Amazônia: para entender o “Dia do Fogo” – parte 2

Dia do Fogo
Queimada é vista em fazenda na BR 230 na cidade de Lábrea(AM), na tarde desta sexta(30), Lábrea é uma das cidades do Amazonas em estado de emergência, devido as queimadas e desmatamentos, Agosto já é o mês com maior número de focos de queimadas no estado do em 21 anos, com 6.145 focos verificados pelo INPE até 27/08/2019.
A ira contra o ordenamento territorial

Importante observar que o Governo Federal interveio, na década passada, fechando a fronteira de ocupação das terras e florestas por meio do Macro Ordenamento Territorial, inibindo o acesso às terras públicas, às terras indígenas e de populações tradicionais. Um efeito imediato foi o encarecimento das terras disponíveis no mercado.

Na contramão da histórica ocupação da Amazônia pelo viés militar, miliciano e extrativista, o período dos dois governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu sequência à tendência que os movimentos sociais vinham imprimindo na governança ambiental desde o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso para a região. Por iniciativa de setores do Ministério do Meio Ambiente e dos movimentos sociais da Amazônia, em 2001, foi proposto o Plano Amazônia Sustentável (PAS), uma pactuação ampla, envolvendo governadores, ONGs, movimentos sociais e governo federal em torno de uma agenda de sustentabilidade para a Amazônia. O princípio da governança passou a orientar as políticas ambientais e territoriais para a economia e meio ambiente.

Sob os auspícios do PAS, mas sobretudo com a hegemonia política momentânea do governo, foi possível ao primeiro Governo Lula mobilizar a sociedade em torno da ideia de que o asfaltamento da BR-163 deveria ser precedido de um ordenamento territorial que combinasse desenvolvimento com conservação ambiental e horizontalização de infraestrutura econômica e social.

O asfaltamento da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém) era impulsionado politicamente pela pujança da produção de grãos do Centro-Oeste e as frentes de especulação fundiária (agricultores, madeireiros, mineradores, entre outros) avançaram sobre as terras públicas da região corrompendo assentamentos rurais desassistidos, demarcando lotes de centenas de hectares, invadindo terras indígenas e de populações tradicionais. Os índices de desmatamento e queimadas se elevaram desafiando o Estado e as leis.

O Governo então baixou uma Portaria estabelecendo a Área de Administração Provisória (ALAP), em fevereiro de 2005, interditando 8,2 milhões de hectares para que fosse destinado seu uso com a concepção de Mosaico de usos e de conservação. Em seguida, o Governo Federal lançou um amplo processo de debate com todos os setores interessados na questão agrária, fundiária e ambiental, do que foi instituída como Região de Influência do Plano de Desenvolvimento Sustentável da BR-163. Mais de 1.000 organizações foram ouvidas. O Plano resultante era avançado em termos metodológicos e em seu conteúdo, mas as bases políticas para a execução não davam sustentação para a governança, pois a hegemonia política das ideias de sustentabilidade não obtinha uma adesão concreta.

A configuração territorial do Plano envolve o Oeste do Pará, o Sul do Amazonas e o Norte do Mato Grosso, porque as dinâmicas são interligadas e interdependentes.

Mapa – A região do Plano Br-163 Sustentável. Fonte: Ministério do Meio Ambiente.

planejamento da região Oeste do Pará, por meio do Plano BR-163 Sustentável, teve o suporte de um Zoneamento Ecológico e Econômico (ZEE) da BR-163, com participação social, partindo de um diagnóstico profundo das características naturais, humanas, econômicas, de urbanização e de infraestrutura. O produto gerou os parâmetros de uso territoriais, com base uma concepção de sustentabilidade entre as atividades econômicas, a presença multicultural dos povos.

Sob os auspícios do PAS, o Plano BR-163 partia do pressuposto de que a Amazônia gera dinâmicas estruturais da economia dos recursos naturais em multiescalas e multissetoriais. Pretendia a dar suporte para que a infra-estrutura, a economia e sociedades locais pudessem ser incluídas nos benefícios de uma integração nacional mais isonômica.

O Plano BR-163 Sustentável inspirou o PDRSX-Xingu, reproduzindo em parte a metodologia de construção das condicionantes e mitigações dos impactos. Os dois planos têm uma diferença central. No Plano BR-163 Sustentável, os setores econômicos dominantes são difusos, não são investidores diretos e nem todos dependiam do Plano para o andamento dos seus negócios. O PDRX tem o consórcio de empresas construtoras da barragem de Belo Monte como agente financiador do Plano. As duas experiências de governança territorial, com suas particularidades no âmbito de grandes projetos de infraestrutura associados à construção das rodovias Transamazônica e BR-163, são ensaios democráticos numa história marcada pelo autoritarismo, pelas relações políticas desiguais e pela luta permanente pelo controle dos recursos.

A partir de 2010, o Plano BR-163 Sustentável foi ignorado como norteador da tomada de decisões do Estado para a região, voltando a predominar o protagonismo dos setores econômicos refratários também a enquadramentos de suas atividades em planejamentos. O asfaltamento da BR-163 ainda está em curso, mas a orla direita do rio Tapajós está totalmente apropriada pelas tradings do agronegócio, pois a rodovia se transformou no principal eixo de exportações de grãos do Mato Grosso, com portos privados alternativos ao Porto de Paranaguá, no Paraná. Uma ferrovia está planejada (Ferrogrão), com protagonismo do agronegócio do Mato Grosso e expectativas de financiamento da China.

Ainda na esteira do Plano BR-163 Sustentável, o segundo governo Lula decretou o DFS – Distrito Florestal Sustentável da BR-163, instituindo o conceito de gestão de “complexo geoeconômico e social denominado Distrito Florestal Sustentável – DFS da BR-163”. Com o DFS e a Lei de Gestão de Florestas Públicas que determinou que todas as florestas públicas deveriam continuar públicas e florestas, o Estado brasileiro tomava as rédeas da governança das florestas públicas que se constituíam os últimos estoques e estavam sob ataque em toda a Amazônia. Era uma concepção de uso sustentável e inclusivo de florestas com medidas estruturais para uma gestão florestal sob governança entre sociedade e Estado.

Mapa – Configuração territorial das Unidades de Conservação Brasileiras atuais. Fonte: MMA \ICMBIO, 2019.

O mapa acima mostra o produto do macro-ordenamento territorial da Amazônia. Dos 171.4 171.424.191,99 hectares das Unidades de Conservação brasileiras, a Amazônia detém 64.143.615,26, que foram protegidas por ação firme do Estado brasileiro, durante três décadas de conflito entre as persistentes práticas destruidoras do capitalismo extrativista e a resistência de setores da sociedade organizada, instituições governamentais e não-governamentais brasileiros para que houvesse governança e marcos normativos de conservação.

No mapa a seguir, que retrata o Sistema Nacional de Florestas Públicas, instituído pela Lei 11.284/2006, estão as Reservas Extrativistas que compõem o mosaico de territórios conquistados pelo protagonismo dos povos e populações tradicionais da Amazônia, junto com Terras Indígenas e outras modalidades de uso coletivo.

Mapa 1 – Cadastro Nacional de Florestas Públicas – Atualização 2016. Fonte: Ministério da Agricultura.

A parcela de Florestas Públicas por tipo de uso da floresta, inseridas no Cadastro Nacional de Florestas Públicas (CNFP, incluído pela autora) no ano de 2016, encontra-se dividida entre as categorias: Uso Comunitário 50,29%, Proteção a Biodiversidade 26,2%, Uso Militar 0,95% e não destinadas 22,3% e outros 0,26%.

De acordo com o CNFP, as florestas de uso comunitário correspondem às terras indígenas, às Unidades de Conservação sob as categorias Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) e Reserva Extrativista (Resex), assim como aos assentamentos sustentáveis federais dos tipos Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), Projeto de Assentamento Florestal (PAF) e Projeto Agroextrativista (PAE) (BRASIL/ICMBIO, 2017, Cadastro Nacional de Florestas Públicas, 2016.)

De acordo com o ICMBIO (Instituto Chico Mendes), a região Norte, em um recorte territorial amazônico, detém 88,7% das florestas públicas e, destes, 50,29% de uso comunitário institucionalizado. São territórios objeto de competição, porque além das florestas e seus ativos da biodiversidade, guardam ativos minerais de grande valor econômico.

Essas áreas protegidas e de uso comunitário são cobiçadas e sofrem pressão em suas bordas pelos setores que praticam uma economia extrativista. Não por acaso a Floresta Nacional do Jamanxim, onde foi construída uma ponte clandestina para ocupação desordenada, foi um dos principais alvos dos incêndios provocados pelas brigadas incendiárias do fatídico “Dia do Fogo”.

O encorajamento das forças refratárias à regulação

Passados mais de dez anos da ação de governo e analisando o comportaram os setores refratários à governança e à regulação, é possível afirmar que a proposta era avançada para a composição hegemônica da sociedade.

O marco territorial e regulatório que instituiu regramentos fundiários, de uso da terra e de gestão de florestas teve a adesão voluntária ou por contingências de setores que aceitaram a inserção nos mercados de produtos identificados com responsabilidade social e ambiental. Empresas madeireiras e do agronegócio aderiram a programas de controle ambiental e contribuíram para a adoção de práticas de sustentabilidade. Mas não representam a maioria. Uma sociologia dos agentes que atuam na economia agrária na Amazônia precisa ser desenvolvida para compreender racionalidades, pensamento social e redes de influência política.

Os setores refratários cresceram em influência nos governos subsequentes, fazendo pressão pelo Congresso Nacional e por dentro dos governos estaduais e Federal. Em toda a extensão do Norte do Mato Grosso, sul e sudoeste paraense, Tocantins, Sul do Amazonas e Rondônia foram eficientes na propaganda de que as maiores fazendas nessas regiões pertenceriam ao presidente Lula e aos seus filhos. Ao mesmo tempo em que identificavam os sistemas de regulação e controle como obstáculos aos seus projetos de “desenvolvimento econômico e geração de empregos”. Produziram uma revolta contra as unidades de conservação.

A contrainformação surgiu nas organizações de grandes produtores rurais e aliados a sua partida, mas ecoou nas exposições agropecuárias; nas associações comerciais locais; nas redes de profissionais liberais, como os médicos que, em geral, aplicam seu dinheiro em gado e também se beneficiam de terras baratas para os sistemas extensivos nas regiões periféricas da região.

Os grandes produtores rurais na Amazônia não são da Amazônia. Com exceção de oligarquias do Marajó e raros remanescentes dos sistemas de aviamento de castanhais e seringais, os setores capitalistas que detêm a maior fatia do capital fundiário dos estados da Amazônia são famílias do Centro-Sul do país, com poder político sobre parlamentares de seus estados e dos estados que abriga seus negócios. A maioria não vive e nem investe nos Estados que os abrigam, não estabelecendo laços de conhecimento e nem lastros de compromissos com as sociedades locais.

Não importa que suas atividades sequem e poluam rios, pois vivem nas capitais melhor estruturadas do país. Muitos têm propriedades também nos estados onde o custo ambiental é mais rigoroso. As propriedades dos estados da Amazônia, onde a burla da legislação é mais fácil servem para compensar os custos dos mais exigentes.

Portanto, incendiar as florestas vivas, queimar uma biodiversidade cujo valor ecológico não compreendido como tangível para esses setores e cuja relação com a Amazônia é de extrativismo de espaços-estoque, faz parte de um comportamento de setores marginais da economia, mesmo quando são empresários modernos nos estados desenvolvidos.

Por fim, há um traço comum aos processos de implantação de todos os grandes projetos extrativistas na Amazônia, que se observa nos demais países detentores de matérias-primas de valor industrial. Quando os estoques de ativos são demandados pelo mercado, os Estados são capturados, os orçamentos públicos financiam a infraestrutura dos empreendimentos e as populações locais são funcionalizadas no apoio e legitimação do saque. Há uma corrida ao butim do qual grupos econômicos locais apadrinhados do poder se beneficiam com migalhas ou com enriquecimento rápido. É uma lógica de garimpo.

Refletindo sobre a questão do espaço-tempo na contemporaneidade, Santos (2013) fala de multiplicidade dilemática, entre as quais destaca a questão ambiental e a democracia. Sobre a questão ambiental, considero interessante a constatação de que a agenda global da economia deu

“uma proeminência sem precedentes a sujeitos econômicos poderosíssimos que não se sentem devedores de lealdade ou de responsabilidade para com nenhum país, região ou localidade do sistema mundial. Lealdade e responsabilidade, só a assumem perante os acionistas e, mesmo assim, dentro de alguns limites. (…) os processos políticos dos Estados que compõem o sistema interestatal estão cada vez mais dominados por lógicas, cálculos e compromissos de curto prazo, avessos, por natureza a objetivos intergeracionais ou de longo prazo” (SANTOS, 2013, 304-305).

O ataque à regulação em curso e aos direitos territoriais e a ousadia das companhias vinculadas ao grande capital extrativista mundial reflete esse descompromisso com a natureza e com a humanidade. Observa-se um imediatismo dos grupos que dominam o Estado e o Congresso e o próprio esvaziamento desse Estado como agente regulador das desigualdades decorrentes da privatização voraz de bens comuns. A regulação se torna obstáculo ao retrocesso desejado pelas novas hordas capitalistas. Ainda, de acordo com Santos (2006, 322), a medida que estatizou a regulação, o Estado fez dela um campo de luta política e nessa medida ele próprio se politizou. O Estado como moderador perde função e ganha força um Estado exclusivo dos setores mais poderosos.

A institucionalização de vastos territórios sob dominialidade coletiva na Amazônia nesses trinta anos, expressa um protagonismo de grande envergadura das populações locais, conscientes de que a exclusão territorial reverbera na exclusão econômica e social. Daí a insurgência pela afirmação identitária como um tênue, mas efetivo, recurso de poder. Considerando o grau de invisibilidade, de obstáculo ao avanço do capital que as populações rurais da Amazônia representam à exploração de ativos, suas lutas identitárias são necessárias e foram eficientes na luta contra desigualdades e desterritorializações, num ambiente democrático. Daí a reação violenta para ter esses territórios livres.

A Amazônia Legal concentra 98,6% das terras, mas apenas a metade da população de 800 mil habitantes nacionais indígenas, pois cerca de 52% vive nos estados fora da Amazônia.

O discurso de que há muita terra para poucos índios oculta essa realidade. Os sistemas de sobrevivência de recursos da floresta são extensivos e de difícil obtenção pela dispersão natural das espécies animais e vegetais utilizados pelas comunidades indígenas. No Centro-Sul do país, os povos indígenas lutam para se manter nas precárias terras que disputam com latifundiários, conflitos aguçados com o encorajamento institucional que os grandes proprietários recebem do governo instalado em 2019.

No senso comum, o discurso dos setores refratários à regulação, entre eles as empresas e o Estado que as ampara, trilha pela via da estigmatização dos padrões moderno versus atrasado. A grande empresa rural, as mineradoras, a logística de transporte que destrói ecossistemas são a modernidade. Território de uso comunitário ou de agricultura familiar são o atraso. Na base desse confronto, diferente de 30 anos atrás, os setores extrativistas empresariais encontram agora muitas das matérias-primas pretendidas por eles, sob dominialidade de territórios coletivos e de assentamentos de agricultores familiares na condição de colonos ou pela reforma agrária.

A fúria contra limites e regulação

Área desmatada e queimada na zona rural de Humaitá (AM) na manhã de 29 de agosto, Humaitá é uma das cidades do Amazonas que está em estado de emergência devido aos desmatamentos e queimada. Foto: Edmar Barros/ Amazônia Latitude.

Em 2018, o noticiário sobre a Amazônia foi frenético e aterrador para quem conhece as fragilidades de ecossistemas, a maior parte de alguma forma afetada por garimpos poluidores, pela extração de um rol extenso de minérios para exportação, por usinas hidrelétricas, por plantações extensivas de grãos à base de agrotóxicos, pela volta ao descontrole dos desmatamentos e pela eliminação sumária de extensas redes de microbacias hidrográficas.

A tormenta não é incidental. Faz parte de uma estratégia de guerra, mantendo os inimigos (populações, Organizações Não Governamentais ambientalistas, movimentos sociais, entre outros) sob fogo cerrado.

No início de agosto de 2019, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) publicou a reclassificação de 1.924 agrotóxicos sob o pretexto de padronização internacional da caracterização dos produtos, reduziu de 698 para 43 os produtos classificados como mais perigosos, ou seja aqueles com risco de morte com contato direto e imediato, relativizando outras formas de contaminação que também podem resultar em doenças graves e mortes. Com o avanço da produção agrícola em larga escala na Amazônia, a contaminação ambiental avança sobre a região./span>

Com a reemergência das forças ultraconservadoras que resultaram na eleição do ex-militar Jair Bolsonaro, Governo e Congresso Nacional formaram uma maioria decidida a impulsionar as pautas de retrocesso fundiário, ambiental, trabalhista e social, tendo na bancada do Boi, Bíblia e Bala (BBB) seu principal suporte político. Esses setores são explicitamente contrários ao marco regulatório de proteção ambiental e territórios de uso coletivos e defendem o armamento da população, inclusive dos fazendeiros, na defesa das propriedades.

Pelo menos 323 deputados federais, ou 63% da Câmara, têm atuação parlamentar desfavorável à agenda socioambiental. Eles votam e elaboram projetos que têm impacto negativo para o meio ambiente, povos indígenas e trabalhadores do campo. (Repórter Brasil, site acessado em 19.07.2019).

O desmonte das instituições de gestão ambiental faz parte da tormenta. O Presidente exigiu do Ministro do Meio Ambiente uma “limpa” no Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA) e no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO). O sistema de participação social instituído em todas as esferas da gestão ambiental do país foi dissolvido ou reduzido aos setores considerados confiáveis pelo Governo.

“Desfaça tudo essas reservas” esse brado repercutido pelo jornalista Ciro Bastos, da Agência Pública, sintetiza a fúria dos setores refratários à regulação aos limites territoriais para a expansão de suas atividades extensivas. A reunião, realizada em abril de 2019 entre o Secretário Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e do Abastecimento e Ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Antônio Nabhan Garcia junto de lideres e parlamentares do Pará, exemplifica a mentalidade desses segmentos.

Nessa reunião, os representantes dos “produtores rurais do Pará” exigiram a demissão da superintendente do IBAMA que está atrapalhando seus interesses. Para o IBAMA “não fazer nada” em relação às fiscalizações. Após essa reunião, a superintendente foi exonerada e não houve substituição até agosto, quando chegou o “Dia do Fogo”. A acefalia institucional é uma forma de agir diante de derrubadas por tratores com correntões, roubo de madeiras de unidades de conservação e terras indígenas e de não responsabilizar os autores dos incêndios propositais que se alastram no estado do Pará e na Amazônia inteira.

No Congresso tramitam dezenas de proposições de medidas legislativas de retrocesso socioambiental. Entre tais demandas, os ruralistas pretendem remover os supostos obstáculos socioambientais para a atividade agropecuária brasileira. Em particular, entre outras medidas, pretendem:

(i)desobrigar a atividade agropecuária do licenciamento ambiental;
(ii) reduzir o tamanho e alterar as categorias das Unidades de Conservação, flexibilizando as normas de proteção, legitimando ocupações irregulares, e liberando áreas protegidas para usos da agropecuária e outras explorações;
(iii) reduzir as áreas indígenas por meio da fixação do marco temporal de 1988, e da extensão para todas as demarcações das terras indígenas das 19 condicionalidades definidas pelo Supremo para a “Raposa Terra do Sol”;
(iv) transferir para o mercado as terras obtidas pelo programa de reforma agrária, de novo, com vistas a disponibilizar mais terras para a exploração capitalista;
(v) liberalizar ainda mais o uso dos venenos agrícolas;
(vi) legitimar as ocupações de terras da União, o que, além de chancelar a grilagem, fará avançar ainda mais a atividade agropecuária sobre as comunidades tradicionais e biomas sensíveis e estratégicos como Amazônia e cerrados.

Entre as medidas de flexibilização do acesso de atividades extrativas dentro de Terra Indígenas, dois Projetos de Emendas Constitucionais (PEC) são criticadas pelas lideranças do movimento indigenista. A PEC 187/2016 libera a atividade agropecuária em terras indígenas a PEC 343/2017, retrocede na tutela dos povos pela FUNAI estabelecendo que os contratos devem ser feitos entre o órgão e as empresas e\ou pessoas que desenvolverão essas atividades. Uma Frente parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, liderada pela deputada Joênia Wapichana, eleita por Roraima em 2018, lançou documento de contestação dessas PECs.

Esse cenário é hostil aos setores que defendem a sustentabilidade, o planejamento territorial com participação social, a gestão ambiental por meio de Zoneamentos Econômicos e Ecológicos (ZEE), o licenciamento ambiental de obras por órgãos públicos, assim como a simples existência de Terras Indígenas, Quilombolas e de agricultores familiares.

O Projeto Jornalismo Latente, que vem acompanhando os novos conflitos socioambientais no Brasil, denuncia a existência de 4.536 pontos de conflitos “humanitários e choques ambientais” no Brasil. O estudo se baseia em informações oficiais da Agência Nacional de Mineração e situa os conflitos no universo socioambiental de

“…indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais e áreas verdes protegidas são vizinhos de atividades legalizadas de mineração. São 245 áreas indígenas (40% do total), 183 comunidades remanescentes de quilombolas (46%), 1.079 unidades de conservação (61%) e 3.029 assentamentos (43%) classificados como locais de possível conflito socioambiental”.

A contribuição das emissões de CO2 por desmatamento da Amazônia se tornaram objeto de uma guerra de informações. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) foi questionado publicamente pelo Ministro do Meio Ambiente e pelo próprio Presidente da República sobre o violento aumento dos desmatamentos encorajados pelo Governo.

Segundo o Presidente, “as informações do órgão não correspondem à realidade”, e que o governo “não pode ter órgãos aparelhados com pessoas que têm fidelidade às ONGs (organizações não governamentais) internacionais”. O presidente do INPE foi demitido por sustentar a elevação de mais 250% dos indicadores de desmatamento entre 2018 e 2019, monitorados pela instituição, dados publicados desde os anos 1990. Um militar o sucede.

Da parte das organizações sociais, em junho foi formada uma ampla coalizão na defesa dos marcos regulatórios agrários e ambientais, lançando uma carta. A Carta Terra e Território é uma das ações unificadas que tendem a se ampliar entre as organizações sociais para barrar retrocessos, mas com uma característica inédita até nos governos civis-militares. Não são endereçadas ao governo e sim à sociedade. As mulheres indígenas marcharam sobre Brasília em agosto e entregaram documento ao Congresso. Assim fizeram as mulheres trabalhadoras rurais, em sua Marcha das Margaridas, que reuniram cerca de 100 mil mulheres e entregam suas reivindicações aos parlamentares. O Congresso e o Judiciário se tornaram os únicos interlocutores dos apelos da sociedade.

Na última semana de agosto, foi criado o Fórum em Defesa da Amazônia, no Congresso Nacional, por iniciativa de partidos de esquerda envolvendo as Frentes Parlamentares de Meio Ambiente e Indígena e organizações da sociedade civil. Entregaram uma carta ao Presidente da Câmara exigindo a resolução de pautas legislativas que contribuam para uma agenda afirmativa da integridade do ambiente, dos territórios e dos povos da Amazônia. O Governo federal colocou o Exército e a Força Nacional para combater as queimadas. Os movimentos do governo são erráticos com negação do apoio de países que têm uma cooperação com a Amazônia há muitos anos e a solicitação de apoio exclusivo do Governo Trump e de Israel. A Amazônia se torna hotspot da geopolítica internacional.

Considerações finais
Dia do Fogo

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, participa de almoço com artistas sertanejos, no Clube do Exército, em Brasília.Foto José Cruz/Agência Brasil

O impeachment presidencial de 2016 teve nos setores refratários à regulação um apoio político fundamental, com a esperança de desfazer os marcos regulatórios ambientais, fundiários e territoriais que os impedem de acessar as áreas protegidas da Amazônia. A racionalidade de uso dos recursos naturais a baixo custo ou às custas dos bens públicos preside as decisões de amplos segmentos que competem pelos espaços, migrando para as áreas públicas onde são mais competitivos na base da informalidade.

Setores refratários à regulação se aliaram aos ultraliberais para pautar retrocessos legislativos e institucionais, promovendo uma revisão dos instrumentos de monitoramento e de controle ambientais e da gestão dos territórios indígenas e da política fundiária.

Os retrocessos foram iniciados com Michel Temer e intensificados com o bolsonarismo, que verbalizou oficialmente as ideias mais furiosas contra o sistema nacional de meio ambiente, direitos humanos e direitos indígenas por meio de uma retórica ufanista que projeta para a Amazônia o mesmo tipo de progresso que causou impactos em escala nas regiões desenvolvidas do país.

A Amazônia não sobreviverá à escala do ataque em curso caso não seja interrompida essa reedição das piores caçadas sobre os seus recursos e sobre as populações que contribuem para a conservação de seus serviços ambientais.

Nesse cenário, o Brasil e a Amazônia estão ameaçados por uma nova onda de autoritarismo e violência em função do capitalismo extrativista. Volta o escamoteamento das condições de exploração do recursos naturais por meio da propaganda falsamente nacionalista, a subsunção do valor da biodiversidade e demais recursos ambientais, a quebra da soberania, o sofrimento humano e deterioração ambiental, que a avaliar pela intensidade da desregulamentação em curso, poderá ser irreversível.

A solução passa por respeitar o marco regulatório e ordenamento territorial vigentes, avançando em projetos que valorizem os recursos florestais e sistemas de produção agrícolas sustentáveis para elevar a produtividade e a diversidade de recursos, potencializando os sistemas de manejo cujas tecnologias socioculturais e científicas já têm validade comprovada. Assim como, deve ser construída uma política de industrialização diferenciada para a região, compatível com o mosaico de oportunidades e saberes de suas populações.

Os custos da produção limpa são maiores, por isso os recursos públicos devem apoiar os setores que aceitam a regulação, desestimulando os refratários e marginais. Deve ser criado um sistema de financiamento para a produção sustentável que inclua o pagamento de serviços ambientais e o avanço de parcerias com mercados de consumo de alimentos, fármacos e outros produtos produzidos por uma Amazônia limpa e perene.

 

Raimunda Monteiro é professora do Instituo de Ciências da Sociedade da UFOPA – Universidade Federal do Oeste do Pará; Pós-Doutoranda em Ciências Sociais, Universidade de Coimbra; PHD em Ciências: Desenvolvimento Socioambiental, Mestre em Planejamento de Desenvolvimento Regional, Graduada em Jornalismo (UFPA).
Imagem em destaque – Queimada é vista em fazenda na BR 230 na cidade de Lábrea (AM), na tarde de 30 de agosto. Lábrea é uma das cidades do Amazonas em estado de emergência, devido as queimadas e desmatamentos. Foto: Edmar Barros/ Amazônia Latitude.
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