O coronavírus e a linguagem da natureza

Nossa arrogância nos afastou da natureza. O andar de cima imaginava-se a salvo em sua consciência de condomínio para abusar da natureza e vampirizar a vida e o trabalho dos subalternizados. Mas a natureza, por meio do coronavírus, parece agora dar ao andar de baixo o poder de manifestar a totalidade degradada para a qual a casa grande sempre torceu o rosto. A natureza pode falar em sua pedagogia da dialética pelo avesso. É como se por meio de um vírus o desdenhado o conceito de luta de classes , inclusive por setores da esquerda, reabilitasse seu potencial analítico.

O coronavírus me fez lembrar de Gadamer (1900-2002, isso mesmo, sua vida atravessou três séculos) ao reconhecer que o auto-objetivante é a doença e não a saúde. Mas como o pior faz parte da lógica da cultura, a doença civilizacional se naturalizou de tal forma que parecia impedir a objetividade da afirmação gadameriana. Quantas vezes, diante de consciências adoecidas pelo ódio à razão, havia insistido Brecht em sua pedagogia do distanciamento (não social, no caso): peço com insistência, não digam nunca: ISSO É NATURAL.

Estranhamente, fomos obrigados, todos – talvez ainda não – a nos ver, a nós e aos outros, pela mediação de um vírus e não, como seria esperado, pela medida cognitiva da cultura construída pelo ser social. O “evento” coronavírus tem pouco de evento. Resulta do sociometabolismo da produção capitalista. Esse abrangente e intenso padrão sociometabólico de produção e consumo preparou a necrocolheita do coronavírus.

E mais virá do pior. O Mouro de Trier, bem antes da emergência da questão ambiental, assinalava que o ser natural é o nosso corpo inorgânico. Toda relação com o ser natural é relação com o ser social. A natureza, a quem a cultura moderna ocidental tapou os ouvidos, grita agora por si, pelos pobres, por todos, por meio da linguagem de um vírus. Não resisto a dar voz a Walter Benjamin em sua Origem do drama trágico alemão ao reconhecer que, se lhe fosse concedida o poder da linguagem, a natureza inteira por-se-ia em lamento.

Mesmo sem estatuto teórico para acrescentar conteúdo à sentença benjaminiana, e com a devida reserva, não reluto em dizer – e para a alegria do autor das Teses sobre a história, penso – que a natureza, rompendo o regime de silêncio e de heteronomia que lhe impôs a arrogância da cultura, recuperou agora ela mesma o poder da linguagem, ainda que por estruturas gramaticais coronaviranas. De qualquer forma, digo, impôs um silêncio inesperado à arrogância financeira da linguagem do capital. Impôs um freio emergencial à locomotiva capitalista que, para concluir com Walter Benjamin, não vai morrer de morte natural.

 

José Alcimar de Oliveira é Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas. Teólogo sem cátedra e filho dos rios Solimões e Jaguaribe.

 

A imagem em destaque é um trabalho de Fabrício Vinhas, designer e diagramador da Amazônia Latitude.

 

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