Limpeza étnica e o encontro de culturas: a violência sexual contra mulheres indígenas

Mulheres indígenas ocupam  lugar de invisibilidade social e estão sujeitas a abuso sexual constante. De acordo com a ONU, uma a cada três indígenas já foram estupradas

 

“A vítima informou que era abusada sexualmente desde os oito anos de idade por um conhecido da família. A esposa do abusador ficava com a menina enquanto a mãe ia para o trabalho. Em depoimento, a menina afirmou que era constantemente ameaçada pelo agressor, que afirmava que, se ele fosse denunciado, mataria o pai dela.”

-Povo Apurinã – Manaus, Amazonas.

“Taiane e sua irmã foram presas pela guarda municipal acusadas de roubo por um comerciante. A irmã foi libertada e Taiane permaneceu na prisão, sendo obrigada a ter relações sexuais com dois guardas municipais, em troca de objetos, roupas e calçados. O tio da vítima pagou advogado para acompanhar o caso. Quando foi libertada foi levada para outra cidade para não sofrer homicídio.”

-Terra Indígena Pantaleão – Município Autazes, Amazonas.

Os casos relatados acima estão registrados no último Relatório sobre Violência contra Povos Indígenas elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) relativo ao ano de 2017 – 16 casos de abuso sexual contra mulheres foram relatados no Brasil.  O mais recente aconteceu no dia 16 de junho na Terra indígena Vale do Javari, onde uma jovem foi estuprada por um homem enquanto se encontrava internada. De acordo com as lideranças Matsés, o culpado teve acesso ao quarto através de um funcionário da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), em Atalaia do Norte. O caso foi registrado na 50º Delegacia da Polícia Civil do Amazonas. 

“Os jovens que se veem obrigados a migrarem pra cidade em busca da escola, sobretudo ensino médio que não existe nas aldeias. Esses jovens ficam expostos e vulneráveis num ambiente desconhecido da cidade e acabam sendo vítimas de aproveitadores e, nesse caso, especificamente, nas dependências de um órgão público que é inaceitável.”, comenta Guenter Francisco Loebens, o Chico, ex- diretor do Cimi. Para ele, a violência contra povos indígenas pertence a um problema mais amplo – a inexistência de políticas públicas especializadas.  

Lideranças Matsés comunicaram que irão apresentar o fato aos órgãos competentes, além de acionar o Ministério Público e registrar queixa na Polícia Federal. De acordo com a ONU, as mulheres são as principais vítimas das violências cometidas contra comunidades indígenas.  A organização relata que uma a cada três mulheres já foi estuprada e que a violência sexual também pode ser encarada como “limpeza étnica”.

O processo de desumanização do corpo e do saber indígena por meio da colonização é um dos entraves que contribuem para que a violência sexual contra mulheres indígenas tenha maior grau de invisibilidade quando comparada a outros grupos da sociedade. Mas, de acordo com a professora Iraildes Caldas, antropóloga e professora na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), o levantamento dessas questões também acontece vagarosamente por discordância entre os antropólogos quando se trata de casos domésticos. Parte dos profissionais considera que a cultura de determinado povo acaba justificando o ato. 

A tentativa de dizimar as populações nativas se deu através de várias práticas durante a invasão europeia no território brasileiro. O estupro em áreas de conflito pode ser encarado como instrumento genocida quando a prática tem a intenção de desmoralizar e destruir grupos inteiros. O artigo A Tipificação do Estupro como Genocídio, de Daniela de Vito, Aisha Gill e Damien Short, atenta com a observação de Grayzel e considera que o corpo feminino, na guerra, se torna “campo de batalha simbólico no qual diferenças culturais e geopolíticas antiquíssimas são exteriorizadas, onde novas formas de ódio são implantadas e alimentam o desejo de vingança no futuro”.

Em declaração ao HuffiPost Brasil, o Cimi esclareceu que os dados dos Relatórios de Violência do Conselho carecem de informações que proporcionem uma análise mais aprofundada dos casos e, através deles, não é possível afirmar que a fragilidade desses povos às determinadas violências está atrelada a luta por seus territórios tradicionais. Em 2016, Victoria Tauli Corpuz, relatora especial da ONU, realizou uma visita de 10 dias ao Brasil para identificar os principais conflitos que os indígenas estão submetidos. O trabalho contou com uma coletiva com líderes indígenas. Na ocasião, a relatora ressaltou a importância de documentar as questões e citou que os casos de violência não são apenas domésticos, mas consequências das invasões às comunidades indígenas. 

Marcia Wayna Kambeba, mestre em geografia pela Universidade Federal do Amazonas, originária do povo Omaguá Kambeba, pertencente à região do médio e alto Solimões e no baixo Rio Negro, milita por seu povo e afirma que as mulheres indígenas sofrem muito quando submetidas à violência visto que ela vivencia a dor como mulher nas esferas física, psíquica e social. Em entrevista ao HuffPost Brasil , Marcia explica:

“Mulheres indígenas sofreram esterilização forçada. Mulheres e crianças são violentadas e assassinadas por pistoleiros como forma de intimidar o povo a deixar a aldeia. Os responsáveis não são punidos. Na aldeia Tururucari-Uka, do povo Kambeba, as casas foram derrubadas várias vezesA cacique de lá é uma mulher. Ela lutou bravamente e a aldeia hoje continua no mesmo lugar. Uma comunidade não indígena invadiu a aldeia na tentativa de expulsá-los. O líder da invasão disse aos Kambeba: pra que índio quer tanta terra?”

O uso excessivo de álcool percorre os costumes de algumas aldeias indígenas e hoje é fator de agravamento para a ocorrência de abuso sexual nas comunidades. Iza Tapuia, consultora da UNESCO e uma das lideranças do povo Tapuia, explica que o estupro é uma distorção da moral e não natural das aldeias, e que a organização social pode ser afetada por problemas que não são naturais daquele povo. Acrescentou um alerta para a necessidade de analisar as violências sexuais considerando as especificidades de cada população.

Iraildes Caldas realizou pesquisa com duas etnias para averiguar se a violência contra a mulher estava presente no cotidiano daqueles povos e como se configuram tais atos. A ideia de mulher “universal” perde credibilidade por desconsiderar as especificidades culturais, de tempo e espaço. No caso das indígenas, o cuidado de analisar pontualmente a realidade de cada povo é mais rigoroso, já que cada cultura tem uma inscrição mítica diferente, e o que configura violência para uma não necessariamente é para a outra. A pesquisadora explica que a chegada do colonizador promoveu o fenômeno de transcrição (encontro de culturas), introduzindo as etnias à cultura patriarcal ocidental, e que a solução para o problema não é ignorar a presença da violência. 

“É preciso conhecer o terreno que estamos pisando para fazer a crítica da violência sem sermos injustos e, depois, reconhecer que há sim um patriarcado dentro das etnias. E não achar como alguns antropólogos acham que tudo é cultural. Então até a violência é cultural? Eu sou antropóloga culturalista, mas não acho que tudo se justifica através dela. Ela é um metabolismo que está em transformação. E não posso dizer que o mal seja uma coisa boa para etnia. Por isso, eu não aceito a expressão “cultura do estupro”. A cultura é coisa de desenvolvimento social e humano, como a violência se torna uma cultura? Eu não posso dizer contracultura também. Então o que é isso? É um mal-estar civilizatório”, reflete a pesquisadora.

A etnia Sateré-Maué é a segunda maior no Brasil e parte dela está localizada no município de Maués, no Amazonas. No caso das mulheres desta etnia, o mito não permite que elas se aproximem de apetrechos e, com isso, oferta o lugar do detentor do alimento ao homem. Assim, dificulta a reação contra violência vinda deles. 

Para Caldas alguns pesquisadores, quando trabalham esses temas, tentam encorajar as mulheres a denunciarem as violências que sofrem, mas esbarram em elementos culturais que dificultam o processo. Entendendo que as etnias precisam ser encaradas como únicas, esses profissionais têm a preocupação de evitar colonizar os povos.

De acordo com Iraildes, os antropólogos realizam trabalhos efetivos dentro das comunidades mesmo diante de terrenos complexos e, de início, desconhecidos. Entendendo que as etnias precisam ser encaradas como únicas, esses profissionais tratam de temas delicados evitando colonizar os povos.

E o feminismo nisso?

O Feminismo Indígena no Brasil é recente e tem sua origem marcada nos anos 80 com a aparição de duas organizações: Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (Amarn) e a Associação de Mulheres Indígenas do Distrito de Taracuá, Rio Uaupés e Tiguié (Amitrut).  Na década seguinte, outros grupos de mulheres se juntaram e passaram a levar as questões das indígenas para as agendas feministas. As integrantes dos feminismos indígenas também levantam questões a respeito da sustentabilidade, já que pertencem ao grupo mais afetado  pela devastação ambiental.

Junto à Marcha das margaridas, as indígenas estão se organizando para caminhar em Brasília.  Questões de proteção e manutenção dos territórios, saúde e educação serão levantadas na marcha que acontece todo ano no mês de agosto. De acordo com Ro’Otsitsina, liderança indígena, temas atrelados à violência de gênero aparecem com timidez, mas estão sendo “fincados” aos poucos.

Para Nacy Frase, autora do livro Feminismo dos 99%, o feminismo liberal – pensamento hegemônico de luta contra o machismo – está associado à realidade da mulher branca de classe média.  No caso de mulheres indígenas brasileiras, em que cada problema social precisa ser  analisado por etnia, tal compreensão não se adequa à realidade. 

“Primeiro, as feministas poderiam trabalhar de uma maneira incorporada à cultura indígena. Mas elas têm dificuldades, não conseguem. Por que as feministas não têm um preparo para estar junto aos índios. É preciso ter um preparo e elas querem fazer como fazem com os povos brancos. E não é assim. Então tem que ter certo cuidado. Faz muito tempo que eu entrei na etnia para ganhar a confiança deles. Eu não aceito essa coisa de querer colonizá-los. Por isso, eu digo que temos que estar dentro, com eles, porque senão iremos querer levar conhecimento, e não é assim”, opina Iraildes Caldas.

 

A ilustração em destaque é de autoria de Sandro Schutt, jornalista e editor da Amazônia Latitude, que trabalha como ilustrador nas horas vagas. 

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