Incorporação e integração da Amazônia: perpetuação da colonialidade

Integração da Amazônia

Verde é a primeira cor que vem à cabeça quando falamos em Amazônia. Instantaneamente nos vêm imagens mentais da grande floresta, sua imensidão, sua ermidade e etc. Mas ao analisar os processos de construção histórica da Amazônia, das suas imagens e das suas múltiplas dimensões internas, percebemos que o que parece natural na verdade não é tão natural assim.

O surgimento do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em meados do século XIX, assim como as primeiras produções “científicas” sobre a Amazônia, as expedições de demarcação territorial, etc., foram fundamentais para o início da construção das imagens da região amazônica. Euclides da Cunha, por exemplo, a partir da sua passagem pela Amazônia no início do século XX, deixou uma significativa produção textual que ao mesmo tempo em que refletiu uma percepção contemporânea sobre esta terra, também contribuiu para criar paradigmas interpretativos sobre a região que influenciaram de alguma forma o
pensamento nacional sobre a Amazônia. Ao realizar um minucioso trabalho para compreender a construção do imaginário popular brasileiro sobre a Amazônia, Magali Bueno destaca a predominância das imagens da “grande floresta verde” ou do “lugar do atraso” que nos rementem aos primeiros esforços de construção conceitual do Brasil e da Amazônia. O fato é que a imagem (ou imagens) da Amazônia, mais do que uma representação de uma realidade concreta, foram também uma construção – não linear, unilateral e estática. E mais do que uma construção, elas são imagens vindas de fora para dentro, que foram absorvidas pelos amazônidas e nós mesmos as reproduzimos com naturalidade. Assim, a Amazônia virou a “grande floresta”, “pulmão do mundo”, de “fauna e flora exuberante”. Mas a Amazônia não é isso mesmo?

Na verdade, o termo Amazônia surge mais como uma referência ao território do vale amazônico do que ao bioma amazônico. O seu emprego generalizado e reconhecido faz sentido a partir do momento em que o Grão-Pará deixa de existir, dando origem ao Amazonas e ao Pará. O termo funcionou perfeitamente para denominar a região das duas províncias, cortadas pelo Rio Amazonas, que em grande medida foi o caminho para a formação da sociedade amazônida a partir de 1616. Durante o período das primeiras expedições europeias pela região no século XVI, o rio foi rebatizado pelos espanhóis, nomeadamente pelo frei Gaspar de Carvajal, que acreditaram ter visto uma nação de índias guerreiras, as quais se atribuiu o epíteto de amazonas, em referência à mitologia grega. Assim surgiu a denominação Río de las Amazonas, que mais tarde serviria como sinônimo para denominar a terra do grande rio, o Grão-Pará.

Por esta razão não podemos reduzir o termo Amazônia à floresta equatorial. Na verdade, esta conversão do significado aconteceu justamente a partir do momento da construção conceitual da região no final do século XIX – talvez pelo perigo que o termo pudesse representar. Mas mais do que uma referência ao território, nós precisamos ver a Amazônia mais como um conjunto entre a terra e o povo, pois pensar em história da Amazônia só faz sentido se considerarmos o fator humano, pois a mata e a fauna não possuem história como as sociedades humanas – ao menos não existe ramo da história científica que faça esse tipo de estudo. O que à primeira vista pode parecer óbvio, como dizer que a Amazônia se trata mais do território do que do bioma, na verdade pode não ser tão óbvio assim se considerarmos toda a carga de imagens e preconceitos construídos sobre a Amazônia que ainda são capazes de fazer um indivíduo do século XXI se impressionar ao saber que existe “civilização” na região.

O objetivo deste ensaio é empreender uma reflexão ampla sobre os processos de incorporação e integração da Amazônia ao estado nacional brasileiro, assim como suas implicações e significados. Abordaremos o processo de inserção da Amazônia na unidade territorial do Brasil a partir da afirmação da ordem imperial em 1823 e da sua reafirmação em 1840, com o encerramento da cabanagem. A incorporação (ou inserção) é o processo de anexação do Grão-Pará, afirmação e reafirmação do poder do Império do Brasil sobre a Amazônia. Já o processo de integração diz respeito aos processos de estabelecimento institucional do estado brasileiro na Amazônia, de construção e infraestrutura de conexão com as demais regiões, e da afirmação de uma relação de subalternidade e dependência comercial e econômica que se desenrolam a partir da segunda metade do século XX. A proposta aqui é fazer uma análise panorâmica, sem a intenção de esgotar qualquer assunto aqui mencionado, de um processo que tem decorrido por quase duzentos anos e que, apesar da evolução dos estudos acadêmicos na Amazônia, parece ser incompreendido ou ignorado – inclusive pela comunidade acadêmica. Trata-se de um esforço preliminar para desnaturalizar o que entendemos como natural, para combater os silêncios, para construir uma perspectiva realmente amazônida sobre a Amazônia, sobre a colonialidade contínua a que estamos imersos e, principalmente, para provocar a inquietação, sugerindo a necessidade de construirmos uma nova perspectiva sobre o nosso passado, presente e, sobretudo, sobre o nosso futuro.

Portanto, buscaremos apresentar os aspectos mais gerais da formação histórica e política da Amazônia, com o intuito de compreender estes processos de incorporação e integração da Amazônia ao Brasil. Para iniciar a discussão sobre a incorporação, faz-se necessário uma pequena retomada do processo de construção geral da Amazônia, definindo-a a partir da experiência histórica concreta.

Incorporação

A primeira coisa que precisamos dizer é que Amazônia também tem história – esta afirmação simples pode causar espanto e dúvidas em muita gente. E mais do que ter uma história, esta história não se confunde com a história do Brasil ou com a história das nações indígenas da América. A história da Amazônia é ligeiramente diferente da história do Brasil – talvez este seja um dos motivos que a faz ser ignorada ou abordada de forma extremamente superficial no decorrer do estudo da História Nacional.

História da Amazônia diz respeito diretamente ao processo que se iniciou com a implantação do domínio colonial pelos europeus na região, pois foi a partir deste processo que se formulou a sociedade ocidentalizada da Amazônia, do período da colonização e do tempo presente. Portanto, em grande medida é a história do Estado do Grão-Pará, tendo início efetivamente em 1616, a partir da instalação da presença fixa portuguesa no extremo norte da América portuguesa, adentrando, na verdade, em territórios oficialmente pertencentes à Espanha naquele momento. A experiência colonial na Amazônia percorreu uma trajetória própria, construindo dinâmicas históricas específicas da região, embora não alheia certamente do contexto geral da colonização europeia do continente americano.

A coroa portuguesa criou duas colônias no continente americano: o Estado do Brasil e o Estado do Grão-Pará. Embora o conhecimento deste fato tenha se disseminado progressivamente, inclusive na educação básica, trata-se de um dado ignorado por parcela significativa da nossa sociedade e população. Esta região, que aqui denominamos neste momento como Grão-Pará, teve uma nomenclatura oficial que variou ao longo dos séculos XVII e XVIII. Logo, Grão-Pará é usado com a finalidade de simplificar as nomenclaturas mais extensas, cormo Estado do Grão-Pará e Maranhão ou Estado do Grão-Pará e Rio Negro, sendo possível também usar o termo Amazônia, embora este tenha surgido somente no século XIX.

A colonização no Grão-Pará seguiu padrões ora observáveis em outros espaços coloniais, ora exclusivos da região. Mas são bastante evidentes as distinções entre os sistemas coloniais das duas colônias portuguesas. Enquanto no Brasil a sociedade colonial em larga medida se sobrepôs às populações indígenas, seja por genocídio direto ou indireto, seja somente pela superação quantitativa proveniente da imigração, dentre outros fatores, na Amazônia a sociedade colonial era essencialmente indígena, mesmo que a maior parte desta população já tivesse sofrido o processo da destribalização. Ou seja, a presença indígena, tapuya ou mestiça, na sociedade ocidentalizada, por muito tempo permaneceu hegemônica em relação aos demais grupos que também estiveram presentes na região. Ainda hoje, mesmo com a população indígena etnicamente reconhecida sendo extremamente reduzida e tendo ocorrido massivos processo de imigração, a larga maioria da população da Amazônia apresenta uma evidente influência (cultural ou genética) indígena, expressa inclusive na fisionomia. A colonização na Amazônia assumiu mais um caráter de expansão e ocupação militar e religiosa do que de estabelecimento de uma economia agroexportadora, tendo a força de trabalho negra como base, na proporção observada no litoral brasileiro.

Fazemos esta breve retomada porque podemos ser levados a pensar que a unidade nacional brasileira, a sua configuração territorial e a presença da Amazônia no Brasil provém da colonização portuguesa, como uma herança adquirida após a independência de 1822. Mas é preciso clareza sobre esses detalhes, sobre estes dados tão simples, mas que são ignorados pela larga maioria da população e pela sociedade oficial. A Amazônia, antiga colônia conhecida como Grão-Pará, foi um estado colonial português autônomo, sem relação política com Brasil durante toda a época colonial. Esses dois séculos de autonomia em relação ao Brasil resultou em duas sociedades drasticamente diferentes na primeira metade do século XIX. Isto demonstra que afirmações como “estamos no Brasil desde 1500” são infundadas e muito menos é possível pensar nacionalidade ou identidade brasileira na Amazônia em 1823 – na verdade nem nas demais regiões do Brasil em grande medida.

Quando acontece a independência do Brasil e fundação do Império em 1822, o Brasil não existia: nem como unidade territorial e muito menos como nação. Mesmo nas regiões que compunham o estado colonial do Brasil a noção de unidade-identidade brasileira era muito vaga ou inexistente. Após a fundação do Império se inicia um efetivo esforço para construir a unidade territorial. Dessa forma, as demais capitanias ou comarcas que faziam parte do Estado do Brasil passaram pelo processo de “adesão ao Império”, que na verdade na maioria dos casos se tratou de uma anexação forçada. Mas existe uma significativa diferença entre a “adesão” de uma região como a Bahia ou como São Paulo e a “adesão” do Grão-Pará. As demais regiões faziam parte do Estado do Brasil praticamente desde o início da construção da colônia, enquanto que o Grão-Pará era um outro Estado colonial, ao invés de uma comarca ou capitania brasileira. E a ausência de vínculos era tão grande que mesmo alguns anos  após a anexação, o contato entre as cidades de Belém e Rio de Janeiro permaneceu extremamente reduzido, quase inexistente se comparado com as relações que existiam entre Belém e outros portos da Europa e da América, especialmente na região caribenha. Curiosamente, existe uma tendência por parte da historiografia brasileira em considerar que a unificação das duas colônias se deu em 1774, ou após a criação do Reino Unido do Brasil, em 1815. Mas essa tendência parece ignorar o grau de desconexão existente entre a Amazônia e o Brasil e a historiografia amazônida tem se esforçado para superar a perspectiva unilateral brasileira convencional.

A Amazônia começa a fazer parte do Brasil em agosto de 1823, com o episódio que ficou conhecido como “Adesão do Pará”. Tratou-se uma anexação negociada com a classe política de Belém que foi coagida a aderir ao Império pela ameaça de bombardeio e bloqueio. Logo, a “adesão” não foi realmente uma adesão. No Grão-Pará havia partidários da adesão ao Brasil, mas a anexação aconteceu à revelia da vontade local. Estes partidários, na verdade, almejavam mais a transformação social do que a participação do Império do Brasil a priori, pois antes aderiram à revolução do Porto. Houve até mesmo quem vislumbrasse adesão à revolução pernambucana de 1817. O trágico episódio da adesão (anexação) ao Brasil precedeu uma série de outras tragédias a curto, médio e longo prazo na região.

Ainda em 1823 uma revolta popular resultou num episódio que ficou conhecido como Massacre do Brigue Palhaço. Foi uma revolta desdobrada da anexação onde os revoltosos, que se levantaram contra os portugueses de Belém, foram aprisionados no porão de um navio e mortos por asfixia com cal virgem. Forram estas 252 mortes que inauguraram a ordem imperial brasileira na Amazônia. Este massacre gerou um grande trauma para a população que ano após ano relembrava o acontecido – o mesmo ressentimento gerado pelo episódio em questão acabou por ser vinculado à Cabanagem.

A partir de 1823 os conflitos sociais e políticos se acirraram no Grão-Pará e a tirania dos presidentes enviados pelo império e sua negligência com as demandas da província causaram frequentes revoltas e agitações, principalmente em Belém. Esta primeira fase de afirmação da ordem imperial brasileira na Amazônia culminou na eclosão da Cabanagem em 1835, a maior guerra popular ocorrida no Brasil. Esta guerra teve início em Belém no dia 7 de janeiro, com a tomada do poder politico pelo exército cabano, formado pela população pobre da Amazônia – índios, mestiços e negros – e alguns membros da elite, que logo abandonaram o movimento em razão da radicalização. Principalmente após a retomada de Belém pelas forças legalistas, a guerra se alastrou por todo o vale amazônico, subindo os rios da região até as fronteiras com os países vizinhos, resistindo até 1840, quando houve a rendição definitiva dos cabanos. Os 252 mortos em 1823 se transformaram em aproximadamente 30 mil com a repressão à cabanagem – a reafirmação da ordem imperial brasileira na Amazônia.

A reafirmação da ordem brasileira, após sua maior contestação, teve altos custos para a população do Grão-Pará, com uma mortandade jamais vista e com prejuízos materiais e imateriais incontáveis. Dessa forma, a Amazônia passou a fazer parte do Brasil. Desde a Cabanagem, os amazônidas jamais puderam reunir forças para mais uma vez contestar a ordem imposta de fora pra dentro. Pelo contrário, a partir daí se inicia a fragmentação e o enfraquecimento empreendido pelo Estado através da divisão territorial e política. E afirmação da ordem nacional brasileira também implica em afirmação moral e ideológica sobre o povo amazônida, que tem suas implicações na cultura e na forma como o povo percebe a si próprio. Assim se inicia o processo de imposição da nacionalidade brasileira na Amazônia.

Ao contrário dos demais países da América, que surgiram através da luta intensa contra o colonialismo, tendo ampla participação popular nas guerras e grandes movimentações espaciais, o estado brasileiro independente surge mais como uma continuidade do que como uma ruptura. Seu processo de independência não foi empreendido com a participação da população e sua unidade não foi construída pela vontade dos povos aglomerados na unidade nacional. O Brasil surge como uma costura de povos, somente a partir do segundo reinado é que se inicia de fato o processo de construção da nação brasileira, da nacionalidade que deveria promover a unificação e integração do país.

Para um amazônida do início do século XIX, a anexação ao Império pode ter sido sentida de forma muito diferente do que o foi para um mineiro ou para baiano, em razão da longa trajetória colonial. Na verdade nem a língua portuguesa era falada pela população comum, que até a segunda metade do século XIX tinha o nheengatu (Língua Geral da Amazônia) como língua franca e hegemônica. A língua portuguesa somente se torna hegemônica com a chegada massiva de imigrantes nordestinos. Do ponto de vista político, a adesão a um Império unitário significou uma significativa perda de poder político e sobre o território para as elites locais, que passaram ver a província ser governada por “estrangeiros” desconhecidos.

Obras tiradas do famoso “Spix & Martius”. O botânico alemão Carl von Martius, o zoólogo J. B. von Spix, são considerados uns dos maiores cientistas a explorar o Brasil no século XIX. Reproduzido nos livros “Brasiliana Itaú”, à páginas 178-181.

De toda forma, a anexação do Grão-Pará ao Brasil não significou a ruptura com o colonialismo e a superação das contradições sociais montadas pela experiência colonialista – não foi, portanto, uma independência. A incorporação da Amazônia marcada pela continuidade da condição colonial e pela conversão do colonialismo português pelo colonialismo interno brasileiro. O episódio de 1823 significou uma troca de metrópole, de Lisboa para o Rio de Janeiro. A continuidade desta condição colonial se traduz na lógica da relação estabelecida entre a Amazônia e o Brasil, e posteriormente, na forma como o estado nacional vai perceber e atuar sobre este território. Na verdade, mais do que uma troca de metrópole ou conversão, o que ocorre é um acirramento da exploração colonialista, que ganhou proporções muito maiores e trágicas na Amazônia nas últimas décadas do século XX, a partir da ditadura militar. É justamente nestas últimas décadas que um estado nacional, o estado brasileiro, consegue definitivamente implantar um regime de exploração colonialista na Amazônia, em proporção muito maior que a sonhada pelos portugueses.

A continuidade da colonialidade na Amazônia não foi marcada somente pela relação de subalternização empreendida pelo estado brasileiro. Na verdade a estrutura social permaneceu intacta quando houve a anexação do Grão-Pará. Como não houve uma guerra patriótica, como nos países vizinhos, não houve ruptura ou transformações mais profundas na hierarquia social e na distribuição das propriedades. Em larga medida, os portugueses permaneceram no poder – visto que o estado brasileiro foi fundado por portugueses que não viam Portugal como uma nação opressora, como aconteceu na América espanhola. A própria intelectualidade do Império tentou reforçar a perspectiva da independência pacífica, sem rupturas com a pátria mãe.

O processo de incorporação do Grão-Pará, além da marca da continuidade, também foi marcado pela intensificação dos conflitos sociais internos e intensificação da repressão e da violência. Assim como no período colonial português, estes processos de anexação e reafirmação da ordem nacional brasileira na Amazônia são marcados pela violência; às vezes individual, às vezes coletiva; Violência que nem sempre foi física, mas também simbólica, moral e psicológica – o que é intrínseco ao colonialismo e à colonialidade.

Além das perdas materiais e das perdas humanas, a incorporação da Amazônia ao Brasil também se traduz em perda cultural, especialmente a partir do segundo reinado, quando a intelectualidade brasileira se propõe a construir o Brasil, a imagem do país e da nacionalidade – marcada pelo eurocentrismo e pelo racismo – e a própria história nacional. E é esta ideologia da nação brasileira que começa a ser irradiada do centro, do Rio de Janeiro, para as periferias. Para além da imposição da nacionalidade, o processo de repressão à Cabanagem e de enquadramento da população amazônida tiveram um efeito traumático que resultou também desmoralização da sociedade formada por índios, mestiços e negros. Estes processos e a divisão do Grão-Pará em duas províncias – Amazonas e Pará – contribuíram igualmente, sobretudo no ocidente, para a perda do vínculo com o próprio passado. Logo, sem a consciência histórica, a consciência cultural e a autoconsciência do povo enquanto povo ficam gravemente comprometidas.

Integração

Como vimos, a Amazônia foi anexada ao Brasil em 1823. O Estado do Grão-Pará passou a ser uma província de um império unitarista, onde o poder central tem um poder muito maior sobre suas subdivisões do que num regime federalista. Desta forma o próprio imperador do Brasil articulava o governo das províncias através dos presidentes que eram nomeados para exercer o cargo em qualquer província. Assim o Grão-Pará passou a ser governado diretamente por brasileiros de outras províncias e às vezes até mesmo por portugueses.

Vale lembrar que as noções de identidade ainda são significativamente vagas para este período. Logo os adjetivos como “brasileiro” ou “amazônida” são usados neste momento mais como uma referência geográfica do que identitária. Além disso, no Grão-Pará, assim como nas regiões da colônia brasileira, os homens que participavam do jogo politico da sociedade se consideravam portugueses da América – ou portugueses do Pará ou portugueses de Belém e assim sucessivamente.

Mas quando finda o Império do Brasil, também se encerra o unitarismo do esta-do. O federalismo da primeira república significou uma significativa “retomada” do poder para a classe politica da região, atendendo aos anseios pela autonomia administrativa. Mas o contexto do advento do federalismo era ligeiramente diferente do período da anexação: agora não existia mais o Grão-Pará. Este fora dividido em duas províncias em 1850, Amazonas e Pará, em razão da necessidade de o Império fortalecer sua presença no ocidente amazônico diante das ameaças de invasão da região.

A divisão teve um significado ambíguo para a Amazônia, pois ao mesmo tempo em que a elevação da comarca à condição de província teve resultados relativamente positivos, também serviu para impedir a formação de uma consciência amazônida de identidade, história e cultura comum e compartilha. A cisão da província dividiu um povo que estava em formação há mais de duzentos anos (sem considerar a herança indígena milenar), que tinha uma língua própria, o nheengatu, e que tinha na guerra da Cabanagem experimentado uma unidade de luta para enfrentar as forças estrangeiras – a guerra também constrói identidades. Essa divisão teve consequências mais trágicas (em termos de consciência) no Amazonas, ao passo em que a quebra do vínculo com o Pará não foi somente política: o amazonense desvinculou-se do próprio passado. Essa ruptura com o passado determina a forma como um amazonense (ou depois um roraimense) se enxerga e como enxerga a Amazônia.

O regime federalista, ao conceder autonomia aos estados, em grande medida contribuiu para viabilizar a continuidade da unidade nacional construída pelo Império, visto que atendia significativamente aos interesses e demandas das elites particularistas estaduais. A concessão de autonomia aos estados amortizou as tendências centrífugas regionais, mais evidentes durante o período regencial, evitando novas contestações sérias da unidade nacional e, consequentemente, evitando sua fragmentação, como aconteceu na América hispânica. Na verdade, juntamente com o desenvolvimento cada vez mais desproporcional entre as regiões, os estados das regiões mais periféricas estariam gradualmente em maior desvantagem e com menor chance para promover um movimento de ruptura com a unidade nacional. A integração política, ao mesmo tempo em que reforçou indiretamente o poder e a presença do estado nacional na Amazônia, serviu também para aumentar a dependência e a subalternização dos estados à união. O federalismo também pode ser percebido como uma estratégia desresponsabilização do Estado sobre as unidades federativas, especialmente nos estados mais pobres, pois ao mesmo em que dava maior liberdade para a governança local, deixava o estado mais desassistido – podendo ser culpabilizado pela sua pobreza ou fracasso diante dos estados que prosperavam.

No contexto federalista, da primeira República, acontece a maior expansão territorial da Amazônia desde o tratado de Madri. O desenvolvimento da economia gomífera e a massiva imigração nordestina que avançavam para o oeste, resultaram na ocupação de terras até então pertencentes à Bolívia. A consequência desse processo foi a anexação da região que hoje corresponde ao estado do Acre e ao sudoeste do Amazonas,em 1903, após um conflito que, antes da anexação ao Brasil, permitiu o surgimento da República Acreana, proclamada duas vezes.

Dentro do regime republicano, o Estado Novo instaurado por Getúlio Vargas pode ser entendido como uma ruptura com o federalismo da primeira república, retomando características unitárias – como no período imperial. Com o objetivo de empreender uma verdadeira unificação da nação – que após cem anos da independência ainda se encontrava fragmentada – Vargas promove uma intensa campanha para construir e fortalecer a nacionalidade brasileira e combater as identidades regionais. É neste período que a ideologia nacional se instala efetivamente na Amazônia – período, portanto, de integração ideológica. Ainda durante a vigência do Estado Novo, no contexto da segunda guerra mundial, acontece nova fragmentação territorial na Amazônia com a criação dos territórios federais do Amapá, Rondônia e Rio Branco (Roraima) em 1943. Estes territórios passaram a ser administrados diretamente pelo governo federal.

A partir de meados do século XX, a Amazônia começa a se configurar progressivamente como um problema para o estado nacional – como apontavam os intelectuais brasileiros desde a segunda metade do século XIX. Dessa forma, vemos as primeiras medidas do governo nacional para lidar com a Amazônia enquanto região. Mas a ação do Estado só começará a ser mais efetiva a partir da ditadura militar. O slogan “integrar para não entregar” sintetiza bem a intenção dos governos militares em empreender um verdadeiro programa de colonização e integração infraestrutural da Amazônia ao Brasil. Com os governos militares o integracionismo brasileiro se intensifica de forma nunca vista anteriormente. É neste momento que se inicia a montagem de uma verdadeira estrutura colonialista de exploração econômica e ocupação territorial.

Não pretendemos abordar aqui as consequências trágicas que o integracionismo brasileiro promoveu na Amazônia. Convém ressaltar que o discurso desenvolvimentista, configurado como o discurso do interesse nacional pelo progresso, serviu e continua a servir para justificar a imposição dos grandes projetos nacionais de desenvolvimento, que até hoje tem produzido subdesenvolvimento e prejuízos ambientais e sociais na região norte. Pra piorar, tanto o integracionismo e este desenvolvimentismo não ficaram restritos ao período da ditadura militar (na verdade nem foram invenção dos militares), eles continuam ativos até hoje. Mesmo nos governos supostamente progressistas o que se vê é a continuidade. Foi assim que a Amazônia brasileira se constituiu historicamente dentro da unidade nacional e os danos e prejuízos deste processo não ficaram restritos ao passado, pois fazem parte também do tempo presente.

O nacionalismo brasileiro, na medida em que possui uma face progressista diante do contexto internacional quando assume um caráter anti-imperialista, também possui uma face reacionária diante das contradições e desigualdades regionais internas do Brasil. A própria construção e manutenção da unidade territorial foi conquistada através da repressão violenta de todas as tendências e forças centrífugas da América portuguesa, junto da imposição da ideologia da nação brasileira, igualmente teve caráter autoritário sobre os povos periféricos do Brasil, visando suprimir as identidades regionais. Como este tipo de processo sempre pesa mais para o lado mais fraco, a Amazônia foi a região que mais sentiu o peso da construção da unidade nacional – para não falar dos povos indígenas, muito mais frágeis do que o estado e o povo amazônida.

Significados da brasilidade

Esta discussão sobre o processo de incorporação e integração da Amazônia ao Brasil, além de nos ajudar a ter uma compreensão mais abrangente e geral sobre os próprios processos de formação de identidade nacional, nos ajuda principalmente a refletir sobre os seus custos e significados mais profundos para os amazônidas hodiernos.

Como foi dito no início, trata-se de um esforço para desnaturalizar noções e imagens que temos como naturais por termos, na Amazônia, uma consciência histórica muito vaga ou totalmente inexistente (o que tem mudado gradualmente). Uma dessas naturalizações diz respeito à presença da Amazônia na unidade territorial e nacional brasileira. Mas como ficou claro, a Amazônia só passa a fazer parte do Brasil em 1823 a partir da sua anexação imperial. Outra naturalização diz respeito à nacionalidade brasileira na Amazônia. Sem que se tenha uma compreensão básica sobre os processos de anexação e integração a tendência é que um amazonense, por exemplo, entenda a nacionaidade brasileira na Amazônia como natural e perene, como uma herança direta da colonização portuguesa, ou como se fôssemos brasileiros desde 1500. Na verdade, como vimos brevemente neste trabalho, a nacionalidade brasileira é também uma construção histórica (como toda nacionalidade), mas a sua expansão para a Amazônia foi significativamente diferente do que foi a expansão para as outras regiões que faziam parte do estado colonial brasileiro.

Falar sobre a brasilidade, sobre a construção da nacionalidade brasileira, na Amazônia demanda justamente a consideração desses processos de incorporação e integração e suas implicações diretas e indiretas, de curto e longo prazo. Tanto processos como a repressão à cabanagem, quanto a gradual inserção da Amazônia no jogo político e econômico do país contribuíram para a instalação da nacionalidade brasileira na região, bem como para suprimir a possibilidade do desenvolvimento de uma consciência nacional amazônida. Afinal, se povos como os catalães ainda no século XIX podiam contestar a legitimidade da soberania espanhola sobre a Catalunha e afirmar a identidade catalã, mesmo que esta tivesse sido incorporada à Espanha há muito mais tempo que a Amazônia ao Brasil, por que os amazônidas, com mais tempo de desconexão do que de anexação com o Brasil, não poderiam também formular uma consciência nacional amazônida – ou ao menos uma consciência cultural regional mais forte, integrada e sólida?

O que aconteceu com a sobreposição da nacionalidade brasileira na região foi também uma amputação cultural e identitária. Além da absorção de uma identidade nacional forjada de fora pra dentro, houve a progressiva negação do que vinha da própria terra. Talvez o caso mais significativo seja o abandono da Língua Geral, onde um dos fatores para o declínio da língua foi justamente a negação do que vinha da própria terra e remetia ao passado indígena, que deveria ser esquecido. Por outro lado a fragmentação do Grão-Pará reduziu a cultura e a identidade amazônida, que já estavam em formação há mais de duzentos anos em culturas e identidades provinciais/estaduais. E uma das consequências mais lamentáveis dessa amputação são as rixas e rivalidades entre amazonenses e paraenses, populações que compartilham a mesma unidade histórica, linguística, cultural e etc. Felizmente isso não é algo generalizado (mas realmente existe, como uma consequência da divisão).

De qualquer forma, a instalação da identidade brasileira foi bem sucedida, sobretudo em meados do século XX, onde a sociedade amazônida estava cada vez mais integrada à vida política e econômica nacional, embora sempre de forma limitada. O fato é que a aceitação da nacionalidade foi útil para a manutenção da ordem estabelecida pelo processo de incorporação, evitando que a contestação ganhasse mais uma vez tendências à desagregação nacional. Na Amazônia isso se traduz na aceitação da relação endocostocostalista ou neocolonialista, que além de ser percebida de forma bastante vaga pela população, parece insuficiente para promover a contestação que ponha em risco mais uma vez a unidade territorial. Mas a colonialidade faz parte da realidade amazônica, mesmo que seja percebida de forma vaga. Esta colonialidade contínua não é mais jurídica como no período da colonização portuguesa ou mesmo no período imperial, visto que hoje os cidadãos e os estados estão em um regime de igualdade – ao menos na lei. Mas é econômica, infraestrutural, ideológica e moral. Ela é intrínseca à ação do estado nacional na medida em que este impõe os grandes projetos nacionais de desenvolvimento e integração na região à revelia das populações locais e dos povos indígenas, onde o interesse nacional prevalece sobre o interesse regional/local.

Este é o preço que pagamos pela adesão ao Império. E é o preço que continuaremos a pagar enquanto não houver uma verdadeira descolonização da Amazônia. Caso contrário, permaneceremos a pagar muito caro pela continuidade da nossa condição de subalternidade, afogados na colonialidade e incapazes de reagir e reverter esta situação de forma efetiva.

Considerações finais

Propor uma abordagem humanizada e descolonial sobre a Amazônia não significa negar as questões ambientais. Mas é antes de tudo um combate aos graves estigmas produzidos pela relação endocolonialista estabelecida no processo de anexação da Amazônia e integração à nação. Contudo, falar em descolonização da consciência histórica e cultural popular na Amazônia demanda antes de tudo de um esforço da própria comunidade acadêmica para construir novos parâmetros interpretativos para Amazônia. Isto para que a Amazônia seja cada vez mais amazônida (e não amazônica), compreendida de dentro pra fora e não ao contrário, como tem sido desde o século XIX. Construir uma amazonidade pode ser a única alternativa realmente eficiente para a superação real e definitiva dos paradigmas da subalternização e do colonialismo – para que também a floresta amazônica sobreviva. Falar em amazonidade é vislumbrar novas possibilidades no horizonte, mesmo que distante, que estejam além da perpetuação da colonialidade.

 

Julyan Machado Ramos é graduando do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Imagem em destaque – mapa do Grão-Pará feita para o livro “Em Tempos Cabanos” (2013), de Antônio Pinheiro Cabral. Arte: Filipe Baratta.

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