O ruir dos rios e de suas redes

Algumas reflexões sobre barragens e hidrelétricas a partir do trabalho fotográfico Água Morta

Em 2014, ao começar o trabalho Água Morta, iniciei uma jornada que, através dos rios, refletiria questões contemporâneas que não se restringem às agendas de energia e desenvolvimento, mas que abraçam discussões mais amplas e profundas sobre ecossistemas, geopolítica, cidadania, Direitos Humanos e Direitos da Natureza. Meu objetivo, ao imergir nas águas, era tentar compreender melhor (e, consequentemente, poder apresentar para outras pessoas) a natureza e o escopo dos impactos que hidrelétricas têm causado no ambiente e nas comunidades humanas a eles associadas, por meio das experiências de quem eu considero detentores de conhecimento sobre rios e barragens: as populações ribeirinhas atingidas por tais empreendimentos.

Concentrei esta minha investigação em três projetos brasileiros de hidrelétricas (que especificarei a seguir); porém, a experiência brasileira apresentada aqui consiste em uma amostra do modus operandi que tem acontecido em escala mundial.

Atualmente, existem no mundo 5.786 grandes barragens construídas exclusivamente para geração de energia elétrica. Dessas, 217 situam-se em território brasileiro e são responsáveis por 60% da energia gerada no país.

No início deste século, além do Brasil, países como Peru, China, Rússia, Índia, Etiópia, Cingapura, Camboja iniciaram uma política de incentivo às grandes barragens em seus territórios. Tal fenômeno ocorre não só como uma resposta aos dados do relatório da Comissão Mundial de Barragens (WCD) de que 66% do potencial mundial economicamente viável para hidreletricidade ainda estaria por ser alcançado, mas também como um reflexo do lobby dos mercados internacionais das grandes empresas de obras de infra-estrutura e de extração mineral e do discurso elaborado por esses mesmos mercados durante a Rio +20 (discurso que colocou a hidroeletricidade como a forma mais eficiente de um país produzir energia limpa). Cabe aqui como exemplo, o Plano Nacional de Energia 2030, que prevê a construcão de novas hidroelétricas, principlamente na Amazônia e na área do MATOPIBA, como uma das propostas de desenvolvimento para o Brasil.

Somente na região brasileira da bacia amazônica, 79 novas barragens – 17 classificadas como grandes barragens – encontram-se em fase de planejamento ou em diferentes etapas de licenciamento e execução, apesar dos significativos efeitos socioambientais negativos que tal estratégia pode desencadear.

Frente a este cenário, parecia-me inadequado que o debate entre custos e benefícios da hidreletricidade sempre se concentrasse em valores monetários, números e tabelas, já que grande parte dos danos causados pelos projetos de barramentos de rios não conseguem ser representados por dados objetivos, pois situam-se no território da imaterialidade.

Decidi, então, utilizar a fotografia como meio para este fim: o de investigar e apresentar os impactos socioambientais acarretados pelos projetos hidrelétricos. O trabalho que intitulo de Água Morta teve início em 2014 e tem a intenção de contar a história das barragens para geração de energia a partir de uma perspectiva híbrida, ou seja, a perspectiva dos ribeirinhos que são atingidos por esses empreendimentos em tempos e locais diferentes, juntamente com a minha própria visão, como ecóloga, pesquisadora, artista visual e indivíduo. A intenção é tocar nessa imaterialidade dos custos das barragens como um contraponto à percepção da hidreletricidade como energia limpa, sustentável, que promove o desenvolvimento e combate o aquecimento global.

Desenvolvi este trabalho em colaboração com as famílias ribeirinhas nas áreas dos projetos da Hidrelétrica de Sobradinho (construída de 1971 a 1978, no rio São Francisco, Bahia), do Complexo Belo Monte (com obras iniciadas em 2011 e previsão de término para este ano, no rio Xingu, Pará) e do Complexo Garabi-Panambi (composto pelas Hidrelétricas Garabi e Panambi, planejado para acontecer no futuro, no rio Uruguai, Rio Grande do Sul). Este trabalho contou também com o apoio do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), movimento social que luta desde a década de 70 pelos direitos dos atingidos e por políticas energéticas mais democráticas. Convidei essas pessoas a me dirigirem na execução de um retrato de si próprias, fornecendo informações sobre seu imaginário, sobre como desejavam ser vistas pelos potenciais interlocutores deste trabalho e, principalmente, sobre o significado das mudanças que cada uma delas vivenciou com o empreendimento.​

As sessões fotográficas foram baseadas nos testemunhos dessas pessoas, que escolheram o local onde desejavam ser fotografados, um objeto para representar seu sentimento frente à situação que enfrentavam e também sugeriram modificações no seu próprio retrato, durante a sessão. Além desses retratos colaborativos, Água Morta foi permeado por depoimentos, fotografias feitas em campo, acervos pessoais das famílias participantes, desenhos, anotações, cantigas e sentimentos garimpados junto com elas, ao longo desse nosso encontro.

Alguns dos resultados deste nosso ato de tecer juntos para contar esta história são apresentados nas imagens que acompanham este texto. Os momentos que vivi em campo, dentro e perto dos rios, observando, interagindo e construindo junto com meus colaboradores (os ribeirinhos retratados e também co-diretores de seus próprios retratos) a narrativa visual que é o Água Morta, possibilitaram-me uma compreensão mais holística e profunda sobre o que são rios, qual sua função (sua missão?) e a violência que constitui o ato de barrar um curso d’água.

Todo grupo humano que vive em contato íntimo com o mundo natural percebe o espaço que ocupa como um microcosmo composto por si mesmo, por outros seres vivos que co-habitam este lugar, por lendas, crenças locais e sentidos. Para as pessoas que moram nas margens do rio Xingu, por exemplo, o rio Xingu não é um canal de água: é uma entidade, algo como uma divindade; mas, ao mesmo tempo, algo do qual estas pessoas também fazem parte. Assim, para as comunidades tradicionais que vivem ao longo dos rios, todo o espaço que elas atravessam e habitam é entendido por elas também como elas mesmas. Consequentemente, quando uma barragem bloqueia o rio e força essas pessoas a lidar com uma paisagem drasticamente diferente (seja porque tiveram que se mudar ou porque a represa alterou gravemente o ecossistema em que ainda vivem), esse cosmo é desestabilizado.

Além disso, para o caso de hidrelétricas, não estamos falando em interferir em uma área de terra que se restringe a um lugar específico, mas em perturbar um continuum que não é restrito nem limitado a um espaço. Este continuum possibilita o movimento de substâncias físicas e químicas (por exemplo, areia e nitrogênio), e possibilita também o movimento e a adaptação de espécies aquáticas e terrestres, bem como o trânsito e as relações entre pessoas e comunidades consigo mesmas e com este ambiente. À medida que o rio flui, ele mantém e perpetua todos esses fluxos e conexões; ou seja, rios que correm livres sustentam redes biológicas e sociais. Fragmentar esse corpo conduz toda esta rede que é sustentada por ele ao colapso.

Ao considerar que esta rede complexa é inexoravelmente rompida com o barramento de um rio, percebe-se como é alarmante a conclusão do estudo de longa duração conduzido pelo pesquisador Günther Grill e seus colaboradores, publicado recentemente na revista Nature, de que menos de 30% dos grandes rios do mundo teriam seus cursos ainda livres de barramentos. Compreendendo que tais conexões já foram rompidas na maior parte do planeta, absorvendo os testemunhos trazidas pelo Água Mortae cientes de que planos de novas e grandes barragens continuam em andamento não só no Brasil e na Amazônia como em várias outras regiões do planeta, urge conscientização dos diversos atores sociais acerca da relevância dos efeitos deletérios do barramento de rios bem como mudança de postura dos tomadores de decisão, visando políticas públicas e planos de energia que democratizem os benefícios, comprometam-se com o desenvolvimento baseado também no buen vivire de fato garantam a manutenção dos processos ecológicos, que são as estruturas de sustentação da conservação da biodiversidade e dos ecossistemas – patrimônios de toda a humanidade.

Em um momento em que o interesse e os investimentos em aproveitamentos hidrelétricos têm crescido não só na Amazônia e na América Latina, como também no continente africano e asiático, considero que as percepções trazidas pelo Água Morta fazem-se não só necessárias, como são oportunas e de grande relevância no debate sobre desenvolvimento e sustentabilidade.

Também dentro do contexto e reflexões apresentados aqui, cabe mencionar que o projeto da hidrelétrica de Panambi (parte do Complexo Garabi-Panambi), que tinha sido suspenso em 2017, devido à constatação da sua inviabilidade ambiental, acaba de ser retomado pelo atual governo brasileiro.

 

1 – Camila Grzeca e Marilene Ribeiro – ano 2016.
“Ah [tom sarcástico], eles falam: ‘vamos reflorestar, vai ficar tudo tranquilo.’ Mas, quanto tempo vai demorar pra crescer essa árvore pra ficar como tava quando eles, simplesmente, cortaram pra construir a usina [de Panambi]?
Esse valor eles não falam, isso eles não dizem, né?! Então, começa por aí! Os animais…. O habitat deles vai ser afetado. Então, quanto tempo eles vão levar para se adaptar a um novo habitat? Muitos nem vão conseguir chegar a um novo habitat, vão ficar por ali, vão morrer por ali mesmo. Então, tem tudo Isso! Tem toda essa questão. (…)
A natureza [pausa] Gente, nós ganhamos o meio-ambiente, a floresta, tudo de graça! Deus não cobrou nada pra nos dar. Daí, o homem vai lá e destrói por quê? Por interesse! ‘P-r-o-d-u-z-i-r energia!’ [tom sarcástico] E tem outras formas de produzir energia. Por que é que não é trabalhado essas outras formas de produzir energia? Querem tudo pro lado mais simples, parece, mais prático pra eles. Não pensam no meio-ambiente e na população. É bem isso que eu penso, sabe? É isso aí.”
(Camila Grzeca, 24 de fevereiro de 2016)
Complexo Garabi-Panambi

 

2 – Maria das Graças da Silva, Delcilene Gomes da Silva e Marilene Ribeiro 2016.
[Nós três conversando, Delcilene, Maria das Graças e eu, Marilene] Delcilene – “Nossa ilha, nossas praias, nossas árvores, nossa casa [pausa] tudo se acabou.”
Maria das Graças – “Porque as ilhas, as árvores, morreu tudo, tá tudo morto. Tá parecendo um sertão. Não é? Aquele, que só se vê aqueles toco reto, que passa na reportagem [em] dia de domingo. Tá a mesma coisa.”
Sentimento de Delcilene: tristeza e humilhação
Sentimento de Maria das Graças: tristeza
Objeto escolhido por Delcilene: cajus
Objeto escolhido por Maria das Graças (mãe de Delcilene): areia
Local: quintal do local prévio de moradia da família, ilha do Caju
(atualmente, parcialmente submersa pela barragem de Belo Monte)
Complexo Belo Monte

 

3 – Claudinei Zuehl and Marilene Ribeiro – ano 2016
Claudinei – “Tu já imagina como é que vai ser isso aí [após a construção da barragem de Panambi], porque não será mais uma água limpa, correndo livre, que nem nestas fotos que eu mostrei pra você – uma água correnteza, que a gente enxerga o pedregulho no fundo, até criança pode brincar nesta água, na parte mais rasa do rio. É um lugar bonito mesmo. ”
Marilene – “Você acha que isso poderia se perder [se a barragem de Panambi for construída]?”
Claudinei – “Isso com certeza vai sumir do mapa! (…) Vai ficar uma água verde, com caldo… Imagina a tristeza do pessoal. Os tipos de peixes que a gente encontra aqui agora, eles vão desaparecer. (…) Esse rio aqui [de agora]: pode esquecer! Tomar banho e pescar: já era.” (…)
Marilene – “O que você não gostaria de esquecer, se você tivesse de sair daqui por causa da barragem [de Panambi]?”
Claudinei – “Mas, eu? O rio [Uruguai]!”
(5 de fevereiro de 2016)
Complexo Garabi-Panambi

 

4 – Claudinei e seu filho, Márcio, em uma das cascatas do rio Uruguai, 2009.

 

5 – João Evangelista do Espírito Santo e Marilene Ribeiro 2015
“Eu sinto é muita saudade de lá [da comunidade onde João morava, Alto do Melão], daquela terra que tudo dava.”
(João Evangelista do Espírito Santo, 9 de maio de 2015)
Alto do Melão, juntamente com várias outras comunidades, foi submersa pela barragem de Sobradinho em 1978. Durante a sessão fotográfica, João Evangelista propõe diferentes posições para apresentar ele próprio e o alimento proveniente daquela “terra”.
Hidrelétrica de Sobradinho

 

6 – Ilustração feita por João Evangelista. Durante o tempo que estive com João Evangelista, notei que ele gostava de desenhar. Perguntei-lhe, então, se ele poderia desenhar para mim algumas das comunidades que foram submersas pela hidrelétrica de Sobradinho. João me mostra com seu desenho não são só as casas, mas também um pouco da paisagem local. O antigo local de moradia de João Evangelista, Alto do Melão, é representado como a terceira comunidade de cima para baixo, na coluna da direita.

 

7 – Nelci Bárbaro e Marilene Ribeiro – ano 2016
Marilene – “Quando você pensa na barragem de Garabi, o que você sente, Nelci?”
Nelci – “É complicado de eu te falar isso. É muita raiva.
Marilene – “E você imagina alguma coisa que poderia representar esta sua raiva?”
Nelci – “[encarando-me] Fogo!
(…) Eu encheria barris de petróleo e iria atear fogo e jogá-los. (…) Acho que este é meu lado animal, sabe? Por isso eu te respondi na hora: ‘fogo’. A raiva destrói, não destrói? [pensativa]”
Marilene – “E como é que a gente faria este seu retrato com este ‘fogo’?”
(11 de fevereiro de 2016)
Complexo Garabi-Panambi

 

8 – Maria Rosa Pessoa Piedade e Marilene Ribeiro – ano 2016
“A gente já decidiu sobre como vai ser o nosso retrato: a gente vai com toda a família para onde era a terra da Antônia [mãe de Maria Rosa] – onde é o lago [reservatório] da barragem, agora – e a gente vai entrar dentro da rede de pesca. A gente também pensou em um título para nosso retrato, ‘Da mesma maneira que pegamos o nosso sustento, a Norte Energia [empresa responsável pelo projeto de Belo Monte] abafa seus atingidos’. Que tal isso?” (Jaime, marido de Maria Rosa, ao telefone, 01 de novembro de 2016)
Complexo Belo Monte

 

9 – Ilha Afogada
Marilene Ribeiro -ano 2016
Maria Rosa – “A verdade eles nunca contam! A gente que tá por dentro daquilo, a gente tá vendo, mas nunca é divulgado. Abafam aquele negócio ali! Só vai coisa boa pra frente [para ser divulgada]. Inclusive, a gente vê, quando passa no Fantástico – algumas vezes que a gente assistiu, mostrando só os assentamentos que eles fizeram, só coisa boa!”
Marilene – “Do seu ponto de vista, o que seria a verdade? Pra você.”
Maria Rosa – “A verdade era eles mostrarem tudo que as pessoas estão passando: a necessidade, o sofrimento. Eles mostram uma coisa que não é! Aquilo que eles desmataram, que eles deixaram tudo do jeito que eles quiseram, eles não mostram! [pausa] A gente vê que a natureza [pausa] Quantas ilhas…. O menino acabou de me dizer que as ilhas estão morrendo!”

 

Um resumo da narrativa visual construída em Água Morta (Dead Water) está disponível neste link.
A pesquisa Água Morta (Dead Water – a photography-based inquiry on the impact of dams in Brazil) foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sob a forma de bolsa de doutorado.
Natural de Belo Horizonte-MG,, Marilene Ribeiro é artista visual, ecóloga e pesquisadora. Atua na interface imagem, intervenção e colaboração, com foco em assuntos contemporâneos, meio ambiente e identidade. Doutora em Artes Criativas pela University for the Creative Arts (Reino Unido), tem projetos selecionados e premiados pela Royal Photographic Society, pelo Museu da Imagem e do Som – MIS, pelo Arles Luma Rencontres Dummy Book Award, pelo Marilyn Stafford FotoReportage Award, pelo Prêmio Esso de Jornalismo, dentre outros, bem como trabalhos exibidos e ensaios sobre suas obras publicados em diversos países. É editora de fotografia e colaboradora do projeto Voices of Latin America (organizado pelo Latin America Bureau – LAB, Reino Unido), membro do Instituto Biotrópicos (Brasil) e colaboradora do Fast Forward: Women in Photography.
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