Governo Federal prepara novas políticas de saúde para povos indígenas

Secretaria Especial de Saúde Indígena e Mais Médicos são alvos de discussão por parte do Ministério da Saúde

O início do mandato de Jair Bolsonaro, atual presidente, foi marcado por falas que evidenciam possíveis alterações no modelo de saúde vigente voltado para os povos originários. O programa Mais Médicos está permanentemente nos debates sobre atendimentos humanizados à população indígena, mas outros pontos também são importantes para a compreensão sobre o que é proposto para os nativos. Luiz Henrique Mandetta, ministro da saúde, mostrou-se desconfiado com a prestação de serviço realizada por Organizações não governamentais aos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis). O ministro chegou a anunciar a extinção da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o que provocou manifestações contrárias à decisão em vários lugares do país. O Ministério da Saúde, então, optou por voltar atrás.

A operação de repasse às ONGs é realizada pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão criado em 2010, no final do governo Lula, com a finalidade de atender a população indígena considerando as especificidades culturais, além de ser responsável por ações de logística, saneamento, formação especializada de profissionais, assistência farmacêutica, entre outras obrigações. Mandetta, em janeiro deste ano, havia falado que o esquema atual não era adequado. Ele se referia à fragilidade nos controles das contas. A intenção do Ministério, desde o início, é de descentralizar as políticas de saúde voltadas para os povos indígenas, o que significa passar determinadas atribuições que hoje são de responsabilidade da Sesai – governo federal – para os estados e municípios. A União ficaria com os lugares mais frágeis e de difícil acesso.

Os resultados sobre os serviços prestados pela Sesai mostram que o órgão realizou 6,7 milhões de atendimentos em 2018, e o número de crianças abaixo de cinco anos de idade atingiu 86,3%. A Secretaria presta serviços a uma população de 758 mil pessoas localizada em 688 terras indígenas, o que representa cerca de 12% do território nacional. Parte da sociedade civil se preocupa com a possibilidade de haver prejuízos nos atendimentos qualificados aos povos indígenas, mas o ministro assegura, desde o dia 2 de janeiro, a permanência da pasta e, ainda, considera importante que o debate sobre a saúde indígena envolva o ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Erik Jennings, neurocirurgião e professor da Universidade do Pará, em entrevista à Amazônia Latitude, considera a secretaria um das instituições humanitárias de maior competência no mundo. O doutor afirma que “Nada se compara a assistência à saúde que a secretaria tem. São vários profissionais que vão à floresta com isopor nas costas, carregando vacinas, medicamentos, exames complementares para assistir essas populações. Centenas de pilotos que fazem voos em pistas não homologadas, às vezes, perigosas, para levar assistência à saúde. Então é uma estrutura enorme, física e humana. E acabar isso de uma hora para a outra seria de um impacto enorme.” A história profissional de Jennings está ligada à preservação da dignidade dos povos originários. Ele foi fundador do primeiro serviço público de neurocirurgia no interior da Amazônia brasileira e, atualmente, é coordenador de saúde do povo Zoe, aldeia Indígena, e consultor do ministério da saúde para questões que envolvem povos isolados de contatos recentes.

A criação da Secretaria Especial da Saúde Indígena foi resultado da busca dos povos originários por uma gestão que pudesse ser responsabilidade do poder Executivo Federal, diante do contexto que denunciava corrupção e deficiência nos atendimentos realizados pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI) vinculado diretamente ao Sistema único de Saúde regido, na época, pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Hoje, a Sesai é diretamente ligada ao Ministério da Saúde que ficou encarregado em gerenciar integralmente o subsistema de atenção à saúde dos povos indígenas do Brasil.

Diante da declaração de Mandetta, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) se reuniu com o ministro para discutir sobre a descentralização das políticas de saúde voltadas aos povos indígenas. O encontro que aconteceu no dia 28 de março, na quarta-feira, levou lideranças de vários povos indígenas para debaterem o futuro da Sesai. Em unanimidade, os presentes apoiaram a estrutura atual com a melhoria das ações.  O ministro Mandetta recuou com a decisão.

A matéria “Governo vai encerrar Mais Médicos, que será substituído por plano de carreira federal” publicada pelo jornal EL PAÍS, no dia 6 de fevereiro deste ano, ressaltou sobre o interesse do Ministério da Saúde em transformar o programa Mais Médicos, criado em 2013, no governo Dilma Rousseff, por um novo projeto que seria apresentado ainda no primeiro semestre de 2019. De acordo com Otávio Rêgo Barros, porta – voz da Presidência da República, o Programa Médicos pelo Brasil está sendo estudado para substituir o programa vigente.

Mais Médicos

Trabalho fotográfico de Araquém Alcântara reúne imagens de profissionais em exercício do programa Mais Médicos, durante o ano de 2015. Foto: divulgação.

Sempre em pauta nas rodas de conversa e nas redes sociais, o Mais Médicos ocupa lugar de destaque dentro da opinião pública desde 2013, ano que deu início ao programa. Ele surge, principalmente, com o objetivo de levar médicos para localidades carentes de atendimentos e, além disso, investir nas estruturas das unidades de saúde e formar profissionais capacitados para a realização de uma assistência humanizada e que seja adaptável à realidade dos pacientes, incluindo o estímulo à formação de profissionais especializados no atendimento às famílias e comunidades atendidas pelo programa.

A maior polêmica em torno do programa foi à contratação de médicos cubanos para preencher as vagas sobressalentes e atender a demanda. Mesmo com prioridade para médicos formados no Brasil, a escassez de profissionais levou o governo federal a fechar uma parceria com Cuba – encerrada em novembro de 2018, por conta da cruzada ideológica e das polêmicas declarações do presidente eleito, Jair Bolsonaro. O presidente, em agosto do ano passado, chegou a dizer que expulsaria os profissionais caribenhos. Já eleito, defendeu a atuação dos médicos com o diploma revalidado e sob contrato individual. O Mais Médicos chegou atender cerca de 63 milhões de brasileiros, e passa por uma turbulenta reestruturação desde a retirada dos médicos cubanos.

Em nota, Cuba diz que em cinquenta anos, mais de 400 mil profissionais participaram de missões internacionais em 164 países, como, por exemplo, a luta contra o ebola na África.  Porém, parte da população civil e da classe médica questionava se os atendimentos feitos por Cubanos estavam ocupando lugares de brasileiros formados na área.

Com saída dos Cubanos do Mais Médico, Jair Bolsonaro publicou em uma das suas redes sociais “Além de explorar seus cidadãos ao não pagar integralmente os salários dos profissionais, a ditadura cubana demonstra grande irresponsabilidade ao desconsiderar os impactos negativos na vida e na saúde dos brasileiros e na integridade dos cubanos. Atualmente, Cuba fica com a maior parte do salário dos médicos cubanos e restringe a liberdade desses profissionais e de seus familiares”.   

Em entrevista ao Brasil de Fato, Aristóteles Cardona, tutor do Programa Mais Médicos desde 2013, afirma que “A gente sabia o currículo e a formação dos profissionais de Cuba e não à toa, exatamente por isso, que Cuba foi escolhida, por ser um centro de excelência de formação de profissionais de saúde, particularmente no caso, de médicos e médicas que compreenderiam a realidade do nosso país e assim nós vimos nos últimos anos a atuação deles […]E recentemente foram muitas as mentiras inventadas, como essa de que não poderiam trazer a família. Negativo. Isso estava previsto inclusive na legislação que eles poderiam acompanhar. Diziam que eles não poderiam voltar para Cuba, o que também é uma mentira, porque todos os anos todos os médicos e médicas tinham direito a férias, inclusive pagas pelo programa para irem e voltarem, então não passam de mitos.” Cardona também enfatiza que os médicos cubanos não eram obrigados a trabalhar no Brasil.

A Secretária Especial de Saúde Indígena chegou a perder 301 dos seus 307 médicos com a saída dos Cubanos do Programa Mais Médicos, presentes em 19 estados. No início do ano, com nova abertura de editais, a procura por parte de médicos brasileiros para participar do Programa cresceu. Mas, com o decorrer do tempo, o número de desistências impactou a atividade do Mais Médicos. Em abril já é possível contabilizar 1.052 abdicações de função. O programa oferece, para os profissionais com registros no Brasil, uma bolsa de R$ 11.865,60, que equivale um pouco menos de 12 salários mínimos, por 36 meses com a possibilidade de renovação.

“Os médicos brasileiros ainda não tem esse compromisso estabelecido com a saúde indígena e com a assistência dessas populações tradicionais. Eu acho que existe um erro no aparelho formador do médico brasileiro onde não existe uma preocupação em formar o profissional com essa visão de que ele tem um compromisso social com o país. Não que ele vá  fazer medicina por sacerdócio, mas saber que ele vai se inserir no cenário social e que ele pode ser um agente transformador dessa sociedade enquanto médico. Isso não é feito nas universidade brasileiras e é, por isso, que estamos tendo esse tipo de problema hoje”, comenta Erik Jennings sobre a desistência expressiva dos médicos brasileiros do programa Mais Médicos, no primeiro semestre de 2019.

Luiz Garnelo, médica sanitarista e antropóloga, em entrevista à Folha de São Paulo, relata que nunca foi possível superar a lacuna do assistencialismo médico em Terras indígenas, mas que tal “buraco” foi parcialmente vencido pelo Mais Médicos.

O Ministro da Saúde, Mandetta, diz que o projeto que vier a substituir o Mais Médicos vai se preocupar em ocupar, principalmente, os estados do Norte e Nordeste. O índice de Desenvolvimento Humano (IDH) será utilizado como critério para a escolha de lugares prioritários. Em seguida, o ministro disse que a próxima discussão da pasta envolverá os critérios de contratação de médicos formados no exterior sem a revalidação do diploma no Brasil.

Reivindicações

A favor da Secretaria Especial de Saúde Indígenas, povos originários fecharam rodovia no Acre. Foto: Gleidisson Albano, Rede Amazônica Acre.

O início do primeiro semestre de 2019 foi marcado por manifestações em alguns pontos do Brasil. Algumas reivindicações tinham como base a falta de repasse de recursos financeiros às organizações responsáveis por prestar serviço de saúde aos DSEIs e, outras, a luta pela autonomia da Sesai. A 102ª Reunião da Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (CISI), realizada durante os dias 19 e 20 do mês de março, serviu de espaço para que lideranças indígenas vinculadas ao Fórum de Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena e das Organizações Indígenas de todo o país pudessem apresentar queixas sobre o sistema de saúde.  

Denúncias durante o CISI revelaram que alguns distritos receberam o último repasse de verbas em outubro de 2018, e que, por isso, haveria DSEIs que não possuíam condições para continuar com as ações básicas de atendimento, como, por exemplo, a realização de exames, vacinação, remoção de dentes, entre outras. Além disso, a falta de repasse também impede a compra de medicamentos, de combustíveis, o pagamento das despesas com transportes e liquidação de salário dos funcionários.

A nota publicada pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que a partir da atuação missionária, confere um novo sentido ao trabalho da igreja católica junto aos povos indígenas, destaca que, devido à ausência de salários há mais de três meses, alguns servidores se veem impossibilitados de prosseguir com o trabalho. A dificuldade de prestação de serviços à população indígena não é o único resultados dos atrasos, o sustento familiar dos funcionários também está entre as acusações.

Servidores de saúde atuantes nos Distritos Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y) e Leste de Roraima (Dsei-Leste) chegaram a se manifestar devido aos salários atrasados em frente ao prédio da Sesai, em Boa vista, no dia 18 de março. Em nota, o Ministério da Saúde disse “Cabe esclarecer que o atraso no pagamento do referido salário não se deu por falta de recursos, mas devido a mudanças recentes no sistema de gestão de pessoal”. Erik Jennings, quando entrevistado, no dia 10 de abril, disse que o ministro da saúde, Mandetta, havia assinado, naquele dia, o repasse de verbas para as conveniadas da Sesai, mas a Amazônia Latitude não encontrou informações no portal de transparência do governo e nem no site da secretaria.

Luiz Henrique Mandetta anunciou que será construído um grupo de trabalho para discutir a fiscalização dos recursos junto à melhoria nos atendimentos aos povos originários. O ministro ressalta que é importante visar um projeto progressista que abarque o desenvolvimento do SUS. Paulo Pain, presidente do Conselho dos Direitos Humanos, afirmou que o debate deve contribuir com o objetivo de salvar vidas.

O repasse da verba por parte do Governo federal se mostra indispensável para que as atividades dos Dseis sejam realizadas. Um representante da Sesai, durante a 102ª Reunião da CISI, fez um alerta à sociedade civil ao dizer que a estimativa, com a interrupção dos trabalhos dos distritos, é que haja  possibilidade de mortes a cada quatro horas.

As populações tradicionais e outros segmentos da sociedade nacional se mostram com grande poder de articulação e mobilização para questionar o modelo desenvolvimentista proposto pelo governo atual, tendo em vista determinadas mudanças nas políticas de proteção aos povos indígenas.

As conquistas indígenas estão apoiadas em diretrizes nacionais e internacionais, como, por exemplo, na convenção de nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O atendimento personalizado se justifica na necessidade de respeitar a cultura dos povos originários, a fim de possibilitar autonomia socioeconômica, autodeterminação, bem-estar e, assim, diminuir os índices de mortalidade, relacionados, muitas das vezes, à destruição social. De acordo com o estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAN), que teve início em 2013, os modos de vida indígena são necessários também para a conservação do meio – ambiente e, consequentemente, para o equilíbrio climático.

 

A ilustração em destaque é um trabalho de Sandro Schutt, e retrata os recentes protestos contra a descentralização das políticas de saúde voltadas para os povos indígenas.
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