Milton Hatoum e Edyr Augusto buscam uma literatura além-amazônia
[RESUMO] Milton Hatoum e Edyr Augusto fogem do discurso local que se perde na busca de uma identidade para preencher o lugar especial do homem amazônico, defende o jornalista Ismael Machado. Hatoum trata de uma Manaus em decadência cosmopolita, que tenta resguardar os resquícios de um período áureo do ciclo da borracha, e evita cair no regionalismo simples de linguagem. Edyr Augusto tenta dar voz ao homem amazônico que está longe do imaginário ‘aquoso’ a que a literatura local costuma navegar.
O escritor e teórico Silviano Santiago se tornou uma referência ao discutir o que chamou de “entre-lugar” da literatura latino-americana. Mesmo tendo como referência o fato dessa literatura ser considerada periférica no olhar do centro anglo-saxão, ele reivindica um espaço à parte na tradição cultural ocidental.
O autor defende a assimilação da categoria da diferença como herança, forma de reivindicação e resistência. A universalidade só existe, segundo ele, nesse processo de expansão em que respostas não-etnocêntricas são dadas aos valores da metrópole.
“O texto da cultura dominada acaba por ser mais rico por conter em si uma representação do texto dominante e uma resposta a esta representação no próprio nível da fabulação”, escreve Santiago.
Esse caminho teórico, embora possa estar repleto de armadilhas, parece condizente quando se reflete sobre a questão cultural amazônica, mais particularmente a literatura. Ao longo de décadas e décadas, a Amazônia apresenta-se como um desafio à interpretação de quem busca entendê-la.
A literatura regional ainda não deu conta de suprir essa lacuna por estar quase sempre enviesada no discurso que agrada ao olhar externo: o da Amazônia exótica, primitiva, repleta de seres fantásticos, mulheres voluptuosas. Exagera-se a linguagem regionalista, ao gosto dos fregueses.
Como os atuais grupos de danças folclóricas feitos para a turistas, a literatura da Amazônia, feita por amazônidas, esbarra na dificuldade de suplantar essas armadilhas.
Ao mesmo tempo, outros olhares começam a ser reservados à região por autores de outras praças. Da mesma forma que os migrantes ocuparam espaços na floresta para a implantação de madeireiras, pastos, fazendas e grandes plantações de soja, assim estão chegando autores de fora que olham para a Amazônia em busca de novas formas de inspiração literária.
Entender o que é essa literatura que se volta para a Amazônia contemporânea a partir do olhar de múltiplos autores é também destrinchar os caminhos percorridos entre o olhar colonizador e o do colonizado.
De fato, a literatura amazônica ainda costuma ser recheada de clichês que reverberam uma espécie de “aquosidade”, como se toda a região estivesse submersa nesse universo.
Em alguns casos, abundam termos “regionais” que, antes de dar sentido ao fazer literário do escritor, surge como uma espécie de dicionário clicherizado de termos amazônicos. Em mãos menos talentosas, soam como se fossem ‘muletas’ estilísticas.
Com isso, o discurso local se perde na busca de uma identidade que consiga preencher o lugar especial que ocupa o homem amazônico em seu espaço-tempo.
Dois autores diferentes entre si, mas irmanados numa tentativa de dar conta de contar suas metrópoles amazônicas, parecem tentar fugir dessa sina: Edyr Augusto e Milton Hatoum.
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Um escritor da Amazônia
Ignorado pela Academia, mas influente nome no cenário contemporâneo da literatura urbana nacional, o paraense Edyr Augusto tenta dar voz ao homem amazônico que está longe do imaginário ‘aquoso’ a que a literatura local costuma navegar. Nele, estão concentradas algumas facetas que bem poderiam ser classificadas como pós-modernas.
O pós-modernismo se caracteriza pelo fim das metanarrativas, como sintetizou Lyotard (1987), assim como pela multiplicidade, fragmentação, desreferencialização e entropia. Com a aceitação de todos estilos e estéticas, pretende-se a inclusão de todas as culturas como mercados consumidores.
No Pará, é na literatura de Edyr Augusto que esses signos se encontram, esbarram-se, unem-se e se separam. Tudo ao mesmo tempo.
Edyr Augusto lança mão, em seus romances, de uma Belém caótica, urbana, violenta. Seus personagens são traficantes, delegados de polícia, prostitutas, meninos de rua, políticos corruptos.
Só que mesmo buscando dar conta de uma outra Amazônia que não a das lendas, da floresta, da languidez do discurso, Edyr Augusto supre a ausência de voz local no cenário literário brasileiro amazônico? Ou sua literatura é um amálgama de clichês pós-modernos que dão conta da crise da representação, onde tudo passa a ser válido?
A resposta pode ser mais complicada do que se afigura. Não há mocinhos e vilões, heróis ou heroínas nos personagens do escritor. Desfaz-se uma das premissas do modelo de romances como é comum conhecermos. A história centrada no herói ou heroína.
Edyr Augusto também se furta de construir nuances psicológicos a seus personagens. Não os explica, não os justifica, não os defende, não os acusa. As coisas são… apenas isso. É a cidade, a metrópole, em última instância, quem acaba por moldar os atos dos personagens.
Edyr Augusto dá as costas à floresta, aos rios e finca os pés no cimento, no vidro e no asfalto da principal capital amazônica. Seu olhar tenta o diálogo com outras metrópoles, que vivenciam situações e dramas semelhantes. Seus personagens podem ser migrantes, sim, paraenses advindos do interior do estado. Mas quase nada disso é fundamental para o desenvolvimento da trama.
Se Edyr Augusto busca, por um caminho tortuoso e quase solitário, fugir da “tradição” literária típica da região, o escritor Milton Hatoum segue, em Manaus, o caminho inverso, alcançando o mesmo objetivo de seu par em Belém: o de construir uma nova literatura amazônica, fincada em um olhar próprio e diferente do que nos reserva o olhar do outro Brasil, o do eixo Sul e Sudeste.
Hatoum não foge da tradição literária amazônica. Nele, não há rompimento com a estética que caracteriza a região. Sua literatura é sinuosa, como os rios da região.
Em “Dois Irmãos” (Companhia das Letras, 2000), a busca pela construção de uma identidade é feita tendo o porto de Manaus como cenário. Há no livro, assim como há também em “Cinzas do Norte” (Companhia das Letras, 2005), a figura do personagem que volta para casa, em busca de respostas a dilemas de identidade.
Ao contrário do personagem filho do fazendeiro em Marajó, de Dalcídio Jurandir, as personagens que retornam dos grandes centros às suas origens trazem incrustadas em si o que essa mudança ocasionou, gerando de certa forma um choque entre colonizador e colonizado.
Hatoum trata de uma Manaus em decadência cosmopolita, que tenta resguardar os resquícios de um período áureo do ciclo da borracha, mas evita cair no regionalismo simples de linguagem. Ao contrário, a linguagem serve como um modo de o leitor se enredar nos conflitos internos dos personagens.
Tanto Milton Hatoum como Edyr Augusto buscam a produção de novas identidades amazônicas, o que não deixa de ser uma consequência da globalização, segundo pensaria Stuart Hall.
Ora, esse efeito da globalização produz, de acordo com o pensador Hommi Bhabba, um efeito pluralizante sobre as identidades, ocasionando uma nova variedade de possibilidades e novas posições de identificação.
As identidades tornam-se mais plurais e diversas. Em alguns casos, busca-se recuperar uma “pureza” anterior, e as certezas e verdades perdidas. É o que costuma ocorrer com Hatoum. Já a literatura de Edyr Augusto indica que há a aceitação da “impureza” e da diferença.
De qualquer forma, essas identidades culturais apresentadas pelos dois autores têm algo em comum: não são fixas, mas estão em transição, num confronto permanente entre o local e o universal, o novo e o antigo, a homogeneização e a heterogeneidade.
Seriam culturas híbridas, como definido por Bhabha. Os personagens são o produto de novas diásporas, novas migrações e devem, sobretudo, aprender a lidar e conviver com essas duas identidades culturais, tentando, ao mesmo tempo, estabelecer um novo olhar, uma nova perspectiva para a voz amazônica.