“A natureza está secando”: quilombo no Marajó vive impactos do arrozal e clima de violência
Comunidade de Remanescentes do Quilombo Gurupá possui mananciais secos e convivem com agrotóxico utilizado nas fazendas do agropecuarista Paulo César Quartiero. Na fotografia, a paisagem da rizicultura.
Esta reportagem foi publicada originalmente no site Amazônia Real. Você poe conferir o texto original clicando aqui.
Cachoeira do Arari (PA) – Vida e água são praticamente sinônimos. Se é certo que a água rege a vida em todos os locais do mundo, no caso do Arquipélago do Marajó, no Pará, a afirmação parece ter outro grau de concretude. No conjunto de ilhas incrustado entre a foz do rio Amazonas e o Oceano Atlântico, marés, chuvas e períodos de estiagem determinam todos os aspectos do viver. A tal ponto que Rosivaldo Moraes Correa, professor de matemática na escola da Comunidade de Remanescentes do Quilombo Gurupá, em Cachoeira do Arari, um dos 16 municípios localizados no Marajó, fala em uma ditadura da água. A expressão é referência ao livro do padre italiano Giovanni Gallo (1927-2003), “Marajó – a ditadura da água”, que viveu parte de sua vida no arquipélago. Hoje, porém, os fluxos de água ao redor do município de Cachoeira do Arari estão impactados por um agente externo, capaz de tudo abalar: água envenenada pelo uso intensivo agrotóxico das fazendas, fuga de animais e a até então inconcebível seca de igarapés acompanham uma severa transformação do Marajó em um polo de rizicultura.
Rosivaldo explica o ciclo das águas, regido por duas forças principais: as marés, que ditam diariamente a possibilidade de locomoção entre as casas, realizável apenas de barco; e as estações do ano, marcadas pelo alto índice pluviométrico no inverno chuvoso e um verão seco.
Em linha reta, apenas 71 quilômetros separam Cachoeira do Arari da cidade de Belém, capital do Pará. Mas a viagem é longa e envolve uma tortuosa travessia de balsa, que pode durar três horas, entre Belém e Salvaterra, município vizinho à Cachoeira do Arari. Até poucos anos, só se chegava ao quilombo de barco. Hoje existe um ramal com acesso pela estrada que liga Cachoeira do Arari à Salvaterra. Antes da chegada à sede do Município, envereda-se por um ramal, atravessando plantações de arroz e descampados onde são criados búfalos de maneira livre, muitas vezes adentrando a estrada – o que demanda cautela do condutor.
Pouco a pouco a vegetação se transforma. A savana vai ganhando densidade, até chegar ao território quilombola, cercado por floresta densa e açaizais. Na parte do quilombo ao redor do rio Gurupá, existe uma área de terra firme onde moram algumas das 850 famílias que compõem o quilombo. Ele ocupa uma área de 11 mil hectares, divididos em sete setores, e que formam uma única comunidade. Para além desta área de terra firme, há também uma região de várzea fértil para os açaizais, que se estende pelo rio Arari e seus belos igarapés. São cursos de água sinuosos, cercados por árvores inclinadas, que pendem em direção ao rio.
Os arrozais impactam a vida no Quilombo Gurupá desde o ano de 2010, quando o agropecuarista Paulo César Quartiero chegou à região para expandir seus negócios de arroz. Segundo os quilombolas, os impactos são muitos, e possuem várias facetas. O agropecuarista e político gaúcho, para escoar sua produção, construiu um porto no território reivindicado pelos quilombolas, sem que estes fossem consultados. O arrozal, por si só, atrai patos e marrecos, que deixaram o território do quilombo. A migração dessas aves influenciou tanto o ecossistema quanto a alimentação de seus moradores: além de terem perdido uma importante fonte de proteína – o pato é um dos elementos tradicionais da culinária paraense – fugiram seus predadores. Para que cresçam os arrozais e se evitem as pragas, Quartiero utiliza nas lavouras agrotóxicos que chegam ao quilombo pelo fluxo dos rios. Por fim, para irrigar as plantações, a água da foz do Rio Arari é retirada, influenciando na reprodução dos peixes e secando os igarapés. Também o açaizal, principal fonte de renda para os quilombolas, começou a secar, sem que estes compreendam os motivos de tal mudança.
“Nós estamos na foz do rio Arari. Com relação à rizicultura no município de Cachoeira do Arari, com a chegada do Quartiero, que tem empreendimento colado com a sede do município, nas margens da rodovia PA-154, aí vocês podem dizer: ‘está longe do território, não influencia’. Nós acreditamos que influencia. Direto”, afirma Rosivaldo Correa, referindo-se ao conhecido ruralista que encabeça a produção da monocultura de arroz na região.
A reportagem da Amazônia Real visitou a Comunidade Quilombo Gurupá na primeira quinzena de janeiro deste ano. Rosivaldo denunciou o impacto do uso de agrotóxicos no lugar, uma realidade que está longe de ser restrita ao quilombo, e que assola pequenas comunidades tradicionais da Amazônia. A aplicação é “feita por via aérea. Todos os dias, quando está germinado, de acordo com o período que eles julgam necessário. Todo mundo é testemunha porque todo mundo vê, passa na PA-154. Tem vezes que já aconteceu de pessoas passarem de moto, e quando ver está todo molhado de agrotóxico”.
Ele conta também que há intenso uso de produtos químicos para secar as plantações por parte de Quartiero. Às vezes, quando vai para a cidade resolver alguma pendência, a vegetação está verde. Poucas horas depois, ao retornar ao quilombo, ela está toda seca. “Tudo isso, não tem outra palavra: é veneno”, afirma.
O professor receia que toda a água com agrotóxicos desça diretamente para o quilombo. “Em meados do inverno amazônico, a água só desce, então vêm trazendo o que tem pra lá”, afirma. Rosivaldo diz ainda: “certamente quando deságua, vai para o Arari, e nos impacta diretamente aqui”. Ele teme que, por isso, camarão e peixe, importantes fontes proteica dos quilombolas, possam estar contaminados.
Segundo o professor, ainda não foi feito um estudo aprofundado para saber o impacto dos agrotóxicos na região. O que ele sim sabe é que ninguém os consultou quanto a chegada do projeto de rizicultura. Um estudo realizado pelo Instituto Evandro Chagas, em 2013 não constatou excesso de agrotóxicos nas águas da fazenda de Quartiero. Mas não foram coletadas amostras no quilombo, território onde se concentra um grande volume de água drenada dos arrozais.
Rosivaldo Correa aponta para outro aspecto da produção de arroz. Durante o verão pouco chuvoso os rizicultores captam água do rio Arari. “Eles tiram milhões de litros de água do rio, para irrigar o arroz”. Por esse motivo, acredita ele, o Arari e seus afluentes estão secando.
“Os canais que a gente navegava, hoje já não existem mais. Na frente do território, eu cansei de ir, porque eu tinha embarcação. Nós íamos sempre para Cachoeira [do Arari]. E hoje, por onde eu conhecia o canal, já não existe mais”, afirma.
Alfredo Neto Batista da Cunha, que no início deste ano de 2020 deixou a função de presidente da Associação de Remanescentes do Quilombo Gurupá, é categórico ao falar da seca: “o impacto está sendo pra dentro do rio, e a natureza está secando de uma vez por todas”. Ele segue, correlacionando seca e diminuição de peixes e camarões: “a diminuição do camarão e do peixe. E o que nós estamos percebendo mais. O rio Laranjeira, ele era um rio tão fundo… hoje, a gente já no meio do rio vem encalhando”.
De Roraima ao Marajó
Paulo César Quartiero foi um dos rizicultores retirados da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou, em 19 de março de 2009, a demarcação do território indígena com 1,7 milhão de hectares, que havia sido decretada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2005. Com isso visava pôr fim aos conflitos e ameaças aos povos indígenas, entre eles, Ingarikó, Makuxi, Patamona, Taurepang e Wapichana, que ocorrem na região desde a década de 1970.
Quartiero, 67 anos, natural de Torres, no Rio Grande do Sul, chegou a Roraima nos anos 2000 comprando inúmeras fazendas. De 2005 a 2008, o agropecuarista foi prefeito de Pacaraima (DEM). Neste período ele foi acusado de diversos crimes contra os povos indígenas, entre eles, de que seria o mandante de tiroteios contra os Makuxi por funcionários de suas fazendas, em maio de 2008.
Os indígenas faziam um protesto pela saída imediata dos arrozeiros e foram atacados a tiros. Dez ficaram feridos, sendo três com gravidade. Quartiero chegou a ser preso poucos dias depois e passou nove dias na carceragem da Polícia Federal em Brasília, sob acusação de posse ilegal de artefato explosivo e formação de quadrilha. Foi solto poucos dias depois, e recebido com festa por admiradores e políticos simpatizantes, ao regressar a Roraima.
Ainda como político de Roraima, o rizicultor foi deputado federal, entre 2011 e 2015, pelo Democratas (DEM). Também foi vice-governador de estado entre 2015 e 2018.
Quartiero começou seus negócios no Marajó logo um ano após a desintrusão da TI Raposa Serra do Sol. Em 2010 ele comprou as fazendas Reunida Espírito Santo e Santa Lourdes por R$ 2.021.800,00, entre os municípios de Cachoeira do Arari e Salvaterra. Juntas, elas totalizam 12.580 hectares.
O agropecuarista também era proprietário de 90% da empresa Quartiero Almeida Ltda (conhecida como Acostumado Alimentos Ltda ou Arroz Acostumado), que tinha um capital de R$ 929.000,00 até 2014. Mas, conforme documentos da Junta Comercial, os quais a Amazônia Real teve acesso, ele repassou o controle da empresa para seus familiares Ericina de Almeida Quartiero, que administra os negócios da família Boa Vista (RR), e Larissa de Almeida Quartiero, advogada em Florianópolis (SC). As fazendas Reunida Espírito Santo e Santa Lourdes encontram-se em nome do filho do rizicultor, Renato de Almeida Quartiero.
Elielson Pereira da Silva trabalhou no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) por quase uma década, e chegou a conhecer 13 dos 16 municípios que compõem o arquipélago. Ele conhece bem a realidade fundiária do Marajó, apesar de não ser originário do arquipélago. Na condição de Superintendente Regional do Incra, acompanhou a chegada dos arrozeiros na região.
“Tudo indicava que a apropriação desta terra se deu de maneira totalmente ilegal, ilegítima. Você pode, se você tiver dinheiro, comprar o território do Pará todinho. Você pode, é verdade. Não há nenhum dispositivo legal ou constitucional que te impeça disso. Desde que, acima do limite constitucional de 2.500 hectares você obtenha uma autorização legislativa do Congresso Nacional. Naquele momento, em 2010, o Quartiero dizia que tinha 12 mil hectares”. Elielson questiona: “cadê a autorização legislativa do Congresso Nacional possibilitando ao Quartiero, ou a quem quer que seja, se apropriar de 12 mil hectares de terras no Marajó?”.
A posição de Elielson em 2010 foi concretizada em agosto de 2019. O Ministério Público Estadual do Pará (MPPA) conseguiu na justiça o cancelamento das matrículas das terras de Quartiero. Em nota pública, o MPPA afirma que “ao analisar a ação ajuizada pelo Ministério Público e todos os documentos apresentados pela defesa, o juiz André Filo-Creão da Fonseca concluiu que não consta no processo o momento em que teria ocorrido o destacamento desses imóveis do patrimônio público para o patrimônio particular, o que possibilitaria aos antigos proprietários, de forma regular, procederem a venda dos bens”. Clique aqui para ver a nota completa.
Elielson resume: “quando Quartiero chegou, não tinha autorização legislativa, e a terra pública não foi destinada. Não estava de nenhuma forma ancorada em preceitos legais”. Ele reclama que certos danos poderiam ter sido evitados: “você tem um lapso de tempo que são oito anos, para ter o desfecho que a gente disse lá no começo”.
A presidente da Associação dos Remanescentes do Quilombo de Gurupá, Maria de Fátima Gusmão Batista, confirma que não foram consultados quanto à chegada dos arrozeiros.
“A gente não foi consultada sobre a chegada do Quartiero, em momento algum. Ele foi ‘praí’ e comprou as terras, se apossou de lá e está até agora trabalhando. Ele não é um bom companheiro para vir e ficar aqui pro nosso lado”.
O que diz Quartiero?
Em entrevista à Amazônia Real, Paulo César Quartiero negou ter problemas judiciais com a Comunidade de Remanescentes do Quilombo Gurupá. “Eu nem sei. Aquela comunidade é longe. Quase 70km”, afirma. O arrozeiro alega que não existe nenhum tipo de intervenção ou conflito territorial: “a fazenda é de uma família centenária da região, não tem problema nenhum”.
Quando questionado sobre o uso do porto do Caracará, Quartiero defendeu-se, dizendo tratar-se de um porto público. “Lá é um porto público qualquer um usa, é um porto público que a gente usa, da comunidade”, diz.
“A situação aqui”, retoma Quartiero, “é: estamos plantando, somos a maior plantação, é nossa. Estamos plantando aí, a dificuldade é que produtor no Brasil é criminoso, é suspeito. Somos empregadores. Agora o resto é só perseguição, mas isso não é privilégio do Marajó, é em Roraima. O Brasil felizmente agora está mudando, antes quem não fazia nada era o herói o produtor era o bandido, agora está mudando um pouco”.
A “mudança” na política brasileira a qual se refere é com a eleição do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, em 2018.
A reportagem perguntou se Quartiero via mudanças para melhor ou para pior. Ele respondeu: “você acha que melhor é ficar que nem a Venezuela? Então não, estamos produzindo para ter melhor desenvolvimento. O Marajó é o município que tem o pior IDH do Brasil. Dos dez municípios com o pior IDH no Brasil três estão no Marajó, e o pior, que é Melgaço. Então nós estamos aqui contribuindo com o desenvolvimento, pagando imposto, dando emprego”.
Por fim, o arrozeiro afirmou ainda que possui “no todo, mais de cem” funcionários trabalhando em suas fazendas. Ele concedeu a entrevista no dia 27 de fevereiro.
Origem do conflito territorial
Os remanescentes de quilombo Gurupá vivem desde os anos 1970 um conflito fundiário com a fazenda que os cerca e que reivindica suas terras.
Alfredo da Cunha, agricultor e ex-presidente da associação quilombola, faz questão de contar a história da linhagem do Quilombo. Ele fala pausadamente, pontuando. Usa frases curtas, ou mesmo uma palavra, que sintetizam grandes acontecimentos do passado. Ele fecha com força a mão direita, golpeando com pequenos socos a palma da mão esquerda enquanto narra a sua história: “África. Ficou num lugar determinado. Santana. Município de Ponta de Pedras. Com o tempo determinado. Eles, os escravos, foram tão maltratados. Igual animal. Quer dizer, eles foram marcados. Com marca de ferro no seu braço. Ou aonde quer que seja”. Por isso, fugiram da fazenda de Santana. Ele exibe fotos em seu celular da visita que fez à sede do engenho. Se emociona.
Quando fugiam da Fazenda Santana, acabavam parando em outras fazendas, onde eram novamente capturados, relembra Alfredo. Por isso, um par fugiu para Gurupá. “Bom, resumindo, o que foi que aconteceu deles terem fugido. Gorou a vinda deles de Santana para Gurupá. Então hoje, o nome da nossa comunidade é Gurupá”. O par foi capturado, sua fuga gorou, não vingou: gorou o par. Daí o nome atribuído a eles mesmos: Gurupá, reivindicado pelas demais pessoas que depois fugiram da escravidão, em homenagem aos dois que foram recapturados.
É uma história que, sem dúvidas, diz respeito ao passado. Mas a frequência com que Alfredo a repete leva a crer que, de alguma forma, ela também diz muito sobre os conflitos vivenciados hoje pelos quilombolas.
Primeira presidente mulher
Maria de Fátima Gusmão Batista é a atual presidente da Associação dos Remanescentes do Quilombo de Gurupá. Primeira mulher a ocupar este cargo, ela relembra os conflitos antigos com os fazendeiros. Sua fala se encontra em um ponto em que dor e bravura não se distinguem: “o falecido Liberato Magno da Silva Castro, que se dizia ter uma fazenda na Caroba e uma na Boa Vista. Este fazendeiro se apossou da nossa área, e colocou essas duas fazendas aí. E o terreno era nosso, dos Batistas. Depois disso ele tirou o nosso povo da costa, daqui. E colocou para dentro da nossa comunidade algumas famílias, e colocou outras para outros lugares para desocupar a área e ele ficar tomando conta”.
Em meados dos anos 1970, os quilombolas que viviam nos igarapés junto ao rio Arari foram expulsos por Liberato Castro. Teodoro Lalor de Lima, o Seu Lalor, foi o único que decidiu permanecer no território. Com o passar dos anos, ele virou presidente da Associação Quilombola.
No local, tradicionalmente, cada tronco familiar ocupava um Igarapé. Esses igarapés são considerados uma área muito fértil, repleta de açaizais cultivados por décadas a fio pelos quilombolas. Eles acompanham as curvas dos cursos de água, preenchendo suas margens. Durante a época de safra, vende-se o açaí em Belém, para onde os moradores levam o fruto de barco. Na entressafra, quando se faz o manejo para garantir o bom crescimento das árvores, o principal produto a ser vendido é o palmito de açaí – com menor valor de mercado, segundo os próprios quilombolas.
O território étnico abrangia, até a retirada dos quilombolas do rio Arari, tanto este rio e seus igarapés quanto o rio Gurupá. A partir da tomada da terra por Liberato Castro, as famílias tiveram que se concentrar ao redor do Gurupá. Ficaram acossadas.
O professor Rosivaldo Correa relata que a produção da Fazenda São Joaquim Agropecuária Ltda, de propriedade de Liberato Castro dependia do aluguel anual dos açaizais para os quilombolas. A fazenda “cria gado de maneira extensiva, solta, no campo da natureza. A maior renda dele era o açaizal, que ele arrendava todo ano”, diz ele. Cobravam o que no Marajó chamam de “meia”, mas que pode chegar até a ⅔ da produção do açaizal, segundo o Procurador da República Felipe Moura Palha, do 3o ofício de comunidades tradicionais do Ministério Público Federal do Pará.
“Em 2002, nós criamos a Associação de Remanescentes do Quilombo do Gurupá, e solicitamos ao Incra o reconhecimento do nosso território”, lembra Rosivaldo. Segundo ele, em 2008, com o avanço da reivindicação de um território quilombola, o fazendeiro reagiu, e o conflito se acirrou. Foi só após o início do processo de titulação do Quilombo junto ao Incra que eles puderam retornar às áreas de onde foram expulsos nos anos 1970. Em 2011, foi a data histórica de reocupação dos igarapés do Rio Arari.
Em entrevista à reportagem, o procurador da República Felipe Moura Palha, disse que existe uma “utilização da polícia local como uma atitude de intimidação dos quilombolas”. Ele segue: “o capataz da fazenda está lá até hoje, ele usa da polícia local, da influência política local, para promover uma perseguição, uma criminalização dos quilombolas. Processos, por exemplo, de furto de açaí. Como o cara [o quilombola] vai ser acusado de furtar açaí da área dele mesmo? ”, questiona o procurador.
O martírio de Seu Lalor
O clima de violência é latente na Comunidade de Remanescentes do Quilombo Gurupá. Todo ano, na época da safra do açaí, durante o verão, ele se explicita. Desta forma, o MPF tem tomado medidas, enviando ofícios aos poderes públicos e delegado de Cachoeira do Arari para “garantir que a população tradicional quilombola pudesse usufruir da colheita, de acordo de seu modo de vida”, afirma Palha. Trata-se de uma conhecida situação de conflito ao redor do açaí.
“Medo” é uma fala recorrente no quilombo. A presença de policiais e prepostos da fazenda na mata cria uma situação desfavorável aos quilombolas; eles são facilmente observados. A vulnerabilidade é tal que quem está na mata enxerga quem está fora, mas quem está fora não enxerga quem está na mata. O estado de sítio em que vivem os quilombolas em seu próprio território por vezes ganha concretude na forma de prisões e tentativas de assassinatos.
Mas é o assassinato de Teodoro Lalor de Lima, o Seu Lalor, no dia 19 de agosto de 2013, que mais dor causa. Por se recusar, ainda nos anos de 1970, a sair da costa do rio Arari e seus igarapés ocupados por Liberato Castro, Lalor adquiriu papel importante junto aos comunitários. Doente e já idoso, foi preso e algemado no hospital – motivo de grande indignação para os quilombolas. Esteve também algumas vezes em Brasília, denunciando o que acontecia no quilombo.
Os quilombolas têm dificuldade de aceitar a explicação dada pela Polícia Civil e veiculada pela mídia paraense quanto ao assassinato de Seu Lalor. “Esse crime repercutiu, e até hoje, a gente não desvendou a morte do nosso líder quilombola”, afirma Maria de Fátima Gusmão Batista. “Pegaram um de ‘gaiato’, para incriminar, mas eu acredito que esse crime foi mandado”.
O suposto autor do assassinato foi condenado em 2015. A explicação oficial é de que Seu Lalor teria sido surpreendido enquanto estava na casa de uma amante pelo ex-marido desta.
A antropóloga Eliana Teles estava em intenso contato com Seu Lalor nos dias que antecederam seu assassinato. Ela realizou o seu doutorado com uma pesquisa sobre o quilombo. Para ela a situação toda visava desmoralizar os quilombolas, mexer com o seu orgulho.
Para Maria de Fátima Gusmão Batista, o futuro do quilombo e a tranquilidade de seus moradores dependem da regularização da terra em que vivem: “o nosso apelo é que queremos nosso título. Queremos que o governo nos ajude a ter o nosso título. Se nós tivermos nosso título em mãos, acaba essa intriga dos fazendeiros quererem tomar conta da nossa terra. Nós vamos poder trabalhar e vamos poder pedir o que a gente almeja dentro do nosso quilombo”.
A morosidade do Incra
A disputa pela terra e os modos de utilizá-la são, sem dúvidas, os maiores problemas no Quilombo Gurupá. Quem obteve as terras, e de que forma, é uma discussão central.
Em 1989 o governo estadual criou a Área de Proteção Ambiental (APA) da Ilha de Marajó pela Constituição do Estado do Pará. Dezesseis anos depois, teve início o processo de reconhecimento do Território Quilombola da Comunidade Gurupá pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 2005. Em 2010 foi emitida a certificação do território da Comunidade de Remanescente do Quilombo Gurupá.
Entretanto, o processo parou na fase da desintrusão dos posseiros e fazendeiros. O território dos quilombos não está titulado pelo Incra. “Reuniões por cima de reuniões, com o Incra, e o que eles dizem para gente: que o Estado não tem dinheiro, e que não pode fazer a desintrusão. Por isso estamos empacados com o título que não recebemos”, afirma Fátima Batista.
A disputa judicial com o fazendeiro Liberato Magno da Silva Castro e com seus herdeiros acerca do território é longa. O Procurador da República Felipe Moura Palha aponta. inclusive, que é provável que o título do fazendeiro tenha sido objeto de uma grilagem – prática histórica de apropriação ilegal de terras públicas na Amazônia por grandes fazendeiros, e que está associada ao desmatamento, expulsão de moradores locais e violência agrária.
“Nesse processo todo, a gente descobriu que o título de propriedade, que esse fazendeiro, Liberato Castro, dizia legitimar a sua propriedade na área, era um título inválido, porque não tinha o destacamento do poder público particular da área. Altos índices de ter sido grilagem. Ele também estava deslocado. Sequer era na área do conflito real”, afirma Felipe Moura Palha. “Ou seja, aquela área é da união, não é particular. Liberato Castro, o título que ele diz, é um título inválido”, completa o procurador.
Em resposta à Amazônia Real, o Incra confirmou que o “território da Comunidade de Remanescentes do Quilombo de Gurupá, no município de Cachoeira do Arari, região do Marajó, teve a Certidão de Autodefinição emitida em 21 de junho de 2010 (processo administrativo nº 01420.001132/2010-51) e foi reconhecido por decreto presidencial de 1º de abril de 2016, que “declarou de interesse social, para fins de desapropriação”. De acordo com o instituto, os imóveis rurais abrangidos pelo território quilombola Gurupá estão na fase de desintrusão dos ocupantes não quilombolas.
Segundo o Incra, há uma ação, movida em conjunto pelo órgão federal e Advocacia Geral da União (AGU) que “visa a declaração de nulidade do título de propriedade, seguido do cancelamento dos registros imobiliários e matrículas do imóvel denominado “Imóvel São Joaquim”, compostas pelas fazendas Murutucum Miry, Saparará-Miry, Igarapé da Roça, Santa Roza, Acará e Gurupá, irregularmente ocupadas pelos pretensos proprietários, uma vez que incidem em terra de domínio público federal, incluindo área pertencente ao Território Quilombola de Gurupá.”
Herdeira contesta grilagem
Consuelo Maria da Silva Castro é filha e herdeira de Liberato Castro, e foi prefeita do município de Ponta de Pedras (vizinho à Cachoeira do Arari) pelo PSDB, entre os anos de 2012 e 2016. A ex-prefeita contesta a suspeita de grilagem de terra da propriedade de sua família. “Aquela terra ali não é só do meu pai. Ela surgiu em nome do meu pai pois ele era o administrador e filho mais velho. Mas aquilo era da minha avó, que veio para a família. É uma herança para quatro filhos. Uma terra que foi comprada pela coroa, na embocadura do rio, na entrada do Rio Arari”.
Para Consuelo “ali nunca teve quilombo”. “O governo quer tomar o que tu tens, para dar a quem não tem? Então indeniza o gado que a gente tem lá, indeniza a nossa benfeitoria, indeniza parte da terra que tu estás dizendo que nem tudo é nosso”, conclui a ex-prefeita, que hoje ocupa o cargo de diretora de Desenvolvimento Agropecuário da Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca do Estado do Pará.
Em 18 de dezembro de 2018, a Advocacia Geral da União (AGU) ingressou com uma ação ordinária solicitando a declaração de nulidade do título de propriedade e de cancelamento de registros imobiliários e reintegração de posse. A ação ainda está para ser julgada pela Justiça Federal. Caso seja julgada procedente, em suma, Liberato Castro e seus herdeiros “sequer teriam direito a indenização. Porque a posse deles era posse de má-fé. Nesse processo de desintrusão (retirada), a fazenda do Liberato Castro sequer seria indenizada”, afirma o procurador Felipe Moura Palha.
Barganha de agentes públicos
Já sobre a presença dos arrozeiros vindos de Roraima ao Marajó, o procurador Felipe Moura Palha aponta as barganhas políticas de agentes públicos que permitiram a atuação deles no Marajó. “Houve acordos com autoridades políticas paraenses para que as atividades dos arrozeiros viessem para Ilha do Marajó”, diz o procurador.
Segundo Palha, o MPF alertou que na área viviam populações quilombolas e que era necessária a consulta prévia, que precisam ser levadas em consideração, e o Estudo de Impacto Ambiental. “Nada disso foi feito. Eles fizeram um processo de licenciamento simplificado para a implantação das atividades no Marajó”.
Pela sua experiência acompanhando o caso do óleo de palma na região Leste do Pará, o procurador pode observar similaridades entre os casos de implantação de monocultura na Amazônia: “a gente alertou às autoridades locais que iria acontecer, e aconteceu. O conflito dos arrozeiros com as comunidades tradicionais do Marajó é mais um capítulo do mesmo manual: de você explorar economicamente áreas de floresta com o povo da floresta dentro, e sem levar em consideração nada, ou nem a existência destas pessoas”, afirma o procurador.
Palha alerta que, embora a fazenda não esteja dentro do território quilombola, “as atividades estão”. Isto provoca impactos nas comunidades. “Não há benefício nenhum para as comunidades por conta do assoreamento dos igarapés, poluição das nascentes, este tipo de coisa”, conclui ele.
A proibição do agrotóxico
Em nota, a assessoria de imprensa do Ministério Público Federal (MPF) respondeu sobre a acusação de uso excessivo de agrotóxicos pela fazenda da família de Paulo César Quartiero o seguinte: “O MPF verificou que, em relação à atividades de rizicultura promovidas em Cachoeira do Arari (PA) por Renato de Almeida Quartiero, houve falta da realização de estudos ambientais, falta de observância das normas para a utilização de agrotóxicos por lançamento aéreo, e falta de autorização para sobreposição com comunidade quilombola para o porto por meio do qual a produção é escoada”.
Em 2013, o MPF também solicitou à Justiça, em ação civil pública, que os arrozeiros parassem de utilizar o uso do Porto do Caracará localizado em território quilombola, que cessasse a pulverização aérea de agrotóxicos, além de demandar a realização do devido Estudo de Impacto Ambiental. Em 2014, em decisão liminar urgente, a Justiça Federal proibiu o lançamento aéreo de agrotóxicos, mas “após essa decisão, o réu conseguiu obter registro no Ministério da Agricultura para o lançamento de agrotóxicos, e pediu à Justiça a revogação da liminar”, afirma ainda a nota do MPF.
A justiça obrigou os fazendeiros a realizarem o Eia-Rima (estudo e relatório de impacto ambiental). No dia 02 de março de 2019, após apelação de Renato de Almeida Quartiero, a Justiça Federal do Pará determinou o envio ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília.
A Justiça Federal não atendeu ao pedido que proibisse o uso do porto de Caracará. O MPF, segundo sua assessoria de imprensa, recorreu da decisão.
Por fim, “em 2014 o MPF ajuizou ação civil pública contra Renato de Almeida Quartiero pelo desmatamento de 132,04 hectares no interior da Fazenda Reunidas Espírito Santo sem autorização do órgão ambiental competente”.
Felipe Moura Palha faz ainda uma reflexão mais abrangente sobre a situação. Considera que “o grande erro das atividades econômicas na Amazônia, e principalmente no Pará, leva em consideração que na área não tem ninguém”.
Paisagem de um outro Marajó
Eliana Teles, pesquisadora com longo histórico de atuação no Marajó, lamenta a transformação da paisagem do arquipélago. “Os campos do Marajó, tão historicamente citados pelos viajantes europeus, que passaram nos séculos 17 e 18, aquela paisagem exuberante que eles descrevem, hoje elas estão sendo dominadas pelo agrobusiness: o arroz, em cachoeira do Arari, que pega uma parte de Salvaterra, e a soja, mais a leste, na parte noroeste da região, sendo ocupada por soja”.
A despeito da falta de estudos específicos o professor Rosivaldo afirma o que, do ponto de vista de quem vive diariamente o impacto dos arrozais, tornou-se óbvio: “não precisa ser um especialista na área para saber que nós temos um impacto direto, tanto pelo rio, quanto por terra”. “Vem o que não serve para nós”, resume ele.
Veja fotos da reportagem no Flickr.
Veja o vídeo Quilombo Gurupá na sombra do arrozal.
Esta reportagem especial da Amazônia Real foi realizada com apoio da Repórteres sem Fronteiras (RSF), que é a maior organização internacional de defesa da liberdade de imprensa, entendida como o direito humano fundamental de informar e ser informado.
Imagem em destaque – Foto de Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real