim de sentir, entrar em contato. Quer você sinta, quer não.

 

Nick Kawa é professor de antropologia da Ohio State University, USA. Os seus temas centrais de pesquisa são etnografia da Amazônia rural e urbana, paisagens antropogênicas, manejo de agrobiodiversidade e o Antropoceno.
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