Tríplice fronteira: perspectivas socioeconômicas no Alto Solimões
Para ser compreendida, tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, no Alto Solimões, requer a análise a partir de três perspectivas distintas por conta de suas particularidades
A extensão territorial do Brasil e, por consequência, a extensa linha fronteiriça com dez outros Estados-Nação, permite um abrangente estudo sobre as fronteiras e seus pontos de contato. Dos quinze mil quilômetros de linha fronteiriça, dez mil estão na Amazônia, do estado de Rondônia até o Amapá, cobrindo a região com menor densidade demográfica do país, e portanto, com o menor número de pontos de contato fronteiriço.
Neste artigo trataremos apenas da fronteira do Brasil com a Colômbia, que possui uma extensão de 1.644 quilômetros. Em toda esta linha existem apenas quatro pontos de contato: Yauarete (Colômbia) e Iauaretê (Brasil); La Pedrera (Colômbia) e Ipiranga (Brasil); Tarapaca (Colômbia) e Vila Bitencourt (Brasil); e Letícia (Colômbia) e Tabatinga (Brasil). Destes, só o último apresenta uma dinâmica fronteiriça com certa intensidade. Na medida em que reúne aproximadamente cinquenta mil habitantes, metade em cada cidade, e faz fronteira também com o Peru; além do fato de Letícia ser a capital do Departamento do Amazonas e Tabatinga, a principal cidade do Alto Solimões, sendo, inclusive, cotada para ser capital numa eventual divisão do estado do Amazonas.
Esta fronteira é, deste modo, o principal centro de convergência de toda uma rede no interior da Amazônia, já sendo denominada na década de 1940, por Lisias Rodrigues, como punctun dolens (ponto doloroso), lugar merecedor de atenção do Estado.
Embora existam inúmeras classificações de fronteira, construídas desde Friedrich Ratzel, numa visão orgânica, passando por Camille Vallaux, Jacques Ancel, Arthur Dix e outros estudiosos do passado, chegando até Michel Foucher na atualidade, que procura inovar apontando um caráter subjetivo às mesmas, procuramos estabelecer algumas noções como fronteira controlada, fronteira percebida e fronteira vivida, que tentam abranger as diversas formas de como a fronteira se mostra. Nossa intenção aqui é apresentar a parte “viva” da fronteira, composta pela população que ali vive e pelo olhar daqueles que estão de fora, como os defensores da pátria.
Como dissemos acima, a cidade brasileira de Tabatinga está, hoje, conurbada com sua vizinha colombiana Letícia, e isto constitui, a nosso ver, um aspecto preponderante na análise fronteiriça e importante nas discussões que começam a aparecer em torno proposta de divisão territorial do Amazonas.
É preponderante, em primeiro lugar, porque a condição fronteiriça sempre terá para o Estado-Nação um significado particular; em segundo lugar, porque a cidade de Tabatinga é apontada como aquela que reúne as condições infraestruturais para sediar a capital do futuro território; enfim, porque exige que se consiga separar elementos distintos em duas cidades que se parecem uma só e une elementos distintos numa só região, que legalmente é composta por duas cidades. O funcionamento desta aglomeração urbana, repartida por uma linha imaginária, proporciona múltiplas relações, que em geral são reflexos das decisões tomadas nas capitais dos respectivos Estados-Nação. As cidades fronteiriças, nesta condição de geminação, terminam demonstrando o que se passa no país, fazendo com que sua população possa usufruir de determinadas circunstâncias, movendo-se mais para um lado ou para outro, como o balanço de uma gangorra.
Tabatinga: o “maior bairro de letícia”
A chegada em Tabatinga por avião deixa o visitante, já no aeroporto, surpreso com a quantidade de motocicleta com placas da Colômbia, indicando a proximidade da fronteira. Também atraem a atenção os táxis novos da frota de Letícia em contraste com os velhos táxis brasileiros de Tabatinga. Se a fronteira é, como dizia Ratzel, a parte mais sensível do Estado-Nação, isto nos remete a pensar o Brasil na fronteira, em especial na sua fronteira Norte. A relação mais imediata é entre Brasil e Colômbia, que se dá através de Tabatinga e Letícia, comparação inevitável para quem chega e menos importante para quem vive.
Originariamente um forte português, denominado São Francisco Xavier de Tabatinga, composto pela junção de um santo português com uma palavra nheengatu, que significa barro amarelo, Tabatinga já aparece nos relatos da viagem de ao Alto Solimões nas primeiras décadas do século XIX. Àquela época, o quartel da fronteira já era dos portugueses contra o Peru e, distante de Belém (quase quinhentas milhas francesas, contabilizavam os viajantes). Lá encontraram um comandante de milícias com 12 soldados e puderam ver as “ruínas de um belo edifício construído pela Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, fundada no tempo de Pombal, para sua filial”.
Relatam também o estado lastimável do forte com alguns canhões enferrujados. Construído em madeira, estava no ponto mais alto da margem do rio Solimões, sendo fácil dominar a passagem do rio. Não podiam deixar de perceber a presença dos Ticunas, nação indígena majoritária no rio Solimões.
Já na segunda metade do século (1865-1866), o lugar recebe a expedição de Louis e Elizabeth Agassiz, que também deixam suas impressões. Explicando a seus futuros leitores, situam Tabatinga como uma vila fronteiriça entre o agora Brasil e então território do Peru. Em virtude disso, acaba se tonrnando um posto militar. No entanto, “quando se olha para os dois ou três pequenos canhões em bateria sobre o rio, a casa de barro que constitui o posto e os cinco ou seis soldados preguiçosamente deitados à sua sombra, bem se pode de não considerar essa fortificação como formidável”, Sobre a vila, chama a atenção de Agassiz o fato de estar num barranco de aluvião bem escavado e fendido em várias direções e ser composta por uma dúzia de casas em ruínas ao redor de uma praça central. Quanto aos habitantes, não pode dizer nada, porque quando desceu do barco, a tardinha, todos os moradores já haviam se recolhido para proteger-se dos mosquitos. O pavor dos mosquitos à noite e dos piuns durante o dia, tornavam a vida intolerável, segundo os moradores que a receberam.
Atravessando o rio Solimões e chegando à boca do rio Javari, encontra-se a cidade de Benjamin Constant, antiga aldeia de São José do Javari, à qual Tabatinga esteve vinculada como distrito até 1986. Como município, foi Benjamin Constant que desde a sua criação recebeu do governo estadual e federal dotação em infraestrutura. Recebeu também grande quantidade de migrantes durante a Segunda Guerra Mundial para trabalharem nos seringais dos altos rios. Eram os soldados da borracha, que chegavam nos navios da antiga companhia de . Também os hidroaviões catalina, da antiga companhia de aviação Panair do Brasil, passaram a fazer o percurso até ali – ver sua chegada se tornou um atrativo para a população local. Isto dinamizava a economia regional, na medida em que se instalavam agenciadores, casas de comércio e outros negócios, ao mesmo tempo em que servia para, na visão dos militares, vivificar a fronteira.
Porém, o penoso trabalho da coleta da borracha na floresta, associado às doenças e ao baixo preço do produto, converte esses migrantes parte em população rural, mais agrícola que extrativa, e parte em prestadores de serviços diversos que atravessam o rio rumo à Tabatinga e Letícia para trabalhar, inclusive, incorporando-se à colônia militar localizada a poucos quilômetros da linha divisória.
As primeiras ruas do povoado civil de Tabatinga surgem às margens do Igarapé de Santo Antonio, que é, na origem, a divisa do Brasil com a Colômbia. Durante a vazante dos rios a travessia pode ser realizada a pé. Hoje, inúmeras casas de colombianos, brasileiros e peruanos ocupam o fundo do vale deste pequeno rio. A rigor não há “fronteira”.
Como as cidades estão na mesma margem do rio Solimões, quem chega de barco não consegue definir onde começa uma ou outra. As antenas de transmissão de rádio ou TV, primeiro sinal da cidade quando vista de longe, não possibilita distinguir a qual cidade pertence.
Na verdade, todas as cidades ribeirinhas do Solimões apresentam que as assemelham. Voltadas para o rio, que é, em geral, a porta de entrada e de saída da cidade, tem no porto, por mais precário que seja, o ponto de contato com o mundo rural e regional. Daí ser este lugar o de toda a produção rural, aquele que abriga o mercado público, as casas de comércio que abastecem a população e outros serviços associados à vida ribeirinha.
Tabatinga aparece como Colônia Militar em 1967. Encravado na faixa de fronteira, na área de segurança nacional, foi administrada pelos militares até transformar-se em município em 1986. Abrigando um efetivo mais numeroso, composto por militares transferidos de outras partes do país, vindos de Benjamin Constant e de outras cidades do Amazonas, foi necessário dar um suporte mínimo à colônia. A construção da Vila Militar, da Base Aérea, da pista de pouso (depois ampliada para um aeroporto internacional), de um porto e de uma agência do Banco do Brasil criaram determinadas condições que, em nosso entendimento, foram o ponto de partida para a transformação do distrito em futuro município, que hoje polariza a região do Alto Solimões.
Esta implantação, como qualquer chegada de pessoas de outras regiões, não foi tão tranquila para a população civil já estabelecida. Uma das primeiras iniciativas dos militares foi retirar os moradores da linha de fronteira, ou seja, da ‘beira do igarapé’ que constitui o limite, e levá-los para a proximidade do núcleo militar. Contudo, eles sempre retornavam para o igarapé consolidando até hoje a ocupação.
Dentre as condições criadas para receber os militares, foi construída uma escola para atender exclusivamente seus filhos, restando para a população civil a alternativa de matricular suas crianças nas escolas de Letícia. Do mesmo modo, o lazer já não era mais tão livre. Do jogo de futebol a uma festa, tudo passava pela autorização do comandante da colônia. As festas só podiam ser realizadas aos sábados até à meia noite; não se podia usar vermelho; para beber, a alternativa era ir para Letícia, Ramon Castilla, vila peruana na outra margem do rio, ou esconder-se. Certo dia, contam os mais velhos, os militares foram de bar em bar e destruiram todas as bebidas alcoólicas encontradas. Não se podia jogar bola na rua e, aos gritos de “lá vem a patrulha”, recolhia-se a bola e os jogadores escondiam-se. O castigo comum para essas “desordens” era ir para o valão, que significava cavar valas de esgotos na colônia militar.
A reação a essas atitudes veio com a criação em 1972 do Conselho Comunitário do Desenvolvimento de Tabatinga, mesmo contra a vontade dos militares. Até então, luz elétrica era privilégio da colônia militar, mas em 1973 uma linha de transmissão de energia, saindo da colônia militar, chegou à rua Marechal Rondon, na beira do igarapé Santo Antônio.
Já na década de 80, a gradativa expansão do efetivo militar, a ampliação e asfaltamento da pista de pouso, com o estabelecimento de voos regulares para Manaus, a construção do hospital de guarnição do Exército e a própria expansão comercial do outro lado da fronteira, na cidade de Letícia, passa a ser determinante uma mudança estrutural de Tabatinga. O efeito acaba conduzindo uma maior atração de migrantes da região – brasileiros e peruanos – e com isso a cidade começa a adquirir autonomia do município de Benjamin Constant. Hoje, um dos grandes problemas do município de Tabatinga é a pressão social para o atendimento assistencial a brasileiros e peruanos que já habitam a cidade.
Como fronteira, merece atenção maior do Estado-Nação que, ao implantar estruturas de defesa para a segurança do território, termina por caracterizá-la como fronteira controlada. Este exercício de controle numa região com as características singulares da Amazônia – água e selva – é realizado mais intensamente pelo Exército, Polícia Federal, Receita Federal, IBAMA,
Enfim, , existem os Comandos de Fronteira (CF) do Solimões, com sede em Tabatinga, que abriga os Pelotões Especiais de Fronteira (PEF) em Estirão do Equador (localizada a 460km de Tabatinga) e Palmeiras do Javari (770km), ambos no rio Javari, fronteira com o Peru, e os P.E.F. de Ipiranga, no rio Iça (660km), e Vila Bittencourt (1580km), no rio Japurá. O CF Sol, como é conhecido em Tabatinga, que traz em seu muro a inscrição de forte simbolismo “ ”, tendo o maior número de militares, consegue dinamizar a cidade. Com o Hospital de Guarnição e suas máquinas, contribuem com a saúde e a urbanização da cidade.
Cobrindo toda a bacia do rio Negro, está o Comando de Fronteira do Rio Negro com base em São Gabriel da Cachoeira. Sob sua responsabilidade estão os PEF de Yauaretê, Querari, São Joaquim, Cucuí e Maturacá. Atendem as comunidades indígenas e não indígenas com serviço médico-odontológico e laboratorial. Essa área tem constituído uma preocupação maior para o Exército, dada a proximidade de atuação da guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) no rio Vaupés, que entra em território brasileiro com o nome de Uaupés.
No entanto, a fronteira controlada não se manifesta apenas através das instalações e ações militares. Outros órgãos do Estado brasileiro também se fazem presentes no município de Tabatinga. A efervescência da questão ecológica no alto Solimões começou com a apreensão, em 1996, de milhares de toras de madeira oriunda de terras indígenas, dos rios da bacia do Javari, fronteira com o Peru. Historicamente, vivendo das mais diversas formas do extrativismo, do qual o madeireiro tem uma importância substancial, pela extensa rede de dependência que articula, indo do mateiro à grande serraria exportadora, a economia local se viu abalada com a repressão dos órgãos fiscalizadores como o Instituto do Meio Ambiente (IBAMA). A atuação do IBAMA, como se sabe, não se restringe à fiscalização da exploração madeireira, mas também à caça e a pesca. Esta última, cabe salientar, também responde por uma parcela ponderável da vida econômica em toda esta região internacional, como veremos adiante.
Ainda como fronteira controlada, o Estado brasileiro dispõe, nesta região fronteiriça, de policiais federais, cujo encargo principal é a repressão ao tráfico de drogas e o controle de entrada e saída de estrangeiros. Possuem, para isso, um posto de fiscalização flutuante no rio Solimões a jusante de Tabatinga, conhecida por Base Anzol, onde realizam a revista de todas as embarcações que descem em direção a Manaus. A própria Polícia Federal estima em 15 mil o número de clandestinos no estado do Amazonas. De fato, quem sobe o Solimões começa a perceber, a partir de Tefé, a presença de peruanos, principalmente, atuando em diversas atividades como camelô, ajudante de embarcações, pequenos comércios, embora vem sendo também frequente a presença de médicos e odontólogos tanto colombianos como peruanos atuando profissionalmente nas mais diversas cidades da Amazônia Ocidental.
Quanto ao tráfico de drogas, o trabalho exige maior sigilo para identificação de pessoas que possam participar da rede de narcotráfico e busca identificar não apenas pistas de pouso clandestina e aeronaves que usam a pista oficial. Com o programa denominado Controle de Abastecimento e Pouso de Aeronaves (CAPA), do Departamento de Polícia Federal, é possível detectar rotas e destinos suspeitos. Do mesmo modo, não chega a ser difícil identificar as “ ”, pois, numa cidade com população de baixa renda, a realização de duas viagens aéreas num mesmo mês para Manaus já é suficiente para tornar suspeito.
Com o agravamento da crise colombiana, o Estado brasileiro tem ampliado sua atuação nesta região, reforçando o Exército e a Polícia Federal, que internamente disputam os recursos destinados à repressão ao tráfico de drogas. Fazer uma geografia do narcotráfico não é tão simples, pois não há, evidentemente, dados concretos de atividades ilegais. No entanto, alguma coisa já pode ser trabalhada a partir de informações de apreensões realizadas pelos órgãos competentes.
Como cidade de fronteira carrega, comumente, na visão dos que estão de fora, o estigma de lugar perigoso, lugar onde reina a contravenção, criando um ar de suspeição sobre seus moradores. Aqui, procuraremos enfocar a fronteira percebida, entendendo esta como um lugar que é percebido, pelo centro do país, a partir da imagem construída sobre esta condição.
Talvez a imagem mais corrente que se faz da fronteira seja aquela que a mostra como lugar onde o contrabando e o tráfico de produtos ocorre com maior frequência em virtude do aproveitamento das diferenças dos regimes fiscais e legais inerentes a cada Estado-Nação. Mas não só isso. A subordinação do cidadão às leis, aos códigos locais, torna-o cidadão de um Estado, cujas leis são limitadas espacialmente. Assim, a fronteira acaba sendo um aos agentes das atividades ilícitas.
Embora as fortes mudanças ocorridas na economia mundial rumo ao liberalismo, à abertura comercial das fronteiras, tenham promovido uma reorganização no tradicional contrabando, pois ele deixa de ser lucrativo em pequena escala, a nível do cidadão, para só ganhar rentabilidade em grandes volumes transportados, como um grande empreendimento, e do mesmo modo, os acordos internacionais de extradição de cidadãos, tenham possibilitado a busca além-fronteira, esse lugar ainda permanece sendo visto pela sociedade com reservas.
Esta percepção não poderia deixar de ser, em parte, real, pois, sendo a fronteira do Estado o “ponto de contato” com outras realidades jurídicas, tal condição locacional permite o usufruto dessa diferença. Percebida como passagem pela sociedade do interior do Estado, a exigência de sua vigilância é permanente.
Deste modo, Tabatinga vem ganhando espaço não mais apenas na imprensa do estado do Amazonas, que aparecia até meados de 70 como um lugar em que era interessante para os pequenos comerciantes de ouro, produto que descia dos altiplanos peruanos e era negociado em Letícia. Mais recentemente, o aglomerado urbano Tabatinga-Letícia passa a ser percebido na imprensa brasileira como um lugar onde o contrabando corre solto, o tráfico de drogas domina o cenário, a guerrilha está ao lado e recebe os clandestinos estrangeiros que entram no Brasil. Não resta dúvida que a saída do anonimato local para ingressar na mídia mundial não se fez por motivos mais generosos. A percepção assim estabelecida, consolidada, termina por justificar também a fronteira controlada, de que falamos atrás.
Vejamos, então, . Com um título de impacto: “Colombianos criam tensão ocupando terras no Estado”, um jornal de Manaus noticiou a “invasão de colombianos” na fronteira. Dizia o periódico: “Cerca de 500 trabalhadores sem-terra colombianos invadiram ontem pela manhã uma área de aproximadamente 5 mil hectares em Tabatinga […] Os invasores vieram de Letícia, cidade colombiana que faz fronteira com o Brasil”.
No dia seguinte, o periódico, acompanhando a contenda, traz um quadro com depoimento dos “invasores colombianos”, agricultores que ocuparam cerca de sete quilômetros do assentamento Urumutum, do Incra, em busca de trabalho e moradia, plantando banana e macaxeira. Traz, noutra página, uma reportagem sobre o acordo antidrogas entre o Brasil e a Colômbia com a presença de ambos os presidentes na cidade de Letícia.
Cinco dias após, o incidente já está praticamente resolvido, com a retirada dos colombianos e a prisão de nove agricultores. O periódico, trazendo um quadro com depoimento dos moradores de Tabatinga, já afirma que “a invasão dos colombianos não teve repercussão nas cidades de Tabatinga e Letícia”, tendo a maioria acompanhado os fatos pelo jornal. Um taxista de Tabatinga diz “tudo isso é normal aqui. A prisão de colombiano é fato corriqueiro”. Já um agricultor afirma que “tem bairro na periferia, como o Tancredo Neves, que só tem colombiano e peruano”.
Poucos meses depois, outro incidente fronteiriço, desta vez distante mais de 500 km das cidades: um avião da Força Aérea Colombiana usa a pista de pouso do exército brasileiro localizada no PEF Querari, numa ação de combate à guerrilha da FARC, que atacava a cidade colombiana de Mitú, a cerca de 50 km da fronteira com o Brasil. Como não houve autorização prévia para pouso, causou um certo mal-estar diplomático e grande divulgação nos meios de comunicação de todo o Brasil. A imagem de vulnerabilidade põe em evidência a necessidade da fronteira controlada e reforça o argumento da divisão territorial do Amazonas, estimulado pelo combate ao narcotráfico e sua fusão com a guerrilha.
Depois de buscar compreender a fronteira enquanto espaço controlado e como espaço percebido por outro, resta-nos agora apresentar a fronteira vivida por seus cidadãos.
Contando com aproximadamente 37 mil habitantes, dos quais 25 mil estão na zona urbana, estes habitantes vivem com a fronteira uma relação de complementaridade, de solidariedade. Isto significa saber apropriar-se das mais diversas condições do cotidiano para aí viver. E isto vai desde o corte de cabelo na “peluqueria” de Letícia ou uma visita ao zoológico também ali, até a compra de gás butano por leticianos nos armazéns de Tabatinga.
Apesar de não ser tão fácil inserir-se num lugar, conviver como um de seus habitantes, para a partir daí tentar compreender o lugar como seus habitantes os compreendem, as diversas permanências em Tabatinga e Letícia, as relações estabelecidas com uma gama variada da sociedade fronteiriça, permitiram-me um aprofundamento analítico. De feirante a funcionário público, de professor universitário a índio, de garçom a motorista de táxi, de militar a traficante, conseguimos ouvir e viver a fronteira.
Para um funcionário da prefeitura de Tabatinga, a divisão territorial seria muito boa porque viria mais dinheiro do governo (federal) e poderia gerar mais emprego, porque o estado do Amazonas não dá muita atenção, citando a existência de apenas uma viatura da polícia militar. Outros trabalhadores veem como sendo a alternativa para aumentar o movimento comercial, pois viria muita gente, sendo bom para os dois lados.
A grande diferença estabelecida pelos moradores de Tabatinga para com a cidade colombiana de Letícia é o fato desta ser Capital, mais precisamente, capital do Departamento do Amazonas. Esta condição até contribui para a vida dos brasileiros de Tabatinga em virtude da maior oferta de serviços decorrentes da ação do governo de Bogotá para esta fronteira. É clara a hegemonia da cidade colombiana nesta tri-fronteira, a despeito da diferença econômica entre o Brasil e a Colômbia.
, quando previu o que “Atendendo às sucessivas dilatações de território obtidas nestes últimos tempos por hábeis atuações do governo de Bogotá, é de considerar como de certa ponderabilidade a pressão que a Colômbia possa exercer um dia no setor Norte e Noroeste do Brasil, circunstância tanto mais a considerar quando está este setor muito distante da ação direta do governo federal e mesmo do governo de Manaus”.
Para os tabatinguenses, a criação do Território Federal mudaria esta situação porque a cidade também seria capital, possuindo o mesmo status político que Letícia e teria maior atenção do Governo Federal. Contudo, apesar de terem a esperança na criação do Território, também afirmam que esta discussão só aparece em época de eleição, pois termina sendo uma grande bandeira dos políticos para angariar votos na cidade e na região envolvida.
Nos tempos de “muita cocaína”, na década de 80, como hoje falam os comerciantes, a movimentação comercial era bem mais intensa nos dois lados da fronteira; as vendas de bebidas alcoólicas e materiais de construção superavam a normalidade. O aumento da repressão, não só do lado brasileiro como colombiano, alterou a vida na cidade reduzindo o comércio.
Para este segmento, a criação do Território Federal poderia contrabalançar o domínio comercial de Letícia, dado o aumento de população, incluindo funcionários públicos; correria mais dinheiro na cidade. Na verdade, para o comércio, a questão passa pela distância do grande centro fornecedor do Brasil – de São Paulo para Tabatinga. “Muitas vezes a duplicata vence e o produto ainda está na balsa, no rio Madeira”, afirma Saul, comerciante local.
Mas a vida econômica de Tabatinga não pode ser confundida com o comércio de drogas. Compreender esta fronteira requer adentrar no que há de mais tradicional na Amazônia: o extrativismo. Além dele, o funcionalismo público, civil e militar, de ambos os lados também contribuem com a dinâmica comercial.
Menos controlado do que a exploração madeireira, talvez porque sua retirada não deixa marcas na paisagem, a pesca tem sido um dos grandes suportes econômicos da população às margens do Solimões. Inúmeros barcos de pesca brasileiros têm em Letícia os seus principais compradores e financistas. O preço que pagam pelo quilo de pescado nesta cidade é mais estimulante que o preço pago em Manaus. Podemos afirmar que da cidade de Tefé, no médio Solimões, até a fronteira, a quase totalidade dos barcos de pesca de peixe liso, ou de couro, vendem seus produtos para “os colombianos”. Frequentemente essa prática é denunciada como contrabando, que, na verdade, não deixa de ser. No entanto, como os frigoríficos estão em Letícia, cidade que possui uma oferta de energia muito maior que Tabatinga, cruza-se, necessariamente, a fronteira para descarregar o peixe, cujo destino final são os restaurantes de Bogotá e Miami.
Além dos pescadores embarcados, há também milhares de ribeirinhos que se envolveram com este tipo de pesca para vender aos barcos. Isto tem alterado a organização da vida ribeirinha na medida em que já se percebe uma dedicação de tempo muito maior à pesca que a prática agrícola. Com o dinheiro da pesca compra-se outras mercadorias, dentre elas destaca-se o frango congelado que vem do Sul do Brasil, numa viagem de caminhão até Porto Velho, daí até Manaus e Tabatinga de barco.
Num outro circuito comercial estão os índios Tikuna. Formando uma das maiores nações indígenas do Brasil, espalhados também entre Peru e Colômbia, contribuem com o abastecimento local de uma diversidade de , do rio e da terra. Frutos, raízes, legumes e peixes constituem uma das fontes de renda destes indígenas que também terminam por se inserir no mercado local, comprando produtos industrializados.
Se para os não índios a fronteira Brasil-Colômbia praticamente não existe, para os índios ela é completamente ausente. Com língua própria, tradições, costumes e parentesco disseminado ao longo do rio Solimões – acima e abaixo da fronteira estatal – os Tikunas, no dizer do ex-cônsul do Brasil em Letícia, senhor Darly Oliveira, “não respeitam fronteira nenhuma”. Isto reflete bem a concepção de fronteira para um agente do Estado.
Todavia, a fronteira para os índios Tikuna terminou por se expressar de outra maneira. Quando a Fundação Nacional do Índio (Funai) resolveu estender os benefícios da aposentadoria para os índios, o problema veio à tona porque muitos eram Tikunas colombianos, Tikunas peruanos e somente os Tikunas brasileiros faziam jus ao benefício.
O efetivo militar de Tabatinga, mais os funcionários dos órgãos federais – Polícia Federal, Ibama, Funai, Receita Federal, Ministério do Trabalho, Banco do Brasil – estaduais, e municipais também contribuem com seus salários para a vida comercial das cidades. Com apenas duas agências bancárias – Bradesco e Banco do Brasil – o banco oficial tem nos salários do funcionalismo cerca de 70% de sua movimentação bancária.
A fronteira vivida para este segmento da população que vem de outros estados da federação, principalmente militares e funcionários federais, também apresenta aspectos peculiares. O “sofrimento”, pois é assim que é vivida a fronteira por eles, termina sendo, em parte, recompensado pela gratificação de localidade, um valor a mais acrescentado ao salário. As mulheres que acompanham seus maridos transferidos também não veem “a hora do retorno”, efetivado apenas quando há disponibilidade de militares de outros lugares para cobrir a vaga. Mas alguns militares viram na fronteira um lugar de prosperidade: trouxeram parentes, montaram comércios e casaram-se. Outros viram na fronteira um meio de realizar falcatruas, não no sentido de fazer contrabando, mas de, no momento de ir para a reserva, apontarem como endereço a cidade de Tabatinga para receberem determinados benefícios, .
Indiscutivelmente, uma grande contribuição do exército nesta fronteira termina sendo o pagamento do soldo aos recrutados do lugar, pois significa um rendimento muito superior a média salarial da cidade, um dinheiro que fica na cidade.
Ponto de encontro de três Estados-Nação, encontra-se ali fluxos comerciais que possibilitam aos fronteiriços um abastecimento diversificado, em que fica bem marcado o limite de ação para determinados produtos e ramos de comércio. Tudo isto resulta das políticas adotadas pelos Estados-Nação para suas fronteiras. A distância de cerca de três mil quilômetros do oceano Atlântico não impede que alguns restaurantes de Tabatinga e Letícia sirvam frutos do mar, oriundos da costa peruana, bem como cenoura, alho, beterraba e cerveja que navegam pelo rio Marañon abaixo desde Pucalpa. Do lado colombiano, laticínios, verduras e frutas e produtos frigorificados chegam diariamente de Bogotá via aérea. Do lado brasileiro, Tabatinga consegue oferecer produtos como óleo comestível, açúcar e arroz. . Mesmo as motocicletas que são, em sua maioria originária da fábrica da Honda da Amazônia, em Manaus, terminam por custar mais barato em Letícia por conta das isenções fiscais que o estado colombiano concede às suas regiões de fronteira.
Enquanto cidades de fronteira, elas estão, sob determinados aspectos e para determinados assuntos, submetidas aos ministérios de relações exteriores. Porém, essa vida comum na fronteira terminou por dar origem a mecanismos próprios de resolução dos problemas que também ocorrem aí envolvendo seus habitantes.
A formação de uma “ ” entre os prefeitos de Letícia e Tabatinga, composta de forma paritária por membros das prefeituras, da associação de moradores e sindicatos, tem por objetivo dar solução local a problemas que poderiam extrapolar esta esfera. Para não recorrer aos escalões superiores dos respectivos Estados-Nação, ter que enfrentar a lentidão da burocracia, alguns problemas são discutidos nas reuniões desta comissão.
Dentre eles podemos citar a fuligem e o ruído causado pela usina termelétrica de Letícia, que está localizada no limite dos dois países e, em virtude dos ventos predominantes serem no sentido Oeste-Leste, os resíduos são levados para o território brasileiro. Do mesmo modo, os resíduos líquidos do esgoto de Letícia que correm para o rio Solimões, pois o emissário da cidade está 800 metros a montante da captação de água da cidade brasileira. Outra questão diz respeito ao transporte urbano, pois a infraestrutura de suporte ao transporte é municipal, enquanto o fluxo urbano é de caráter internacional. Isto motivou a prefeitura brasileira instituir uma taxa para a circulação de veículos nesta cidade, visto que só a frota de motocicletas é estimada em 15 mil unidades. Há, ainda, uma questão de saúde pública, de caráter preventivo, que são as campanhas realizadas pela prevenção às doenças sexualmente transmissíveis. Só com uma atividade conjunta é possível alcançar relativo sucesso neste setor. Além disso, há outros problemas como os pequenos delitos, comuns em qualquer cidade, como furtos e agressões em que os envolvidos são procurados pelas respectivas polícias.
Letícia: o “melhor bairro” de Tabatinga
Principal cidade do extremo Sul colombiano, região conhecida como Trapézio Amazônico, a cidade de Letícia também tem na sua origem a marca do período da borracha, visto que terminou por abrigar diversos colonos peruanos, colombianos e brasileiros que aí chegaram em busca do látex.
A origem em si deste aglomerado urbano às margens do rio Solimões apresenta algumas polêmicas que envolvem tanto o seu pertencimento ao Peru ou a Colômbia assim como seu topônimo. A disputa entre aqueles países pelo Trapézio Amazônico resultou numa guerra, em 1932, em que o recurso da Colômbia à antiga Sociedade das Nações termina por ratificar este território como colombiano.
Ao contrário do Brasil, que desde o período colonial já havia definido sua possessão nesta área com a instalação do Forte São Francisco Xavier de Tabatinga, o outro lado permaneceu indefinido em virtude das disputas internas entre as recém criadas repúblicas saídas do domínio espanhol.
As primeiras referências a este lugar são de 1867, quando o Peru constrói o Forte Gran Mariscal Ramon Castilla, ou San Antonio, fundado por Benigno Bustamante. Preocupado em assegurar o território – pois o Brasil já havia colocado uma bateria de canhões em Tabatinga – e viabilizar a navegação no rio Amazonas, o Peru cria uma Comissão Hidrográfica para realizar o mapeamento da carta náutica dos rios da região. Manoel Charon, engenheiro que compunha a comissão, nomeia o lugar como Puerto Letícia, nas correspondências enviadas à marinha peruana, sendo contestado pelo diretor da mesma, que exigia a denominação de General Castilla, em homenagem a Ramon Castilla, presidente peruano de meados do século XIX, pela atenção dada por este à banda oriental do país. Na verdade, a insistência de Charon pelo nome Letícia devia-se à sua paixão por Letícia Smith Buitron, uma jovem de família anglo-peruana, apontada como a mulher mais bonita de Iquitos. Ironicamente, Donadio aponta que, , o engenheiro apaixonado não conseguiu conquistar o coração da bela jovem, que se casou com um comerciante escocês estabelecido em Iquitos.
Pelo menos duas outras versões ainda aparecem para a denominação deste lugar. Loureiro, historiador amazonense brasileiro, afirma que o nome Letícia originou-se em função da existência do entreposto de compra de borracha neste lugar pertencente à comerciante paraense . A última versão, enfim, provém das histórias contadas pelos habitantes mais antigos, apontando que o lugar tem esse nome porque ali residia uma mulher com o nome de Letícia que vendia, em sua banca, tapioca, banana e outros alimentos para os habitantes, sendo portanto uma referência de encontro da população: “Vamos lá na Letícia”.
Mais importante que a polêmica em torno da origem do nome ou a busca de uma , o certo é que após a definição da soberania colombiana sobre esta área, toda uma estrutura começou a ser montada para consolidar esta posição estratégica. Uma das primeiras medidas foi elevar, em 1934, à categoria de Comissária Especial a antiga Intendência do Amazonas, pertencente ao Departamento de Putumayo. Letícia, portanto, passa a se constituir no ponto nodal para a presença estatal colombiana nesta área tri fronteiriça. Impõe, posteriormente, uma presença militar e assentamento de população civil.
Uma antena de comunicação instalada pelo Peru passou a ser usada para comunicação com Bogotá e foi hasteada a bandeira colombiana. , foi construído o aqueduto e o aeroporto; segue-se a cadeia pública, o prédio do governo, a planta de energia, etc. Avenidas são abertas e o pequeno povoado já ganha aspectos urbanos, com inúmeras obras públicas. Uma praça central, ponto de concentração da população, com o busto de Francisco Orellana, ladeadas por ruas que dão acesso ao rio Amazonas, dá a Letícia um aspecto de vida civil, ao contrário de Tabatinga, em que a , com aproximadamente quatro quilômetros, abrigou o novo comércio e os principais órgãos públicos para suas margens. Não há um centro. A praça existente, em frente a igreja católica Diocese do Alto Solimões, foi construída “fora do lugar”, ou seja, não se constituiu em ponto de encontro, porque nunca havia sido. Outros prédios em Letícia como o Comando Unificado Del Sur, uma planta telefônica, um novo porto, torres de rádio e televisão já estão presentes desde a década de 80.
A população de Letícia, que até a década de 60 era constituída em sua maioria por brasileiros e peruanos, agora começa a ficar mais blanca com o aumento da migração de civis de Bogotá. Alguns autores colombianos definem isso como a “andinização” da Amazônia. Enfim, a instalação da biblioteca, do Banco República, de um Centro de Investigações Amazônicas, de um núcleo da Universidade Nacional da Colômbia e a elevação desta Comissária, antes pertencente ao Departamento do Putumayo, à categoria de Departamento pela Constituição colombiana de 1991, sendo Letícia sua capital, concretiza não só a soberania colombiana como a hegemonia desta cidade nesta região internacional. Percebe-se que, pouco a pouco, a visão tradicional de geopolítica, ancorada apenas na capacidade militar, no estabelecimento de pelotões e o aumento do efetivo de soldados, vai dando lugar a uma perspectiva civil de geopolítica, que consiste em reforçar o aparato burocrático do Estado para a partir daí dinamizar comercialmente o lugar. :
Letícia siempre há ejercido um liderazgo económico y cultural sobre la triple frontera y sus áreas aledañas, no obstante las grandes inversiones hechas por el gobierno brasileño para convertir a Tabatinga y Benjamín Constant en los epicentros regionales. La causa, muy difícil de revertir, es le preponderancia que siempre le ha dado el gobierno colombiano a la creación de frontera viva, estimulando a la sociedad civil para que lidere el desarrollo del municipio por medio de iniciativas particulares, en trabajo conjunto con las autoridades religiosas y militares
Há, evidentemente, algumas questões particulares à Colômbia que devem ser mencionadas, pois talvez isso sirva para estabelecer um paralelo com o Brasil, principalmente no que diz respeito a uma concepção diversa de fronteira. A primeira delas seria o que vive neste país há pelo menos quarenta anos, cujo conflito, localizado na área central do país, exige uma presença maior do exército naquela área do que na fronteira. A segunda, como decorrência desta, é que esta fronteira no Sul da Colômbia, dada a distância e o difícil acesso, termina sendo vista como um lugar tranquilo, pacífico e próspero para muitos que querem sair das áreas conflituosas.
Como fronteira controlada, o Estado colombiano vem procurando ampliar sua atuação na região, contudo, ao contrário do Brasil, cuja preocupação é o reforço militar, aquele país está fortalecendo a administração local com o objetivo de apoiar o desenvolvimento integral desta área fronteiriça. A Lei de Fronteira colombiana assegura estímulos tão fortes que anula qualquer ação do governo brasileiro para Tabatinga, pois nem a criação de uma zona de livre comércio em 1991 produziu resultados favoráveis. Portanto, termina sendo um lugar atraente ao morador do interior do país, sendo colonizável!
Se o objetivo geopolítico do governo colombiano era tornar esta cidade fronteiriça como o grande polo regional, o intento foi alcançado com sua perspectiva civil. A expansão comercial foi mais eficaz que a militar. Veremos, assim, o que é a fronteira vivida do lado de lá.
Mesmo possuindo uma população equivalente à sua vizinha Tabatinga, em torno de vinte mil habitantes, Letícia não é uma cidade a mais na rede urbana colombiana. A condição de capital de Departamento – semelhante a estados no Brasil – faz com que, politicamente, sua representação possa ter um maior relacionamento com Bogotá. Sendo capital, abriga quase todos os órgãos do poder central, e os órgãos inerentes aos departamentos, como a gobernación e assemblea. Abriga enfim, uma parcela correspondente ao poder, centralizando ordens e decisões.
Geograficamente, é importante destacar sua localização, pois situada na linha fronteiriça, contraria o espírito ratzeliano de centralidade da capital, tão absorvido pelos geopolíticos brasileiros das primeiras décadas do século XX. Possivelmente a instituição de uma capital nesta tríplice fronteira deva ser explicada pela instabilidade fronteiriça desde o início do século XX, quando esta área era reivindicada pelo Peru, que, como vimos, culminou numa guerra. Assegurar, portanto, esta saída para o Atlântico pelo rio Amazonas era fundamental à Colômbia.
Do mesmo modo que Tabatinga, a população de Letícia ainda possui na sua constituição uma parcela significativa de indígenas de etnias diversas, sendo os Tikunas majoritários. Participam também da dinâmica comercial deste lugar na medida em que colocam seus produtos agrícolas ou artesanais no mercado, absorvendo, por outro lado, produtos industriais, como ferramentas, por exemplo.
No entanto, a maior responsável pela dinâmica econômica da cidade e que se espalha pela região amazônica é a atividade pesqueira. Contando com diversos frigoríficos, estima-se que os volumes extraídos alcancem aproximadamente 500 toneladas por ano, sendo 80% destinados à exportação.
Dada a sua expressividade, a atividade pesqueira consegue interferir na vida de toda essa população regional por meio de, basicamente, outras duas situações. A primeira diz respeito ao próprio processo de exportação. Constituindo-se na principal carga de compensação das companhias aéreas para o interior do país (Bogotá), isto permite baixar significativamente os custos do frete dos produtos vindos de Bogotá, ampliando, assim, a capacidade de diversificação das mercadorias para o mercado consumidor de Letícia e região. E é exatamente isto que faz com que Letícia torne-se atraente para a população brasileira – civil e militar – que lá se abastecem. Frutas e verduras frescas, laticínios e outros produtos têm mercado certo nesta região.
A segunda diz respeito ao câmbio de moedas. Numa região fronteiriça em que normalmente fala-se do controle do trânsito de mercadorias e pessoas, deve-se lembrar que a própria moeda é, antes de tudo, a principal mercadoria, e que para o comerciante fronteiriço, o cidadão, antes da nacionalidade, é visto como consumidor. Deste modo, tendo Letícia abrigado historicamente a quase totalidade das casas de câmbio e os mais fortes cambistas desta fronteira, ao mesmo tempo em que o próprio governo não interfere sobre a legislação de casas de câmbio, nem na flutuação das moedas, estes comerciantes de moedas, conhecendo seu mercado, alteram as taxas de câmbio de acordo com, por exemplo, a “safra do pescado”, quando grande quantidade de pescadores brasileiros, ao venderem sua produção em pesos colombianos, procura os cambistas para trocar o dinheiro. A regra é desvalorizar a moeda brasileira não só neste período, como também nos dias de pagamento do funcionalismo público no Brasil, ou nas proximidades das festas natalinas. Segundo um comerciante brasileiro, este câmbio solto, sob controle dos “colombianos” termina por sucatear o comércio de Tabatinga. Porém, sendo fronteira, há também cambistas brasileiros e peruanos trabalhando com essa mercadoria especial. Ainda com relação a finanças é importante considerar que as taxas de juros no comércio colombiano são bem inferiores àquelas praticadas no Brasil, o que torna muito mais atraente a compra a crédito nesse lado da fronteira. Pudemos perceber a grande clientela brasileira da loja “Créditos Parra”, que exige apenas do novo cliente, um fiador que também seja cliente, independente da cidade que reside.
Como os investimentos do governo colombiano para esta cidade foram destinados mais para as atividades civis, Letícia oferece à sua população um sistema de distribuição de água tratada que cobre 93% da mesma. Assim como o sistema de esgoto que cobre 78% da malha urbana. Com relação a energia, a capacidade instalada é de 12.312kw/h, com cobertura de 96% da população durante as 24 horas do dia. Possuindo um excedente de energia, já chegou a vender à cidade de Tabatinga nos períodos mais críticos de abastecimento de energia. No entanto, a falta de pagamento por parte da prefeitura levou à suspensão do fornecimento.
O exercício da hegemonia leticiana também se manifesta nas relações empregatícias, uma vez que o salário mínimo instituído na Colômbia é de aproximadamente 150 dólares, o que faz com que haja um contingente de trabalhadores brasileiros atuando principalmente nas áreas de construção civil e empregos domésticos, embora more na cidade de Tabatinga, cidade que até recentemente tinha uma política de doação de terrenos para famílias de baixa renda, reduzindo, assim, o custo de moradia.
Como cidade de fronteira, Letícia dificilmente ficaria imune aos problemas associados às contravenções. Em fins da década de 60 e por toda a década seguinte, o grande negócio era o comércio dos mais diversos produtos da floresta, tendo como agente principal o ex-cônsul dos EUA lá instalado, o lendário senhor Mike Tschalikis. Num artigo escrito para o periódico de Bogotá El Tiempo, em 1969, Arbelaez se surpreende ao chegar em Letícia e descobrir que o melhor hotel da cidade era de Mike; assim como o avião particular da cidade, a lancha mais bonita, quem dava o destino de macacos, peixes ornamentais, papagaios e cobras eram dados por Mike; o homem mais endinheirado, mais influente, mais ativo e que tinha muita gente trabalhando para si. Quase vinte anos depois, Mike é preso com um carregamento de cocaína escondido num lote de madeiras para exportação em barco de sua propriedade.
Durante toda a década de 80, Letícia viu seu movimento comercial aumentar de modo surpreendente, transbordando, como não poderia deixar de ocorrer, para Tabatinga, como resultado da constituição de um pequeno cartel de cocaína, conhecido como cartel de Letícia, tendo, inclusive, ramificações por Manaus. A pouca e difícil vigilância na selva possibilitou a expansão dos laboratórios de cocaína sob a floresta. A pouca fiscalização nos aeroportos e, menos ainda, nos rios, facilitaram a circulação da droga e dos produtos químicos necessários à elaboração do produto. O envolvimento de parcela da população jovem de ambas as cidades ampliou-se devido à rentabilidade do negócio numa zona urbana de pouca oferta de emprego. Eram narcodólares gerando narcotoyotas, os belos e grandes carros adquiridos pelos narcotraficantes.
A geografia do narcotráfico é extremamente móvel porque termina sendo um . O aumento da repressão em determinado lugar, ou ponto da cadeia produtiva, força a busca de novos caminhos, rotas e circuitos que viabilizem a produção e a circulação da droga. Além disso, é necessário encontrar meios de lavar o dinheiro por ela gerado, que nesta região alguns creditam à atividade pesqueira. Com o reforço da fiscalização no Amazonas brasileiro a partir da “Operação Cobra”, e na Colômbia também, busca-se uma nova alternativa que inclui o rio Orenoco. Isto provocou uma baixa no movimento comercial de Tabatinga e Letícia, que agora, segundo os próprios comerciantes, está andando com os pés no chão, sem artificialidade.
Ainda podemos apontar na dinâmica fronteiriça as inúmeras pequenas atividades que envolvem os serviços voltados à manutenção de motocicletas, a venda avulsa de gasolina e de alimentos em bancas montadas nas calçadas, além de centenas de comerciantes dos mais diversos produtos, tanto de um lado quanto de outro da fronteira, como alternativa de renda encontrada por esta população multicultural que certamente não teria suas vidas alteradas com a propalada divisão do Amazonas.
Podemos, enfim, compreender esta região a partir do que Foucher denomina de caráter subjetivo da fronteira: alegria ou tristeza. A integração fronteiriça deste lugar permite que seja considerada uma fronteira alegre, visto que mesmo diante das múltiplas identidades existentes a identidade de ser fronteiriço parece se sobrepor. Esta condição é construída a partir das relações familiares, com membros pertencentes a ambas nacionalidades. Expressa-se também pelas condições de complementaridade de bens e serviços que uma cidade tem para com a outra, em virtude do isolamento relativo vivido por ambas. Isto não elimina, entretanto, a tristeza das famílias que se veem envolvidas com os problemas do tráfico de drogas.
Ricardo Nogueira é Graduado em Geografia pela Universidade Federal do Amazonas; possui mestrado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (1994) e doutorado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (2002). Atualmente é Professor Titular da Universidade Federal do Amazonas, – Revista da Pós Graduação em Geografia da FURG; Boletim Gaúcho de Geografia; e Revista Uáquiri (UFAC) . Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em Geografia Política e Regionalização, atuando principalmente nos seguintes temas: desenvolvimento regional, fronteira, redes geograficas, Amazônia e meio ambiente.
A imagem em destaque é um trabalho de Fabrício Vinhas, designer da Amazônia Latitude.