O mercado de NFTs na Amazônia

Ilustração de uma onça, em cores azul e rosa psicodélicas
Tecnologia pode financiar artistas da região e iniciativas de conservação de florestas; uso excessivo de energia e fraudes são desafios.

O artista paraense Paulo Victor Santos Dias, o PV Dias, viu nos NFTs (sigla em inglês para Token Não Fungível) uma oportunidade de atingir novos públicos. Com o lançamento da série “Movimentos Amazônicos”, composta por dez obras e hospedada na plataforma Open SEA, PV explora o universo imbricado entre dança, brincadeira, trajetos e tecnobrega da cidade de Belém (PA). Segundo Dias, o mercado de NFTs na Amazônia permite que ele disponibilize trabalhos que antes não conseguia comercializar, como gifs e obras em realidade aumentada, difíceis de serem vendidos como fine art.

Kambô, outro artista paraense criado na cidade de Cametá (PA), também viu oportunidade no mundo dos NFTs. A entrada no mundo da Cripto Arte foi natural, conta, dada sua trajetória na arte digital, que incorpora técnicas que mesclam o digital com o analógico na busca de uma Amazônia mítica, mas também Pop Art. Em parceria com o produtor musical e artista multimídia Lucas Estrela, Kambô lançou “Círio de Nazaré”, um vídeo em lapso temporal de uma das maiores manifestações religiosas do mundo.

Os NFTs foram criados com o intuito de vender arte digital assegurando a autenticidade e propriedade digital de um arquivo, cujo foco é a certificação de originalidade e posse exclusiva.

O Token é registrado em uma blockchain de alguma criptomoeda, que nada mais é do que um sistema de registro de transações descentralizado, não administrado por órgão governamental, mas por uma rede de usuários conectados. A autenticidade de todas as transações é garantida por meio das provas de trabalho (cálculos matemáticos complexos) realizadas por todos os computadores ligados à rede blockchain.

Para cada criptomoeda criada nas provas de trabalho, é gerada uma cadeia de blocos de informação (imutáveis). Quanto maior for a cadeia de blocos, mais difícil é mudar ou corromper os dados. É esse encadeamento que diminui o risco de fraudes. Para alterar uma transação no sistema, seria necessário modificar o dado de algum bloco e validá-lo nos blocos anteriores até formar um consenso da veracidade da nova informação em 51% dos computadores pertencentes à rede. Isso exigiria um poder computacional maior do que toda a rede ligada ao blockchain.

No mercado de arte, a expectativa é de autonomia por parte dos artistas em relação aos próprios trabalhos. Já os compradores terão a certificação de originalidade. De acordo com o coordenador do Laboratório de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Mídias Interativas (MediaLab) e professor do programa de pós-graduação em Arte e Cultura Visual (FAV) da Universidade Federal de Goiás, Cleomar Rocha, “museus, galerias, colecionadores e artistas passam a ter controle sobre os arquivos, atestando serem aqueles e não outros os arquivos originais”.

Na prática, as plataformas de negociação de NFTs funcionam como marketplaces que permitem o contato direto entre o artista e o comprador. Segundo PV Dias, dessa forma sempre será possível para o artista comercializar o próprio trabalho, saber onde ele está alocado, além de sempre ganhar uma porcentagem pela revenda de suas obras.

Os royalties de revenda de uma obra são vistos como extremamente positivos na comercialização das NFT na visão dos dois artistas. Kambô explica que uma taxa é paga automaticamente ao artista toda vez que a obra é revendida a outro comprador. O artista pode definir um percentual de até 30% do valor de revenda, a depender da plataforma.

Colecionismo digital

Para os críticos, um dos principais argumentos contra os NFTs é a facilidade de replicação dos arquivos digitais, que coloca sob suspeita os conceitos de originalidade e exclusividade. A discussão não é nova e há diversos casos documentados na História da Arte. Embora o desenvolvimento tecnológico contribua para a evolução dos processos de reprodução, como consequência também há o surgimento de mecanismos de certificação.

“A reprodutibilidade técnica colocou em questão um dos valores do mundo da arte: a existência do original. Arquivos digitais podem ser reproduzidos indefinidamente, visto que não possuíam possibilidade de identificação. Há casos similares com gravuras, fotos e vídeos, que passaram a ser assinados e atestados pelos autores como originais”, aponta Rocha, da UFG.

Para os entusiastas da tecnologia, a certificação é um dos atributos que torna os itens digitais colecionáveis. Acervos digitais são criados todos os dias, seja um álbum de fotos no Facebook ou a aquisição de uma obra de arte digital em NFT. PV Dias recorda o caso de sua mãe para exemplificar a naturalidade com que acontece. “Hoje em dia, posso falar que os álbuns da minha mãe foram substituídos pelo seu álbum do Facebook, com fotos de 10 anos atrás. O colecionismo se torna digital, arquivos e muitas partes do que a gente considera que tenha algum tipo de valor estão na nuvem”.

A prática corresponde aos novos hábitos culturais que as pessoas cultivam e moldam, avalia Rocha, da UFG. “Estamos reinventando a cultura e o contexto tecnológico é nosso ambiente”. Essa transformação pode ser impulsionada pela popularização do NFT, implicando em “novos dispositivos específicos de visualização desses trabalhos, galerias e museus, ampliando o contexto de produção e exibição das obras digitais.”

Kambô imagina uma radicalização desse processo ao lançar um olhar para o futuro, com a digitalização do colecionismo por meio do próprio metaverso. “Quem sabe a nossa próxima conversa seja no Metaverso Kambozístico, com os nossos pés molhados pelo Rio Tocantins e, que no final, você compre um NFT e leve outro de brinde para colocar na parede do seu escritório virtual”, brinca.

Gif de um homem e uma mulher dançando

Tecnobrega, couple dancing between the north and south of Brazil. (0,3 ETH on polygon, US$914,72)/ PV Dias.

Para além do digital

Além da visibilidade e controle sobre suas obras prognosticados por artistas, o mercado de NFTs na Amazônia se direciona a iniciativas de preservação ambiental. Os projetos vão desde financiamento de instrumentos de proteção de espécies ameaçadas à comercialização de ativos sustentáveis com o mercado de NFTs, diz o especialista em gestão ambiental e coordenador executivo da Fundação Vitória Amazônica, Fabiano Silva.

“Empresas começam a entrar nesse meio, criar um vínculo de ativos reais com os NFTs, como ‘linkando’ hectares de floresta com NFT, créditos de carbono com NFT ou produção extrativista com NFT”, explica.

É o caso da parceria entre o povo indígena Paiter Suruí e a Associação Metareilá, da terra indígena Sete de Setembro (Rondônia e Mato Grosso), que lançaram um leilão de obras em NFT com o propósito de arrecadar recursos para a compra de câmeras, sensores e GPS. Os equipamentos serão usados para monitorar invasões, a extração ilegal de madeira e o desmatamento do território índigena dos Paíter Suruí. O material coletado pelo grupo indígena e a Associação Metareilá devem ser submetidos como provas ao Ministério Público em futuras denúncias.

Há o projeto NForesT, da agência NFMarket, que visa promover o reflorestamento na região do rio Arapiuns, na comunidade do Coroca em Santarém (PA) com a venda de NFTs de artistas locais, em parceria com o EcoViva Amazônia, entidade que será responsável pelo plantio das mudas. Segundo a iniciativa, ficarão disponíveis para consulta pública o registro das espécies plantadas, a localização, a importância biológica e os subprodutos extraídos de cada espécie.

Outra das ações com finalidade de proteção ambiental é o Power Jags, projeto que destina o lucro da venda de NFTs à ONG Ampara Silvestre, que atua na proteção da onça pintada, espécie ameaçada de extinção pela caça e perda de seu habitat.

Silva, da Fundação Vitória Amazônica, alerta, porém, sobre a dependência única e exclusivamente de um acordo verbal entre as partes. “Posso lançar um NFT de hectares de floresta e vender num mercado dizendo que é um ativo único e exclusivo. Quem tem aquele NFT me ajuda exclusivamente a preservar aqueles hectares de floresta. Mas posso, sem falar para ninguém, lançar outros NFTs para o mesmo hectare de floresta em outra plataforma de criptomoedas, criando dois ativos digitais para um único ativo físico”.

Para o especialista em gestão ambiental, conforme outras propostas nasçam com o objetivo de atrelar um ativo físico ao NFT, se torna inevitável o surgimento de mecanismos de governança da propriedade. “Uma vez que você sai do mundo digital e entra no mundo dos cartórios, dos documentos burocráticos e físicos, quebra totalmente o processo de credibilidade e validação dos blockchains, das criptos e dos NFTs”, conclui Silva.

Custo Ambiental

Apesar do potencial na divulgação artística desterritorializada e do financiamento de projetos de proteção ambiental, o mercado de NFT na Amazônia enfrenta problemas em relação à quantidade de energia necessária na mineração de criptomoedas. A notícia de que a mineração do bitcoin consumiu mais energia do que a Argentina viralizou pelo mundo. Se fosse um país, a atividade da criptomoeda ocuparia o 34º lugar no ranking de consumidores de energia. O dado desencadeou uma série de críticas que colocam em questão a sustentabilidade dos NFTs e o sistema blockchain como um todo.

A principal causa do consumo de energia é um alto poder computacional que as fábricas mineradoras de criptomoedas (pools) precisam para a realização das provas de trabalho. Segundo o site Digiconomist, que faz o monitoramento do impacto ambiental da bitcoin, a pegada de carbono foi de 97 mega toneladas de emissões de gás carbônico em 2021. Já o lixo eletrônico gerado foi de 32 mil toneladas, por conta da alta rotatividade nas substituições dos equipamentos.

Entretanto, como a maioria dos marketplaces estão baseados na blockchain da criptomoeda Ethereum, há a tentativa de substituição da “prova de trabalho” (Proof of Work ou PoW) pela “prova de participação” (Proof of Stake ou PoS). Ou seja, substituir os cálculos complexos por outra forma de registro e autenticação das transações atrelado a um “ativo” oferecido por cada usuário como garantia. A medida promete reduzir entre 95% e 99% do consumo de energia, é o que afirma o pesquisador da Ethereum Foundation, Carl Beekhuizen. A implementação e confirmação da eficácia ainda precisam se confirmar.

Ilustração em destaque: Kambô – Dona da Mata (realidade aumentada).
Reportagem de Vinicius Nascimento

 
 

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