Inferno ou paraíso? Amazônia sob suspeita

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A metáfora de um paraíso sob suspeita questiona a noção de Paraíso associada a região sempre de maneira dúbia ou como extremo do seu contrário: o anti-paraíso. A suspeição se origina de o fato da floresta amazônica também ser narrada com um “Inferno Verde”, como faz o escritor Alberto Rangel.

A excepcionalidade da geografia se mostra como argumento de inadaptabilidade ao homem civilizado de sobreviver no trópico úmido. Doença e clima hostil condenavam à morte todos que se aventuravam a viver na região. O caráter paradoxal outorgado à Amazônia ao longo dos séculos urge em nossos tempos uma revisão histórica — que não cabe aqui agora.

Apesar disso, o paraíso suspeito, como bem define Leopoldo Bernucci, situa-se num vórtice, um lugar de destruição contínua e natural, provocando a lenta e incansável devoração da matéria, não só do mundo vegetal, mas também do reino animal, inclusive do homem que nele habita.

Ou seja, reinterpretando Bernucci por outra janela, a do pensamento ecocrítico, este ambiente hostil natural é agravado pela hostilidade programada pela cobiça humana, nele tudo se destrói ou se transforma em biomassa ou em violência lenta, como define Rob Nixon.

Inferno Verde e paraíso suspeito se inscrevem nas relações próximas entre a literatura e a história, entre a ciência e a arte. Por isso os processos sociais e históricos são reais e imaginários; correspondem em cada cânone ou episteme a desenvolvimentos de processos de interpretação da realidade, ou seja, o contexto ficcional e científico é da mesma esfera da lógica da criação.

Navegando na fronteira entre ficção e realidade, a região amazônica torna-se pano de fundo de fabulações míticas, redentoras, fantásticas, sagradas e profanas, que narram importantes transformações regionais com autonomia imaginativa. Daí que as “vozes” da ficção são tão impiedosas quanto o discurso científico, na opinião da pesquisadora Marilene Corrêa.

O encantamento da Amazônia expressa-se como metáfora, mítica ou de deslumbramento. Não se trata de dissolver a realidade subestimando o peso do concreto sobre a imaginação, porém de destacar às múltiplas representações e sentidos que a região pode assumir na diversidade de enfoques disciplinares e de linguagens científicas e artísticas que a narram.

É assim que as vozes científicas, frequentemente associadas às reconstruções arbitrárias da realidade podem ser tão cruéis quanto as vozes da ficção; estas podem radicalizar as percepções da Amazônia até mesmo pela apreensão mágica e mítica da composição ficcional.

Nesta última, a “fabricação”, a autonomia da imaginação artística podem dissolver e reconfigurar fronteiras, sujeitos, espaços, relações natureza e cultura, reintegrar seres vivos, humanos e não humanos, sagrados, profanos em relações e fenômenos híbridos em novas relações recriadas conforme a estrutura imaginativa da obra, do autor.

Portanto, quando as vozes literárias se fazem mais impiedosas é porque essa narrativa carrega a intensidade dos sentimentos entre as populações da floresta e os invasores, o destaque ao conflito é mais nítido. Não obstante, é importante salientar que em ambas narrativas científicas e literárias são forjadas no interior de uma intencionalidade política que se justificam finalidades discursivas.

Durante uma passagem pela cidade de Tabatinga, na Tríplice Fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, observei no memorial de fundação da cidade uma inscrição de forte simbolismo: “Aqui começa o Brasil”.

A excentricidade da legenda é incômoda, já que indica a exclusão dos povos indígenas, para quem a ideia de fronteira é totalmente irrelevante e não tem qualquer sentido. Para os Tuyuka, que habitam o Brasil e a Colômbia, ou os Yanomami, no Brasil e na Venezuela, não existem limites territoriais. Logo: o que verdadeiramente significa o letreiro?

A frase também realça o contraponto de que a fronteira é o fim do mundo, remota, incivilizada, bárbara e entregue à própria sorte. Desta máxima fundacional surge a justificativa de que a região deve ser submetida ao comando autoritário (comando e controle) ou ao incentivo à exploração predatória de suas riquezas.

Outra faceta dessa narrativa origina-se da própria insígnia de Inferno Verde, que conduz ao imaginário e às práticas políticas na região a ideia de espaço liso, vazio e nadificação como motivo da violência como civilização.

Como ressalta o sociólogo Octávio Ianni, no princípio só havia natureza. Depois aparece o homem. Ambos lutam e um impõe-se sobre o outro, iguais, desiguais, desconformes. Logo o homem aparece como senhor da natureza, que não é mais a mesma do primeiro instante, mas está modificada. Ao ser apropriada, ela se transfigura.

Também o homem não é o mesmo. Ambos perderam a inocência e entraram para a História. Hoje, as marcas da violência lenta (que já não é tão lenta quanto se pensava) do ontem e do hoje permeiam toda região e deixa o futuro de humanos e não humanos em suspeição.

A indiferença e abandono atual das autoridades nacionais com a Amazônia não é novo em tempos de Covid-19. Para a autora de O Paiz das Amazonas, Marilene Corrêa, a região só serve de moeda de troca, sendo ela a feição mais imperfeita, injusta da Amazônia Lusitana. É a formação social contrária à da Amazônia indígena no sentido de que prevaleceu o ordenamento do estado colonialista como princípio que orienta a relação da Amazônia Brasileira com o Brasil.

O que se constata das presentes agruras na região impingidas pelo Covid-19 é que a Amazônia paga para ser Brasil: recebe menos do que dá em termos tributários e políticos e não consegue se inscrever nas prioridades nacionais. Como afirmam os autores Samuel Benchimol e Arthur Reis, a indiferença e a negligência são estratégias para esvaziar o território, pois assim muitos morreriam e a natureza se livraria das intervenções antrópicas.

A visão literária dos indígenas foi tradicionalmente romanceada entre a inocência e a perfeição para inclui-lo na imaginação nacional, a visão da ciência foi de estranhamento da cultura e da incerteza de sua humanidade; a visão econômica foi sempre de brutalização, entre a condição de animal, escravo ou súdito inferior. A visão literária do índio da Amazônia sempre foi ligada à dos bárbaros. Por isso ninguém estranha que o Paraíso suspeito consuma milhões de vidas.

É importante ressaltar que a materialidade política da suspeição, como aponta Bruno Malheiro, emerge na Amazônia a partir da ideia de risco a soberania que justaposto a diferença abissal daquilo que significava nação ratificam a violência como normalidade e a exceção como regra. Tal suspeição que inventou o risco e o vazio amazônicos tem no uso da força e da violência de Estado sua materialidade histórica. Os suspeitos (humanos e não humanos) parecem ter no uso da força sua única resposta.

Conjunções

Entre as diferentes narrativas contemporâneas, a concorrência entre os discursos literários e científicos desafia a inteligência sobre a realidade pela ação de descrevê-la ou de transfigurá-la. Importantes aos leitores, ambas registraram as disputas de prestígio intelectual e político em mais de três séculos de racionalização do conhecimento.

O pavor do contágio intelectual, a distinção entre religião, ciência e arte, as regras da formação do espírito científico republicano, as razões da institucionalização disciplinar põem, ora em oposição, ora em conjunção a crítica literária e a crítica científica do pensamento ocidental.

A Amazônia fez parte dessa invenção de posturas e cânones narrativos, uma vez que, no encontro da América com o Velho Mundo, a sua fisiografia, seus povos e territórios passaram a significar o “anti mundo”, o que não era conhecido, sem parâmetro para descrição, o que estava posto como fora do sentido e do significado da lógica da racionalidade da ciência e da arte quinhentista. Esta circunstância põe no mesmo quadro mental as narrativas que descrevem a América, a inclusão de sua existência na criação artística do imaginário ficcional e nos desafios científicos de várias disciplinas em consolidação.

A presença do insólito e do inesperado mundo americano de “quase humanos”, e seus longínquos territórios e culturas igualmente estranhas, alterou profundamente as narrativas científicas e artísticas. Uma valeu-se da outra para descrever e produzir explicações, com maior ou menor grau de factualidade. Tanto a ciência quanto a literatura auxiliaram-se reciprocamente na invenção da Amazônia.

Ainda hoje os fatos e as dinâmicas que envolvem a região ora adquirem feições literárias nos relatos científicos, ora expressam imagens objetivas na produção literária, ao modo das descrições da ciência. Ambas, no entanto, mesmo em disputas que tentam dissimular este “contágio intelectual”, são surpreendidas pela realidade da natureza e da cultura da região e dos desafios que sua condição histórica e ambiental põe ao mundo contemporâneo.

Ao longo dos processos de colonização e de nacionalização, as narrativas literárias e científicas inventaram a Amazônia para o mundo. O exercício desta considerável influência atrai outras disputas narrativas sobre o que se conhece, e hoje, no drama da pandemia, renascem as metáforas de distanciamento e estranhamento da região e seus intérpretes: os povos indígenas que nela habitam a mais de 500 anos.

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Senhora Ashaninka prepara comida com a ajuda de um pilão. Os hábitos e rituais dos Ashankinka remetem a tempos ancestrais. Veja a galeria completa aqui e ajude a campanha. Foto: Piyãko/Amazônia Latitude

O Inferno Verde e o Paraíso Suspeito são sínteses simultaneamente factuais e imaginativas da natureza do “trópico úmido” devastada pela voracidade do homem em trajetória de exploração dos povos, biomas e ecossistemas da Floresta. O paraíso perdido adquire a condição de destino cruel para os amazônidas de hoje, carentes de cidadania e órfãos do Estado Nacional. O Estado ao qual aludimos não é apenas gerador de oportunidades e garantia de direitos, mas também aquele monopolizador de violência pela força da lei e ordem, este o mais sentido.

A condição de região inóspita não impediu a penetração do capitalismo pela hidrografia que corta territórios indígenas, reservas ambientais e municipalidades — a dependerem, todos, dos processos de circulação de mercadorias e produtos do extrativismo.

Paraíso suspeito é o lugar do ocultamento da barbárie do abandono e da expropriação. Sob a cumplicidade do silêncio, milhões de vidas humanas são sacrificadas, desnaturalizadas de suas culturas e da adaptabilidade histórica aos ambientes sacralizados que produziram a humanização da natureza.

Tanto a narrativa científica quanto a literária convergem em indicar, à denúncia e à reflexão, os conflitos e as contradições que a intervenção predatória sobre humanos e não humanos e recursos da Amazônia tem praticado por séculos.

A pandemia se agregará aos impactos de desaparecimento de centenas de povos, culturas, até mesmo de civilizações por epidemias, genocídios por disputas territoriais, e de mão de obra para escravização e servidão à lógica capitalista.

A exuberância da floresta encobrirá os vestígios e as evidências deste massacre político e sanitário? O jornalismo solidário estará ao alcance da tarefa intelectual de registrar a autoconsciência regional da crise?

A história recente da Amazônia é plena de episódios de brutalidade da conquista de “novas frentes pioneiras” que reiteram problemas de ontem e de hoje. Mas é no plano da exclusão dos direitos constitucionais e da morte física e cultural dos povos que a região desperta os interesses mais contraditórios, contém as mais sórdidas justificativas do poder dos governos para “explicar” o abandono das populações amazônicas à própria desgraça que o próprio mundo civilizado produziu.

Novamente estão em jogo os registros literários e narrativos da pandemia na região. A conjunção desses relatos pode ser providencial para desvendar as artimanhas do Paraíso Suspeito a esconder, nas entranhas da floresta mais um episódio trágico da oposição natureza e cultura criada pela ambição humana de riqueza e poder.

A Amazônia de agora não pode continuar sendo mitificada e menos ainda metaforizada pelas fabulações que a constituíram no imaginário da invenção eurocêntrica. O que está em jogo neste ambiente é a nossa própria existência, isto é: a vida de povos, sejam indivíduos ou grupos; populações regionais urbanas, rurais e indígenas, além dos biomas e ecossistemas ainda preservados que serão abalados pela predação econômica durante e depois da pandemia, pela diminuição de mercadorias para as cidades sedes dos municípios; pelo esvaziamento da circulação de pessoas e das oportunidades de políticas públicas em educação, saúde e trabalho.

Para além das narrativas científicas e literárias sobre a Amazônia, que leio por um olhar lento, nela encontram-se imaginários narrativos e de representações dos povos originários que nos oferecem um novo repertório de ideias para pensar o mundo pós-pandemia.

Em jogo está a sobrevivência de todos nós. Ao negligenciar outras perspectivas de leitura sobre região, sacrificamos as contribuições ancestrais dos povos da floresta e com elas outros “horizontes de perspectivas” diferentes dos que nos foram apresentados.

Marcos Colón é doutor em estudos culturais pela Universidade de Wisconsin-Madison, professor do Departamento de Línguas Modernas e Linguística da Universidade Estadual da Florida e diretor do documentário “Beyond Fordlândia”.
Imagem em destaque: Operação do Ibama contra garimpo ilegal no Rio Jamanxim, no Pará. 2017. Felipe Werneck/Ibama

 

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