Amazônia: para entender o “Dia do Fogo”

dia do fogo
Artigo escrito no estágio pós-doutoral no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, supervisionado pelo professor Boaventura de Sousa Santos

A Amazônia vive uma situação crítica desde 2016. Esta afirmação remete a uma visão histórica das políticas ambientais e ao ordenamento territorial que fechou a fronteira das terras públicas e territórios coletivos aos setores mais agressivos dos segmentos do agronegócio e madeireiros do país a partir da década passada.

A partir de 2016, todo o sistema de proteção ambiental, dos territórios indígenas, dos povos e populações tradicionais, dos agricultores familiares e dos projetos de assentamentos agrícolas e florestais está sob ataque dos setores refratários à regulação e que historicamente se beneficiaram da apropriação de terras públicas e da ausência do Estado como política de governo. É uma reprodução local do que ocorre com o patrimônio público a partir de um conjunto de ações decorrentes da captura do Estado e do orçamento público do Brasil pelos setores rentistas. No caso da Amazônia, há uma corrida dos setores vinculados às commodities internacionais para uma nova onda de estocagem de ativos: terra, florestas, água, minérios, entre outros.

Sob um ponto de vista histórico, não há novidades entre o comportamento presente dos agentes que ditam a conjuntura da região e as dinâmicas de ocupação que marcam a história da Amazônia há 60 anos, desde que foi conectada por meio da rodovia Belém-Brasília ao Centro-Sul do país. Os estoques de riquezas da região tiveram seu alcance e infra-estrutura de suporte à exploração garantidos com a construção das grandes rodovias federais planejadas para integrar a região aos mercados do país, por terra, e aos mercados globais com a exploração de commodities que passaram a pesar na balança comercial brasileira. 

Um exemplo do impacto do tipo de integração nacional subordinada ao alcance do estoque de commodities é o setor mineral. No I Anual Brasileiro de Mineração, de 1972, o diagnóstico do potencial mineral do país, demonstra que a concentração das explorações está situada no Centro-Oeste, Sul e Nordeste, com raras incidências na Amazônia. Este Anuário utilizou dados do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), pode cortar principalmente as informações das empresas privadas que atuavam no ramo. O Amapá era, até então, o principal produtor de minérios, liderando a produção nacional de manganês e caulim. Rondônia era indicada como portadora de 66% das reservas de estanho do país.

Em 1971, o Pará não aparecia entre os estados detentores de reservas de ferro, apesar das minas de Carajás terem sido identificadas no final dos anos 1960. As jazidas de Carajás, que viriam a se tornar o maior complexo de exploração deste minério do mundo, em 1970, já estavam com pesquisa de lavra em curso, inclusive com a United Steel colocando aviões para sobrevoar as aldeias indígenas da região em apoio das frentes de atração da FUNAI.

Mapa retirado do I Anuário Mineral Brasileiro, publicado pelo Ministério de Minas e Energia em 1972.

O mapa 1 mostra os projetos de estudos do Departamento de Produção Mineral (DNPM) concluídos até 1971 e também da Petrobrás. A Amazônia passava então à ordem do dia nos planos dos governos militares como um estoque de ativos minerais cujos primeiros resultados indicavam um potencial em expansão.

Mapa retirado do I Anuário Mineral Brasileiro, publicado pelo Ministério de Minas e Energia em 1972.

Nos dois primeiros anos da década de 1970, houve um súbito aumento da atuação das empresas mineradoras na Amazônia e a transferência de parques mineradores até então situados no sul para a Amazônia. Quatro minérios são mostrados como exemplo, por terem se constituído líderes do ranking nacional a partir das explorações na Amazônia, nos últimos 48 anos. Praticamente todas essas minerações, de alguma forma, incidiram em conflitos em Terras Indígenas.

Cassiterita

Fonte: DNPM, I Anuário Mineral Brasileiro – Rio de Janeiro, 1972.

A exploração deste minério se desloca em um ano de uma concentração em Rondônia, se expandindo para o Pará e Mato Grosso.

Ferro

Fonte: Fonte: DNPM, I Anuário Mineral Brasileiro – Rio de Janeiro, 1972.

Somente três estados da Amazônia aparecem como detentores de projetos, mas o salto é súbito em um ano, tanto nos percentuais individuais dos estados, como no total de projetos de exploração de ferro no país.

Bauxita

Fonte: Fonte: DNPM, I Anuário Mineral Brasileiro – Rio de Janeiro, 1972.

A bauxita apresenta um salto gigantesco de deslocamento de projetos em um ano, sendo o Pará o estado que passa a concentrar o maior número de projetos ao longo do médio e baixo Amazonas.

Ouro

Fonte: Fonte: DNPM, I Anuário Mineral Brasileiro – Rio de Janeiro, 1972.

Com uma incidência em praticamente todos os estados da região Norte, o ouro também se torna um minério cujas explorações se expandem na Amazônia, com destaque para o boom nos estados do Mato Grosso e Pará, mais especificamente na bacia do rio Tapajós.

Em termos nacionais, em 1970, o minério com maior número de pesquisas formalizadas nos estados da Amazônia era a cassiterita, com 660 pedidos, o maior do país. Em segundo era o calcário, com 253 pedidos; em terceiro, a argila, com 251 projetos; e o ouro em quarto, com 124.

Em 1971, a cassiterita passou para o segundo lugar no país, com 538 projetos, ultrapassada pelo cobre que pulou de 143 projetos de pesquisa em 1970, para 569, em 1971 – desses, apenas 26 em Mato Grosso (Amazônia). A bauxita que apresentava 90 projetos de pesquisa em 1970, salta para o segundo minério mais demandado em 1971, com 441 projetos de pesquisa; seguida do calcário, com 360, cuja maior concentração era fora da Amazônia; o ouro salta de 124 projetos em 1970, para 339 em 1971, tendo no Pará e Mato Grosso a nova fronteira, enquanto argila cai para a quarta posição com 279 projetos.

Na esteira da integração nacional promovida pela malha rodoviária que foi construída a partir de 1970, os estados da Amazônia se tornaram os principais fornecedores de minérios do país, e o Pará se tornou um dos territórios que mais se destacaram nas exportações de ferro, bauxita, diamantes, cobre, ouro, cassiterita e vários outros itens minerais. O Amapá, primeiro estado minerador formal da Amazônia, esgotou logo suas reservas de manganês e caulim. O Amazonas entrou na rota da exploração de petróleo, e assim, cada estado foi encontrando seu filão de exploração mineral e fazendo suas trajetórias de boom-colapso.

No início do século XX, existem ainda imensos garimpos de ouro a céu aberto no Mato Grosso e no Pará, na bacia do Tapajós (a maior bacia aurífera do país), bem como em Roraima, em Rondônia, no Amapá e no território das Guianas. Ao lado das empresas multinacionais que aumentam sua territorialização na Amazônia com projetos formais, ainda se proliferam garimpos manuais, porém, cada vez menos em áreas públicas como predominou até meados da década passada.

Nesses 50 anos, rios, lagos, igarapés, lençóis freáticos e florestas foram afetados com escavações e aterramentos, derrubadas de matas e contaminação com mercúrio em toda a Amazônia. Povos indígenas de Roraima, Pará, Amapá, Rondônia e Amazonas tiveram suas terras invadidas pelos garimpeiros e por empresas, desestruturando seus meios de vida, em Roraima, Pará, Amapá, Rondônia e Amazonas.

De acordo com o estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), o ferro representa 75% da produção mineral brasileira. Para aprofundamento no tema, se verá que além do ferro, bauxita, cassiterita e ouro, a Amazônia se destaca nas exportações de vários outros itens minerais e se torna a bola da vez na exploração do nióbio, antes concentrado em Minas Gerais. O Pará lidera as exportações minerais da Amazônia.

No Pará o peso da mineração e em especial do minério de ferro na economia e na exportação é ainda mais superlativo. A Vale responde por 65% de tudo que foi exportado pelo estado: US$ 8,45 bilhões em minério de ferro extraídos em Carajás (59% das exportações); US$ 668,60 milhões em cobre extraídos da mina Salobo (5% das exportações); US$ 140,37 milhões em manganês extraídos da mina do Azul (1% das exportações). (INESC, 2015).

O exemplo da mineração pode ser aplicado a todas as commodities agrícolas e agropecuárias que durante os últimos 50 anos migraram para a Amazônia, atraídos por benefícios fiscais, pela ausência de fiscalização trabalhista, tributária e ambiental. Um paraíso para os setores menos competitivos, dos setores rentistas indispostos à agregação de valor às matérias-primas e aos setores refratários à regulação.

No caso do setor agropecuário, a lógica é, na medida em que encarece a terra e os insumos nos estados mais desenvolvidos, há uma seleção natural entre os produtores rurais das regiões mais capitalizadas. De todos os segmentos (pecuária, produtores agrícolas, madeireiros, mineradores, etc.), frentes de expansão migram para a Amazônia, buscando terras públicas (free lands), florestas e minas para incorporação informal.

A informalidade predominou como motor da ocupação da Amazônia até a primeira década deste século. A região tornou-se destino dos setores mais atrasados do agrário brasileiro. A partir do final dos anos 1990, parte desses setores, associados ao que passou a se autodenominar “agronegócio”, ou seja as cadeias de produção de grãos vinculadas às multinacionais de fornecimento de insumos e de comercialização de alimentos, também demandaram as terras agricultáveis da Amazônia. Calculavam um estoque de 90 milhões de hectares a serem convertidos em produção de grãos, iniciando a marcha do agronegócio rumo à Amazônia.

A sequência da ocupação deu-se como nas fronteiras anteriores do Mato Grosso, Goiás e Tocantins: ocupação de terras públicas por meio de grilagem, expulsão de pequenos agricultores, populações tradicionais e indígenas que por acaso habitassem essas áreas, introduz-se plantação de arroz, milho, e por último a soja como principal commoditie. A violência como método de apropriação faz parte da história.

Percebe-se uma racionalidade de apropriação de terras públicas, mais baratas pelas distâncias dos centros dinâmicos devido ao esgotamento da fertilidade das terras, dos pastos e pelo encarecimento dos insumos fornecidos pelas tradings do agronegócio. O uso extensivo e com baixa produtividade, em geral com desperdício e alto custo ambiental, é uma das razões da migração das atividades em busca de novos estoques e áreas. Sempre adentrando novas áreas.

Em pesquisa realizada em São Félix do Xingu e BR-163, Castro, Monteiro e Castro (2004) identificaram que a racionalidade de boom-colapso preside a decisão dos atores que promovem a destruição na Amazônia, assim como a ocorrência de diferenciações internas: i) quanto aos ramos de atividades das famílias (grãos, pecuária, madeira…) e ii) quanto aos espaços de sequência migratória dos estados, em geral acompanhando a disponibilidade de recursos. Quanto ao ramo, há tradição das famílias nas atividades, raramente havendo substituição de ramos, pois as práticas e capitais são repassados geracionalmente. Por exemplo, famílias de pecuaristas perfazem rotas migratórias geracionais desde Minas Gerais – Goiás – Tocantins – Sul do Pará e avançam dentro dos municípios paraenses também numa sequência de esgotamento dos pastos.

Um pecuarista, que em 2001 possuía cerca de 20 mil cabeças de gado em São Félix do Xingu e cuja família começara a atividade há três gerações em Minas Gerais e as gerações seguintes passaram por Goiás e Tocantins, disse em entrevista que projetava para a Terra do Meio (região compreendida entre o rio Xingu paraense ao Sul, a BR-163 ao Sudoeste e a Transamazônica ao Norte), os primeiros lotes de rebanho. Perguntado até onde ele iria, respondeu brincando, mas assertivo, sobre a racionalidade de sua atividade: “até Lima (Peru)!”. Esses setores fizeram de São Félix do Xingu o maior produtor de gado no início deste século. Seguindo esta racionalidade de uso da terra, “o município de São Félix do Xingu, no Pará, liderou o ranking brasileiro em termos de rebanho bovino em 2014. O efetivo chegou a 2,213 milhões de cabeças, 1% do total nacional, segundo dados da pesquisa Produção da Pecuária Municipal (PPM) referente ao ano passado”. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2015, os quais também revelam que 54% do rebanho de mais de 220 milhões de cabeças de gado do país estão concentrados em cinco estados: Mato Grosso, que lidera com 28,592 milhões de cabeças (13,5% do gado nacional), Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e Pará. Com a inclusão de Rondônia neste ranking, a participação da Amazônia na produção agropecuária salta para mais de 60%.

Considerando que a maior parte da produção ainda se dá com a média de 1 cabeça de gado por hectare, a relação de cabeças de gado corresponde quase igualmente à quantidade de florestas convertidas em pastagens.

No caso da produção de grãos, a racionalidade dos atores que atuam nas cadeias do agronegócio é a mesma. Os menos competitivos foram expandindo suas atividades pelos municípios matogrossenses até a Amazônia, chegando até mesmo às fronteiras de países como o Paraguai e Bolívia até chegarem à Amazônia, há cerca de 20 anos. Muitos produtores de soja que passaram uma temporada na Bolívia deram calote nos bancos bolivianos e vieram se instalar na BR-163, no Pará, a partir de 2000. Com a venda de terras à R$40 mil por hectare no Mato Grosso, compravam terras, no final dos anos 1990, a R$ 100, R$200 o hectare, dos agricultores familiares de Santarém, no Pará.

Desta forma, a Cargill formou seu pool de produtores que justificou a construção de um porto dentro da cidade de Santarém e estruturou sua rede de financiamento aos produtores de soja, que chegaram do Mato Grosso plantando arroz e hoje produzem milho, milheto, girassóis e soja, beneficiando-se de até quatro safras anuais em mais 200 mil hectares convertidos em plantations (sistema de monocultivos).

Porto de escoamento de soja da Cargill, em Santarém-PA. A multinacional norte americana está presente nos cinco continentes do mundo, e é a maior exportadora de soja no Brasil. Através da instalação do porto, deu vazão para a produção de soja do Mato Grosso, posteriormente possibilitando a expansão da fronteira agrícola para território amazônico. Fonte: Amazônia Latitude.

Essa dinâmica social e econômica também envolveu, no início deste século, famílias de pequenos e médios produtores agrícolas dos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina que haviam permanecido em suas propriedades durante o ciclo de apropriação das propriedades rurais pela soja a partir dos anos 1970. Com a indisponibilidade de terras para seus descendentes devido ao elevado custo, uma nova frente de ocupações de terras públicas, no Pará, foi protagonizada por associações de pequenos produtores rurais em meados de 2005. Na época, tentaram se instalar em Novo Progresso (de onde partiu o comando do “Dia do Fogo”, em agosto de 2019).

Com a promessa de terras feita pelo governo do Estado, esses agricultores formaram associações para colonizar áreas públicas. Ocorre que Novo Progresso, desde a abertura da rodovia BR-163, foi destinada à ocupação de médios e grandes produtores rurais, com loteamentos de pelo menos 500 hectares. Frustrados em seus planos de assentamento em Novo Progresso, esses agricultores foram deslocados para uns 700 km adiante, município de Jacareacanga, nas proximidades da Transamazônica.

Parte desses pequenos agricultores se aliou, em meados de 2005 e 2006, a outras frentes de especulação que avançava no trecho entre Itaituba (PA) e Apuí (AM). Naqueles dois anos, protagonizaram a queima de cerca de 500 km de ambos os lados da Transamazônica como forma de apossamento de áreas. Florestas queimadas vivas. Placas de propriedades com tarjas do Governo Federal falsas. Proibições de acesso a propriedades públicas – apropriadas por entes privados clandestinos onde não havia habitantes. Essas frentes de apropriação por grileiros e empresários com atividades informais criaram áreas de violência contra comunidades tradicionais, como a Gleba Nova Olinda, em Santarém\Juruti. A matriz da ação é a mesma: marcam a terra pretendida com placas, constroem-se estradas e pontes , queimam como “beneficiamento das áreas” (como se fossem investimento). Quando têm pressa para consolidar as posses e não há tempo para explorar ou vender a madeira, queimam toda a madeira junto, como foi visto em São Félix do Xingu, e em várias áreas de uma região chamada Estrada do Boi, em que só o mogno foi retirado, sendo todo o restante da mata incendiado e transformado em pastos.

Esses exemplos de dinâmicas que ocorreram há dez anos são essenciais para compreender a racionalidade de partes dos setores que está protagonizando o maior crime ambiental organizado na história da ocupação contemporânea da Amazônia. Há 50 anos, os governos autorizaram, através de políticas de colonização e de incentivos fiscais a grandes empresas, a derrubada de florestas públicas e sua transformação em espaço de produção agropecuária, prometendo terra e modernização. Na época essas práticas eram abrigadas na legislação e nas políticas de ocupação oficiais. Cinquenta anos depois, o governo atual, do qual os militares fazem parte e respondem pelas principais políticas estratégicas que recaem sobre a sustentabilidade da Amazônia, assume publicamente um discurso de estímulo à rebeldia contra a regulação ambiental instituída nos últimos 30 anos e ao ordenamento territorial promovido entre 2005 e 2007, como resposta ao quadro de apropriação e destruição ambiental brevemente descrito acima.

O Extrativismo como projeto econômico

O termo extrativismo tem contribuído para denominar a exploração de recursos naturais em uma lógica primário-exportadora colonial, em geral vinculada a intervenções tópicas nos territórios para extração de riquezas minerais ou da agricultura empresarial em larga escala, tendo na exportação de bens primários, semi elaborados e nos grandes impactos socioambientais sua principal característica. Gudynas (2015) define extrativismo

como un tipo de extracción de recursos naturales, en gran volumen o alta intensidad, y que están orientados esencialmente a ser exportados como materias primas sin procesar, o con un procesamiento mínimo (GUDYNAS, 2015:13).

De acordo com o autor, o extrativismo também é identificado pela intensidade dos impactos, desde a obtenção dos recursos até a forma como os sítios expropriados são devolvidos à natureza. Desta forma propõe

que la orientación exportadora prevalece cuando al menos el 50% del recurso extraído es destinado al comercio exterior. Las etapas incluidas en el extractivismo comprenden las acciones de exploración, descubrimiento, etc., las actividades propias de la extracción, pero también las fases posteriores (como cierre y abandono de los sitios de apropiación. (Ibid. 13)

A orientação exportadora norteia o conceito mesmo quando se trata de minerações com amplo envolvimento social como os garimpos de ouro, cuja extração se dá por pequenos empreendedores individuais ou pequenas empresas, mas o destino final do produto é a exportação. Também podemos estender à produção de grãos que, vinculados às cadeias multinacionais de insumos agroindustriais, fazem um uso temporário, exaustivo e anômico dos territórios.

Os garimpos clandestinos se multiplicaram na Amazônia em 2019. Populações locais, imprensa e ONGs atribuem isso ao discurso anti-ambiental adotado pelo governo. Fonte: Notícias do Minuto.

A ênfase na exportação que este conceito carrega embute uma visão metodológica que capta os olhares das populações locais. O conceito de extrativismo está fortemente associado à imposição de subalternidades às populações afetadas nos espaços que habitam, cujos processos de apropriação externa desestruturam seus meios de vida de forma irreversível. Os meios de vida, ao contrário da exploração tópica de um recurso, são interdependentes. Estão sempre associados a sistemas culturais e territoriais nos quais as intervenções tópicas da exploração econômica extrativista acarretam danos extensivos e não valorados, mesmo com o avanço das normas e procedimentos de compensação. Nesse contexto, o extrativismo como lógica capitalista na relação entre países industrializados e detentores de matérias-primas, ainda segundo Gudynas,

…articula al menos dos miradas. Por un lado, siempre parte de una mirada local, ya que se enfoca en la actividad de extraer los recursos naturales que ocurre en territorios específicos, con sus comunidades afectadas y ecosistemas alterados. Los extractivismos están enraizados en territorios precisos. Por otro lado, también contiene una dimensión global, ya que reconoce que esa apropiación tiene un destino que se orienta al comercio exterior (Ibid. 13).

O extrativismo empresarial de alto impacto ambiental determinado por relações econômicas anti-democráticas designa este tipo de dinâmica econômica, política, ambiental, social e cultural que perfaz a matriz de desenvolvimento que historicamente orienta as decisões das elites brasileiras. Um estudo da racionalidade dos atores e de como agem no comando do Estado em relação à perpetuação de economias extrativistas pode ajudar a compreender a visão imediatista das elites na Amazônia. A maldição da abundância referida por Acosta (2009) é uma via interessante para explicar o comodismo da condição de vendedores da natureza sobre a qual não incorporam trabalho e riscos.

Ainda sobre a racionalidade das economias extrativistas, Bunker (1977) aborda o problema particular das regiões de economias de exportação extrativistas que ao mesmo tempo em que respondem à demanda internacional por commodities extrativistas específicas, tornam-se suscetíveis de perder a sua utilidade quando a fonte de extração está esgotada.

Economias predominantemente extrativistas perturbam os padrões de assentamento humano e o ambiente natural de maneiras adaptáveis apenas a relativamente curto prazo e mal adaptados a longo prazo. Na ausência de sistemas produtivos auto-sustentáveis e flexíveis, há pouca ou nenhuma base econômica para a oposição local ou resistência aos empresários ou aos estados nacionais dependentes que procuram organizar a população e o meio ambiente de modo a explorar o potencial de lucro rápido. Assim, economias extrativistas tendem a eventual estagnação, quebrada apenas por novos ciclos de extração de novas demandas novos recursos materiais disponíveis na região emergem (BUNKER, 1977, 30).

São muitos os estudos que descreveram como a Amazônia foi incorporada no sistema mundial de apropriação capitalista moderno, com destaque para Otávio Ianni (1977; 1988), Hebette (2004), Fernando Henrique Cardoso e Geraldo Muller (2008), Elmar Altvater (1995), Stephen Bunker (1977;1985;1994); BECKER, B. (1982;1985;1989); LOUREIRO (V.R. 1992), COSTA, J.M.M. (2004) entre outros. 

A emergência territorial afirmativa da diversidade

O projeto de ocupação territorial da Amazônia por meio da colonização, foi planejado para assentar uma população excedente de agricultores e trabalhadores rurais de vários espectros que o capitalismo agrário moderno expulsava dos territórios geograficamente privilegiados do Centro-Sul e Nordeste do país. Estes seriam os desbravadores das florestas, arcando com seu trabalho e com os custos de “amansamento da terra” que, depois de domesticadas, seriam integradas ao mercado. Ao final, as melhores terras seriam compradas por agricultores capitalizados que chegariam mais tarde.

O projeto também destinou grandes glebas ao fundo das estradas vicinais na escala de 500, 1.000 e 3.000 hectares, destinadas aos grandes proprietários que deveriam ser transformadas em fazendas. Teoricamente, esses setores mais capitalizados teriam estrutura e financiamentos públicos para desenvolver suas atividades em localidades mais distantes dos centros consumidores e dos serviços públicos.

 A assistência inicial aos colonos pobres só durou quatro anos (1970-1974), sendo que a maioria das famílias sofreu com necessidades básicas como falta de alimentos, perda de parentes por doenças, falta de assistência e transporte.

Porém, o traçado esquadrinhado de propriedades individuais, as áreas destinadas às agrovilas deveriam prevalecer de acordo com o que previram os planejadores. Mas houveram insurgências contra esse planejamento, que teve como fundamento o reconhecimento de territórios de uso coletivo pelas comunidades tradicionais que habitavam os rios cortados pelas rodovias. Pelo plano governamental, a apropriação privada desses territórios seria só uma questão de tempo e de valorização mercantil de seus recursos. Porém, essas populações resistiram contra a apropriação de sua madeira e de suas terras. Os fundos das vicinais também foram reivindicados pelos colonos como espaço de reprodução social de seus descendentes, propondo assentamentos de propriedade coletiva como os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS).

Nos últimos trinta anos, territórios de povos e populações tradicionais – Reservas Extrativistas Federais e Estaduais Terras Indígenas, Unidades de Conservação, Terras Quilombolas, assentamentos de reforma agrária em modalidades individuais e coletivas, entre outras formas de propriedades públicas de usufruto comunitário – foram reivindicadas e instituídas em toda a Amazônia. As articulações de movimentos sociais amazônicos contribuíram para que as ideias de Chico Mendes prosperassem nas áreas de colonização e, na Transamazônica paraense, houve uma adesão política às propostas de sustentabilidade em larga escala, traduzida em muitos projetos de agroecologia, educação do campo, produção orgânica, manejo florestal comunitário e de gestão ambiental comunitária.

No caso da Transamazônica paraense, Sindicatos de Trabalhadores Rurais e outros movimentos sociaisperceberam a onda de procura externa por terras na região na transição dos anos 1990 para os 2000. Aquela altura, a segunda geração formada pelos filhos dos colonos estavam se instalando nos fundos das vicinais, cada vez mais distantes da precária infraestrutura da região. Foi então que decidiram se antecipar numa proposta de reordenamento fundiário da colonização para abrigar seus descendentes. Chegaram a propor a redivisão dos lotes mais próximos da rodovia principal em chácaras de 10 hectares com fortalecimento da infraestrutura de atendimento à saúde, educação, e assistência técnica. A proposta não prosperou.

Os novos especuladores não só compravam lotes da colonização, mas também das áreas limítrofes ao sul e ao norte com a finalidade de implantar a pecuária de plantio extensivo de grãos sobre os últimos espaços florestais ainda intactos ou com impacto reduzido na região. Os movimentos sociais propuseram a destinação dessas áreas para unidades de conservação e de uso de comunidades tradicionais que as habitavam. Seriam duas concentrações de conservação denominados inicialmente Pulmão Norte e Pulmão Sul. Essa proposta foi incluída na pauta do Grito da Terra Brasil de 2000, apresentada à equipe do Ministério do Meio Ambiente. A Secretaria de Coordenação da Amazônia, do Ministério do Meio Ambiente, contratou o Instituto Socioambiental (ISA) para fazer os estudos dos quais resultaria a criação do mosaico de Unidades de Conservação da Terra do Meio, garantindo os territórios das populações tradicionais em Reservas Extrativistas e assim fortalecendo a proteção de Terras Indígenas e as áreas de proteção integral. Um mosaico sociocultural herdado de povos indígenas e de relações econômicas remanescentes do extrativismo da borracha, da castanha e das peles de gato, assim como do controle de usos sobre áreas oriundas de várias intervenções mineradoras de cassiterita, ouro e outros minérios. Também de pretensões minerais extensivas à toda a região por grandes mineradoras multinacionais.


Unidade de Conservação de Terra do Meio – PA.

Do ponto de vista ecológico, o rio Xingu protegido pelos povos indígenas xinguanos no Mato Grosso e no Pará, ficou melhor protegido das frentes de expansão que, se fossem abandonadas às dinâmicas da época, teriam se transformado em pastos e soja. Do ponto de vista fundiário, a Terra do Meio era formada por 19 glebas pertencentes ao Estado e as mesmas estavam todas negociadas com grandes latifundiários dos estados do Centro-Sul do país, entre eles políticos e artistas de grande influência. Em 2003, a autora deste trabalho foi tomada como refém, em Guarantã do Norte, limites do Mato Grosso com o Pará, pelos líderes de uma cooperativa de produtores que afirmaram ter o consentimento do Governo do Estado o Pará para ocupar lotes de 500 hectares nas glebas da Terra do Meio. O sequestro ocorreu como forma de pressionar o prefeito do município a não criar nenhuma Unidade de Conservação, razão que eles atribuíam à presença da minha pessoa como diretora do Fundo Nacional do Meio Ambiente.

A Terra do Meio, também conhecida como Corredor Xingu de Diversidade Socioambiental guarda uma diversidade e singularidade ecológica das mais ricas da América do Sul, pouquíssimo estudada. Abriga cerca de 28 milhões de hectares de extensão, contendo em seu interior 21 Terras Indígenas e nove Unidades de Conservação que formam um corredor de diversidade cultural, linguística, paisagística e econômica.

A criação das Unidades de Conservação no Pará e na Amazônia não se deu de forma tranquila. A violência contra líderes religiosos, sindicalistas e ativistas ambientais faz parte da história, concomitante com os ganhos na institucionalização do marco normativo ambiental e territorial que protege povos e ambientes naturais na Amazônia paraense.

Em 2001, o brutal assassinato do líder sindical Ademir Federicci (Dema) se deu num contexto em que ele e outros líderes de organizações da sociedade civil assinaram denúncias de roubo de madeira da Terra Indígena Arara, solicitaram providências na investigação dos desvios de recursos das empresas agropecuárias que operavam na Transamazônica com recursos da Superintendência dos Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), o líder sindical e ativista liderava a luta contra a Usina Hidrelétrica de Belo Monte (UHE). Dema havia desafiado os poderosos da economia extrativista. Era um ativista sindical e socioambientalista e foi um dos dirigentes do Movimento pelo Desenvolvimento a Transamazônica e Xingu (MDTX). Em sua homenagem foi criado o Fundo Dema, que financia projetos comunitários voltados para a sustentabilidade com recursos da venda do mogno roubado da Terra do Meio.

Como Ademir Federicci, a Irmã Dorothy Stang, freira norte-americana radicada na Amazônia desde 1967 e na Transamazônica desde o início dos anos 1980, fez o enfrentamento do latifúndio, lutando por décadas para que as glebas griladas por grupos poderosos da região fossem destinadas aos pequenos agricultores com modalidade socioambiental de uso coletivo de assentamento de reforma agrária, combinando agricultura e manejo florestal comunitário. Os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) foram a solução e se tornaram política pública, intensificando o conflito com latifundiários e empresas madeireiras, no município de Anapú, no Pará.

Em 12 de fevereiro de 2005, a caminho de um culto em uma comunidade, aos 73 anos, Irmã Dorothy foi abatida numa estrada solitária com cinco tiros desferidos por pistoleiros infiltrados entre as famílias camponesas. O corpo foi encontrado por seus companheiros sob chuva intensa. Tinha uma bíblia na mão e a cena de morte lembrava o tormento que sentia quando via as florestas queimando: os animais morrendo queimados ou fugindo desesperados. Tornou-se mártir feminina da luta ambiental na Amazônia, motivando ganhos nas políticas de conservação no Brasil. Mas as florestas às quais dedicou a vida continuam palco de conflitos. Os camponeses com quem lutou continuam defendendo os territórios conquistados.

Em Castelo de Sonhos, distrito de Altamira próximo a Novo Progresso, na BR-163, o sindicalista conhecido por Brasília foi entrevistado por mim e pela professora Edna Castro, em abril de 2002. Ele descreveu as ameaças de morte que vinha sofrendo. A equipe de pesquisa chegou a entrevistar o fazendeiro incriminado. Oferecemo-nos para buscar proteção judicial para que o mesmo viesse a ter segurança. Ele não aceitou porque estava profundamente envolvido com a recepção de levas de famílias de trabalhadores rurais que chegavam do Norte do Mato Grosso em busca de terras no Pará. Vários ônibus eram pagos pelas prefeituras dos municípios ricos, produtores de grãos, que mandavam em frente a força de trabalho excedente. Brasília, no papel de delegado sindical do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Altamira, se via na obrigação de buscar terras para assentar essas famílias. Mas as terras de Castelo de Sonhos já haviam sido incorporadas pelos latifundiários do Mato Grosso. Os lotes de 4, 10, 18 km de extensão na rodovia eram o padrão das propriedades. Brasília queria dividir parte dessas terras em posse de grandes detentores das áreas públicas com os agricultores sem-terra que chegavam à BR-163 (Cuiabá-Santarém). teve sua cabeça degolada como mandava a tradição latifundiária local.

São três casos de líderes assassinados na colonização por encampar lutas socioambientais e propor modelos de uso coletivo e democráticos da terra, florestas e águas. Em quatro anos, três vidas ceifadas por partidários do extrativismo predatório dos recursos naturais. Trajetórias insurgentes contra as desigualdades sociais que se agudizam com a apropriação territorial por setores que demandam a Amazônia como estoque pelo uso irregular e extensivo de seus recursos.

Esses fatos ocorreram antes e depois da primeira eleição do ex-Presidente Lula. E se repetem invariavelmente antes e depois de todas as eleições presidenciais, testando e desafiando os sistemas de controle. A diferença com o bolsonarismo é que o próprio presidente encorajou os setores delinquentes da economia rural do país a agirem na base da força e paralisou a ação de controle e mediação do Estado. Os três presidentes anteriores colocaram em maior ou menor medida o Estado na posição de mediação dos conflitos, liderando os avanços possíveis nas disputas territoriais. O bolsonarismo colocou o Estado em um dos polos do conflito, do lado dos setores mais violentos e destruidores dos ambientes e culturas.

Para ler a segunda parte do artigo de Raimunda Monteiro, clique aqui.

 

Raimunda Monteiro é professora do Instituo de Ciências da Sociedade da UFOPA – Universidade Federal do Oeste do Pará (Reitora 2014-2018); Pós-Doutoranda em Ciências Sociais, Universidade de Coimbra; PHD em Ciências: Desenvolvimento Socioambiental, Mestre em Planejamento de Desenvolvimento Regional, Graduada em Jornalismo (UFPA).
Imagem em destaque – no dia 10 de agosto, produtores do sul do Pará realizaram queimadas ao longo da região em apoio às políticas ambientais do Presidente Jair Bolsonaro. A data, que ficou conhecida como “Dia do Fogo”, ganhou os noticiários por conta das dimensões que as queimadas tomaram em meio a crise internacional em torno da Amazônia. Foto: Agencia Brasil.

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