Razão ou morte

“Penso, logo existo”. Ao sintetizar sua visão sobre o sentido da existência humana nesta singela frase, em 1637, o francês Renés Descartes sacramentou uma guinada na relação do homem moderno com o planeta. O intelecto adquiriu um protagonismo inédito. Afinal, somente a redentora razão poderia guiar e dar sentido ao mistério da vida. Ao conhecimento tradicional — adquirido, organizado e transmitido ao longo de milênios — reservou-se o lugar do mito folclórico.

O impulso iluminista acarretou um desenvolvimento sem precedentes do domínio humano sobre as mais diversas tecnologias – materiais e sociais. A possibilidade de controlar a natureza colocou a espécie em posição privilegiada. Se a razão é condição básica da existência, não reina o maior predador, mas o bípede com intelecto. O homem moderno se empoderou gradativamente, tornando-se senhor de seus desígnios.

Nesse cenário, os outros bípedes que viviam com base na observação da natureza para viver em conformidade com seus tempos são a expressão máxima do atraso, a quem falta ser tocado pela palavra redentora do racionalismo. Devem aprender que árvore é “recurso natural”, e não um ser divino. Quem cultuá-la deve ser dominado ou eliminado, pois constitui obstáculo ao projeto de expansão dos bípedes intelectuais humanos de pele clara.

Na escala positivista da racionalidade, os povos que ainda não descobriram a salvação pela razão estão mais próximos dos animais do que dos bípedes intelectuais. Logo, escravizá-los é um processo natural. Quando as avançadas tecnologias já permitiam, durante a colonização da África, a santíssima ciência deu o sinal verde: analisou o peso e estrutura de crânios africanos e “descobriu” a inferioridade evolutiva que desejava.

O grande modelo da racionalidade seguiu destroçando os obstáculos para o contínuo domínio e expansão do modo de vida bípede intelectual. Há alguns anos, porém, o projeto sofreu um duro golpe. Seus hábitos de consumo e produção foram diagnosticados como nocivos para o planeta. Os desejos irrefreáveis de seus intelectos geniais e fervilhantes colidiam com a finitude dos “recursos naturais”. Era preciso encontrar uma saída.

Aqui, é preciso informar o leitor sobre uma máxima tão importante quanto a de Descartes para o movimento da divina razão: até o fim, mesmo que o fim seja a destruição. A resposta do intelectualismo à gigantesca crise que produziu no equilíbrio termodinâmico do planeta foi entregar o destino nas mãos da sagrada ciência. Para sair do buraco, fazemos o que sabemos de melhor: cavar mais.

Afinal, se aceitamos de peito aberto a tese do sociólogo mexicano Enrique Leff, para quem a crise ambiental é uma crise do pensamento moderno, como nos relacionamos com o mundo? Fora da razão, só conhecemos a ditadura das trevas católicas da Idade Média e os terraplanistas contemporâneos. Buscar saídas nas cosmologias tradicionais significa cogitar que o folclore possa apresentar mais possibilidades do que as tecnologias. Nesse caso, só resta desligar as termelétricas e botar a floresta abaixo para erguer belos montes.

A angústia de ver o fundo do poço mais de perto tem provocado um despertar em alguns dos bípedes intelectuais que integram o exótico grupo que deseja aos seus netos um planeta habitável nas próximas décadas. No Seminário Internacional de Ecologia Política – Justiça Socioambiental e Alimentar na Tríplice Fronteira, realizado em maio nas cidades de Tabatinga (AM) e Leticia, na Colômbia, a necessidade de desenvolver novas mediações com o planeta permeou as discussões e ganhou materialidade na exposição de uma hora e meia de Enrique Leff.

“Os modos tradicionais de compreensão da vida foram descartados. Se não conhecem perfeitamente a ordem da vida, eles se aproximam mais de sentir, perceber, experimentar, dar tempo à natureza para se recuperar. São modos mais prudentes de intervenção sobre a vida, que não se baseiam na dominação e controle, mas em viver dentro das condições da vida, de sua imanência”, defendeu.

Enquanto espreitam os de pele clara a se afundarem, remanescentes dos bárbaros que cultuavam a natureza ousam dizer que podem salvar a humanidade da doença do ego. Do alto de seu primitivismo, pedem que sejam ouvidos para contar o que seus ancestrais aprenderam com milênios de interação com os mundos visível e invisível. Apesar dos séculos de colonialismo, os indígenas humilhados dão chance ao conhecimento iluminado do homem branco, frequentam suas universidades e se adaptam ao mundo resultante da destruição racional. Por sua vez, o bípede intelectual moderno não é tolo de se abrir aos ensinos de perigosos selvagens que vivem com base em crenças que não resistem ao bom método científico. Enquanto leva à extinção espécies com potencial curativo, embriaga-se de Rivotril.

A força aprisionadora do projeto racional impediu os movimentos surgidos em sua contestação de darem o passo fundamental. Mentes brilhantes dedicaram-se à formulação de projetos alternativos ao capitalismo, mas, sem perceber, reproduziam a mesma lógica colonial que julgavam confrontar. Somente assim podem-se entender certas decisões tomadas por governos progressistas no Brasil e no mundo. Os bípedes intelectuais brancos críticos que perceberam as armadilhas da razão se refugiaram nas artes, campo que tolera a loucura. Defensor público do “direito ao delírio”, o escritor uruguaio Eduardo Galeano detestava ser apresentado como intelectual. “Os intelectuais são aqueles que divorciam a cabeça do corpo. Eu não quero ser uma cabeça pelo caminho. Sou uma pessoa. O intelectual é um personagem abominável”, disse certa vez.

As cabeças rolantes pelo caminho se recusam a ouvir o canto da floresta. Para isso, precisariam admitir que são uma ínfima poeira cósmica e necessitam da salvação. Isso implicaria, porém, aceitar a inevitabilidade da morte. Na condição de super-homens, os racionalistas não gostam do assunto. É demasiado misterioso e pode colocar em xeque a sagrada matemática da vida. À deriva, a gigante nave de robôs segue o feliz trajeto rumo ao abismo.

 

João Pedro Soares é um carioca apaixonado pelo Rio que se rendeu aos saberes encantados da floresta. Jornalista, gosta de viajar para encontrar e contar histórias sufocadas pelo curso da história. Sócio da Agência Andante, é correspondente da Deutsche Welle no Brasil e tem matérias publicadas nos principais veículos do país, como as revistas Piauí e ÉPOCA, além de Folha de S. Paulo e El País Brasil.
A imagem em destaque retrata a destruição do planeta e o desprezo aos saberes tradicionais são o lado obscuro da razão iluminada que movia os sonhos de Descartes. A arte é de Fabrício Vinhas, designer da Amazônia Latitude.
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