Literatura e projeto de nação: os românticos índios da Amazônia
[RESUMO] Autora reflete sobre a representação indígena em “O Guarani” e “Iracema”, ambos de José de Alencar, em contraponto aos descritos nas obras “Os Selvagens” e “Simá”, ambientadas no espaço amazônico e contemporâneas das publicações de Alencar, escritas respectivamente por Francisco Gomes Ferreira e Lourenço da Silva Araújo Amazonas. O fato de que apenas as obras do reconhecido escritor cearense alcançaram status de clássicos faz pensar sobre a escolha de um paradigma indígena como referência de identidade nacional em lugar de outros. Para o debate, segundo a autora, é preciso tratar do contexto histórico em que os textos foram produzidos e pontuar o uso da literatura como instrumento intelectual de viés político e ideológico no plano de nação brasileira.
A reflexão abaixo visa tratar do pensamento social brasileiro à luz da literatura, com foco no projeto de nação e na representação, não é fortuita. Em que pesem os distanciamentos temporais e referenciais entre três momentos que reforçam a escolha desse tema, estes parecem estritamente interligados — daí a necessidade de explicitá-los.O primeiro está diretamente relacionado à leitura que fiz de fragmentos da obra Simá (1857) e à crítica literária sobre ela, quando iniciei trabalho de docência na área de Literatura na Amazônia. Ao ler o livro inteiro tempos depois, a inquietação sobre o ostracismo da obra veio à baila. Por que pouco se sabia sobre ela? Por que havia um silêncio sobre ela nos compêndios da literatura nacional?
Desde o início percebi aproximações com Iracema (1865) de José de Alencar, e o inverso, de Iracema com Simá (ou Os Selvagens, 1875). No entanto, guardadas as devidas singularidades da estética romântica, era visível no discurso de Lourenço da Silva Araújo Amazonas uma outra representação indígena, muito diferente daquela desenhada por Iracema ou O Guarani (1857). A inquietação, porém, passou e perdeu espaço para outras questões que pareciam mais importantes.
O segundo momento aconteceu na pesquisa de mestrado, cujo objeto foi a obra de Inglês de Sousa. Nos mesmos compêndios literários que não falavam de Simá — e nem de Os Selvagens — a obra inglesiana aparecia. Mas, de modo igual, o autor de o Missionário não teve o mesmo tratamento que Azevedo. O texto foi publicado antes mesmo de O Cortiço, Tornou-se referência nacional o texto cuja personagem era Rita Baiana. A questão era a mesma.
O terceiro e último momento, cronologicamente anterior ao segundo, relaciona-se a uma fala de um escritor manauense durante uma palestra na semana de Letras da Universidade Nilton Lins sobre o Modernismo Brasileiro. Perguntado sobre o Movimento Madrugada, ele foi incisivo ao dizer que o Clube da Madrugada, movimento cultural fundado nos anos 1950 em Manaus com influência em literatura, música, artes plásticas e pensamento amazônicos, foi eminentemente político e menos literário. Na plateia, retruquei com duas perguntas, também incisivas: Que literatura está desprovida de caráter político? É possível separar a produção literária do contexto social que a produz?
É possível afirmar, portanto, que esses momentos estanques se articulam e apontam para um projeto político de nação brasileira, em que muitas ideias e processos foram suplantados. A escolha de um paradigma, como bem sabemos, é sempre excludente e oculta a diversidade. Naquele momento inicial em que o Romantismo elege seu herói, a Amazônia nos parece ter sido ocultada. As obras literárias não conhecidas que nos dizem respeito são a ponta dessa exclusão.
Projeto de nação e literatura
O contexto em que nasce a ideia de nação, no qual o Brasil também se insere, era parte de uma conjuntura maior, como sabemos. Alceu Amoroso Lima (1995), em Introdução à Literatura Brasileira, aponta a influência do Renascimento, da Reforma e da Revolução de XVIII como os marcos “histórico-culturais” fundadores da literatura nacional.
Considerando que a literatura não está dissociada da rede que a alimenta, esses marcos também valem para a vida política do país. O projeto de nação se esboça a partir de uma mentalidade liberal, condicionada profundamente aos fatos históricos mencionados, que produziria inevitavelmente uma nova sociedade. Tanto o Novo Mundo que nasce a partir dessa nova lógica de pensamento, ação e conquista quanto as colônias do Velho Mundo que vivem o clima de mudança são chamados a reconstruir sua história.
Nesse caso, a luta pela conquista do status de nação era o único caminho a ser tomado. No caso brasileiro, esse projeto começa a ser delineado no século XVIII, quando revoltas explodem no território brasileiro. São exemplos a Guerra dos Emboabas (1708), a Guerra dos Mascates (1710), a Conjuração Baiana (1798) e a Inconfidência Mineira (1789), mais conhecida em virtude da penalização imposta pela Coroa Portuguesa. O uso dos adjetivos esboça, segundo Boris Fausto, o lugar onde nasciam – pernambucanos, baianos. Precisávamos ainda de uma unicidade: a brasilidade ainda estava em processo gestacional.
Podemos ressaltar ainda que no contexto da Conjuração mineira, a literatura, nas penas de seus produtores intelectuais, talvez pela proposta conteudista do estilo literário que representavam, o Arcadismo, afastava-se dessas questões. No plano pessoal, no entanto, os poetas, em sua grande maioria, eram partícipes da elite econômica, política e intelectual do país e estavam profundamente articulados com o movimento inconfidente. Tomás Antonio Gonzaga era, antes da revolta, Ouvidor de Vila Rica.
Ainda que esse movimento não tenha tido o sucesso esperado ou atingido seus objetivos, não se pode afirmar que sua derrota significasse uma perda total. Ao contrário, fortaleceu o que estava por vir, no século seguinte: a Independência do Brasil. Enquanto ela não acontecia, seguiam os projetos de nação. Se o Arcadismo literariamente se omitiu desse processo, e ainda que o Romantismo se contrapusesse em forma e conteúdo, herdou dos poetas inconfidentes o idealismo nacional e libertário.
Àquela altura, era natural que as inteligências brasileiras trabalhassem no sentido de orientar o projeto de nação. E o que é uma nação sem povo? Como sair dos localismos das revoltas passadas e atingir a unidade necessária à nação? Nesse sentido, pensar em um ator que agregasse o espírito de brasilidade era mister e urgente. A escolha do sujeito brasileiro certo, considerando o contexto de mudanças, poderia vir a ser o elemento desencadeador da construção identitária tão imperiosa para a nação.
A escolha e a posterior difusão do modelo ideal do brasileiro eram fundamentais nesse contexto. Coube à literatura, em certo momento, a responsabilidade dessa tarefa. A escolha do índio como encarnação do espírito nacional não era acidental. Já havia sido tomada na longa tradição literária até ali: e os mesmos critérios parecem ter sido redimensionados. Da literatura de viagem, de Santa Rita Durão chegou a Gonçalves de Magalhães e José de Alencar. Havia uma recorrência dessa temática, nos diferentes gêneros.
É na mais nova forma da produção literária liberal que o indígena se faz conhecer. Ao romance, folhetinesco e nova sensação ficcional, coube o papel de propagar o tipo ideal brasileiro na sociedade. Obviamente, o sucesso dependia não somente da prosa, mas também da engenharia literária e textual do autor intelectual. Nesse aspecto, a figura de José de Alencar é aquela que se sobrepõe na historiografia literária do Brasil.
Dono de uma hábil escrita, que se desenha desde construções sintáticas precisas ao uso de recursos de estilística diversos, Alencar transitou, por meio do romance folhetinesco, nas diversas etapas desse estilo que transformou seguramente a literatura. Da fase nacionalista figura sua densa coleção indianista que inclui entre outros os clássicos O Guarani e Iracema. Mas quem era o índio alencariano? Como ele nos representava enquanto nação?
Os índios de Alencar
Em Alencar, o projeto de nação tomou forma e conteúdo. Em O Guarani, cujo personagem central é o índio Peri, mostra o índio como grande patriarca da nação brasileira, ao mesmo tempo em que assenta a brasilidade no mito da miscigenação, já que Cecília, par romântico do protagonista, é branca. Em Iracema, o mesmo processo ocorre, mas a heroína é a índia dos lábios de mel, e seu par é Martim, o português. Em ambos os romances, a ancestralidade brasileira está apoiada no índio, o herói romântico nacional.
A primeira dicotomia está aí: no momento em que aponta para o indígena, o autor propõe pensar a identidade nacional com base em uma miscigenação adequada apenas entre branco e indígena. Quem somos nós os brasileiros? Índios, brancos, mestiços? A segunda dicotomia centra-se, portanto, na eleição da miscigenação, que nos parece bastante confusa, pois se a mistura é a base, qual o lugar do negro neste projeto de nação? O discurso da raça, sob esse prisma, é silenciado e deslocado para o campo mítico-religioso.
Ser brasileiro, então, era ser indígena, era ser branco, mas não era ser negro. No campo das ideias, a miscigenação entre os elementos eleitos ganhava força e defesas diversas. Os determinismos biológicos, carimbados por pesquisas europeias e brasileiras da época, serviam de argumento para a exclusão do terceiro elemento: negros. Indígenas e brancos, a partir dessa lógica, eram competentes e, em assim sendo, podiam copular sem prejuízo à nação, que se embranquecia cada vez mais. Ao negro, a inferioridade.
Do elemento branco, nas diversas literaturas muito já se tinha dito. Do indígena, nos textos literários de Santa Rita Durão (Paraguaçu e Moema) e Basílio da Gama (Lindóia) conhecíamos a história de sua luta e resistência diante dos brancos e da Igreja dos jesuítas. Porém, essa imagem de desentendimento contrariava a consonância que pretendia o plano de nação. Assim, quando surgem Peri e Iracema em Alencar, saem de cena os índios usurpados pelos portugueses, guerreiros, defensores de sua cultura e território.
A reinvenção literária do elemento indígena punha-lhe ares universais europeus: os novos indígenas tinham altivez branca, educação branca e atitudes brancas. O exótico, a selvageria, a nudez que sempre estiveram nos textos dos viajantes e em documentos oficiais da Coroa Portuguesa e da Igreja e que não sofreram “limpeza”6, cederam lugar para a idealização: o índio civilizado e batizado. Havia neles agora uma compreensão da harmonia necessária nas relações com o branco que se entendia por meio de suas atitudes.
O goitacá Peri era estimado pela família de Cecília (Ceci) em função de bravura, pureza e inocência, as duas últimas entendidas a partir de uma compreensão cristã do mundo. A reinterpretação de o “bom selvagem” nacional encontra em Peri suas principais características exaltadas. A bravura, a honestidade, a lealdade, o espírito de honradez, entre outros, é o que define esse herói puro. É nessa expressão de nacionalismo que o mito do paraíso perdido encontra o Adão índio em estágio anterior ao pecado.
A questão étnica se perde no indianismo literário, uma vez que é o espírito nonsense do índio, tal qual o de uma criança, sem máculas de dor e de luta o cerne. Descender de um ser desprovido de maldade e de ressentimento histórico é o ponto fundamental para a construção de uma nação nova e feliz. Embora as lutas existam nas histórias de Alencar, amparadas inclusive no plano histórico, e envolvam os heróis, elas são mais engenhos artísticos para corroborar com essa imagem nova do índio brasileiro.
Em Iracema, a grande mãe brasileira, o projeto de nação se expande. A brasilidade miscigenada que se anuncia em o Guarani com Peri e Ceci, desta vez, se consolida por meio do nascimento de Moacir, fruto de sua união com Martim. A mãe confere ao filho legitimidade brasileira tanto no plano terreno quanto no plano espiritual. Ou seja, ele descende de uma mãe essencialmente da terra, é filho da terra, ao mesmo tempo em que reúne em si o espírito de uma nação sem mágoas, sem preconceitos, pronta para viver um novo momento histórico com o outro.
A virgem de cabelos negros é quem escolhe, por amor, seu companheiro branco. A benção desse amor, em pese o destino romântico da heroína como um preço a ser pago por infringir a regra tribal, é o nascimento do filho. Moacir nasce como uma reparação ante a morte anunciada de Iracema que preferiu o amor de Martim a seu povo. Para Castro (2008) essa união simboliza, de forma clara, o processo de troca, de interesses de ambos.
Lembremo-nos que Lilia Schwartz, ao estudar as origens do romance brasileiro, remonta na estrutura social brasileira o familismo e as relações de favor. Alencar, para ela, era fruto desta sociedade liberal e reproduzia em seus textos a mesma estrutura. Não seria inadequado, dessa feita, afirmar que o mesmo problema acometera seus romances indianistas. Vinha daí a representação indígena e o ocultamento da questão escrava negra.
Sobre as representações indígenas de Alencar por meio das personagens Peri e Iracema, é possível afirmar que, embora a idealização do herói seja uma proposta do movimento literário romântico, no romance alencariano ela cria, antes do herói, um silvícola inerte. A subserviência ganha ares de entrega amorosa, de doçura, de etiqueta, de vassalagem inquestionável ante o Senhor branco. A concordância com os termos europeus e os arroubos de consciência sobre os seus pares são redimensionadas para a causa da nação.
A traição à nação indígena, de que são protagonistas, é suplantada pelo amor e por isso alguns eventos que poderiam ser tratados de modo diferente por ele, pelos leitores e pela crítica da época foram esquecidos. O indígena criado por Alencar, entendemos, pretendia ares de civilidade branca, europeia, porque esta era uma condição, segundo a
inteligência liberal brasileira de seu tempo, para se alcançar o status de nação. Na gênese do ideal nacionalista, o argumento do mal necessário.
Índios brasileiros da Amazônia
Quando discuti acima questões postas na literatura indianista de Alencar, o objetivo não era destituir sua produção ficcional nem desprezar a riqueza de sua linguagem, tampouco questionar as construções imagéticas que o autor produziu.
Como pontuei no início desta interlocução, a crítica reside na adoção de um modelo exclusivo de representação. A leitura dos romances Simá e Os Selvagens, nessa perspectiva, oferece, ainda que sem os recursos de estilística empregados no ciclo alencariano, modos de ver o indígena por outro viés. Distantes daquele sugerido pelo paradigma eleito, mas ainda importantes para a construção de uma identidade de nação, os indígenas de Amazonas (o autor) e de Amorim questionam o modelo administrativo dos portugueses na Amazônia. A romantização está na escravidão a que foram submetidos e na necessidade dessa ruptura com os europeus.
A reflexão em torno dessa realidade de separação, da necessidade de o índio ter a autonomia na direção da sua história está em ambos os romances. Interessa aqui abrir uma digressão sobre os autores, considerando, se podemos dizer, situações opostas: um era brasileiro, baiano, o outro, português. Ambos apresentam as mesmas preocupações diante da problemática indígena, questão camuflada em Alencar.
Simá, primeiro romance indianista amazônico, segundo Márcio Souza em estudo de 1977, está longe de um romance regional, no que se refere aos estereótipos que concentram a temática dos localismos. Traz indígenas que nos remetem não à história dos índios da Amazônia, mas de todo o território nacional. O tônus romântico não está na impossibilidade amorosa, ou na nobreza dos gestos dos indígenas embranquecidos. Está na impossibilidade de assumir uma identidade que se perdeu por meio do processo da conquista.
Os conflitos interculturais entre os indígenas liderados por Mabbé, defensor da luta para reconquista territorial, e o grupo de Marcos, comerciante, avô de Simá, que se contrapõe à força, revelam as tensões a mais que o europeu trouxe para as comunidades originárias. As oposições dessas duas personagens estão diretamente ligadas à problemática da região, ao projeto de exploração europeia no Brasil. Pela conquista do território passa também a identidade.
Marcos (que assume depois o nome de Severo), o grupo de Manaus que dirige e Simá são personagens resultantes de um processo de alteridade da empresa colonial no território amazônico. Longe de se perguntar sobre o poder dos brancos, eles buscam viver sob a égide dos portugueses na crença de que eles sejam sua melhor opção, se comparados a outros, tais quais os espanhóis. Vivem sob as determinações comerciais, religiosas e políticas do grupo que os dominou e não se questionam.
Deles, Marcos/Severo é aquele que mais representa toda a força empreendida pelos europeus no sentido de descaracterizar o outro, destituindo-o de si mesmo e tomando para si, em termos discursivos, uma identidade nova. No entanto, ao mesmo tempo em que ele legitima a fala do próprio europeu, situação que se justifica na educação que ele e Simá receberam por religiosos da ordem da Companhia de Jesus, sofre calado. Sua dor, que ele não entende, está em conviver dia após dia com o vencedor.
Enquanto Mabbé compreende toda a necessidade de lutar pelo território como forma de lhes restituir o respeito pela alteridade indígena, legado que quer deixar para outras gerações, Marcos/Severo prefere a omissão, que ele julga ser sossego. E embora faça comércio com os portugueses não é isso que determina sua posição em relação a eles. Ele age assim porque é fruto, como tantos outros espalhados pelo território brasileiro, do enorme esforço que fizeram os portugueses de desacreditá-lo enquanto povo, enquanto nação.
Porém, embora o discurso de Marcos/Severo não seja seu, fato que o coloca ao lado dos portugueses, suas práticas religiosas lançam na história muitas contradições. Mais que isso, apontam para o principal problema até hoje na vida dos indígenas que têm contato com o mundo branco: não saber o que é. Não é mais indígena e tampouco é branco. É um híbrido amorfo, sem descendência cultural, sem uma perspectiva de futuro, renegados tanto por uns quanto por outros.
Simá é fruto de um estupro. Régis, o regatão português, engana Marcos e estupra sua filha Delfina, que mais tarde, depois de parir Simá, morre pela incapacidade de conviver com a vergonha e com a violência a que foi submetida. Se adoção de dois nomes pelo avô de Simá se justifica pela aventura romanesca, a tragédia de que são vítimas Marcos/Severo, Delfina e Simá está além do livro. A matéria de que é feito o romance está na experiência vivida pelos indígenas do Brasil.
Quantas Simás e quantas Delfinas foram esquecidas e enterradas no território nacional e silenciadas definitivamente nas histórias de Alencar? Quantos índios como Marcos se traduziram de forma ambígua pelo apagamento de sua memória cultural? O projeto de nação proposto pelo baiano Amazonas está longe de concordar com aquele proposto pelos intelectuais da outra parte do país. De modo igual, Amorim também se posiciona contrário a esse projeto de nação que elege a miscigenação entre brancos e índios como um espírito a ser cultivado no Brasil.
O romance Os Selvagens assinala desde o título a ambiguidade das ações e das personagens emblemáticas da sociedade indígena amazônica: a Igreja Católica e os índios. O duplo sentido reside sobre o questionamento do lugar de onde nascem as ideias, os conceitos, o olhar que determina o que é o outro. Na visão de Amorim, tanto o índio quanto o europeu catequizador eram selvagens. Enquanto a barbárie do indígena estava na luta, na morte, no canibalismo, no outro prisma estava a morte religiosa e cultural promovida pela Igreja.
Ao narrar o encontro dos Munduruku com padre Félix e contar o processo de evangelização que se deu a partir desse encontro, Amorim deixa entrever que a única possibilidade de os índios viverem harmoniosamente com os brancos está na adoção de um outro comportamento. Conduta esta, segundo Carlos Guedelha, pautada no etnocentrismo europeu, na moral e na ética dos brancos. Dito de outra forma, a harmonia viria na aceitação da Igreja Católica.
À medida que são catequizados, mudam de nome e com o nome vão também modificando seu modo de ver, de agir, de se vestir. Já não cultuam seus deuses, vestem “sua vergonha”, aprendem o evangelho, não lutam mais. Mais uma vez, tanto os índios de Amorim quanto os de Amazonas mostram o que significava consequentemente a ruptura com seus modelos culturais. A renúncia de suas raízes era o enfraquecimento de que precisava a empresa europeia de colonização para tomar posse em definitivo do Brasil.
Nem Mabbé e o ancião munduruku, que compreendem o contexto em que estão, têm força suficiente para impedir o que estava se desenhando. O genocídio anunciado que se deu em toda a extensão da terra brasilis começara muito antes. Ambos os romancistas que escrevem sobre a Amazônia — vale mencionar as discussões sobre uma uma literatura genuína e distante do campo de produção, como aponta Pressler em “Romantismo na Amazônia?” — aproximam-se muito mais de uma representação indígena que aquela proposta por Alencar.
O Romantismo destas obras está na incapacidade de entender o que se é, na perda da identidade face ao desrespeito da alteridade. Está no apagamento da memória de toda uma vida, na dissolução dos laços míticos e tribais. Está na impossibilidade de não ser o que se foi ou de não mais se lembrar do que foi, do que era. Está na dor de conviver dia após dia com o vencedor. Vencidos pelo europeu em seu próprio território, silenciam quanto à sua origem. Assim é Marcos/Severo, Delfina, Flor de Cajueiro, Simá, o cacique Pangip-hu…
O projeto de uma nova nação brasileira, na proposta desses autores, não incluía mais os europeus. Faziam parte da história brasileira e isso não se podia mais apagar. O estupro que Delfina sofrera foi o mesmo que os selvagens munduruku de Amorim sofreram. Simá, a personagem que dá nome ao livro de Amazonas, é a representação da nação indígena vencida, da mulher indígena, das mães indígenas depois da avassaladora passagem europeia em seus domínios.
A morte romântica da personagem, antes de sugerir o escapismo, põe em suspensão o futuro de paz que vive Martim e Moacir em Iracema. A Amazônia brasileira tinha uma outra imagem e outra proposta de herói nacional. Os índios amazônidas eram outros, sempre foram, desde a Muhuraida, e não aqueles do ciclo indianista canonizado no Romantismo Brasileiro.
Em debate
Algumas pesquisas recentes sobre o indianismo e a contraposição entre os romances de Alencar, de Amorim e de Amazonas têm procurado explicar o sucesso do primeiro em detrimento dos outros dois. Há afirmações de que a forma literária, na qual aparecem costurados coerentemente enredo, personagens e pesquisa histórica, é responsável pela diferença na recepção. Ou que a habilidade de escrita e o emprego de certa linguagem fizeram com que O Guarani ganhasse as graças dos leitores.
Podemos dizer que o veículo pelo qual foi apresentado o romance, o folhetim, recebeu por parte dos leitores grande aceitação, o que não se repetiu necessariamente com o livro publicado. Sendo isso uma verdade, se o sucesso se devesse a aspectos relacionados à história narrada ou à linguagem usada, talvez o efeito fosse o mesmo. Não se pode justificar, portanto, que a linguagem tenha sido o critério de sustentação da obra.
Desprezar uma análise conjuntural da obra que envolve a questão autoral, as influências políticas e ideológicas do lugar onde nascem, o contexto de produção e os meios econômicos responsáveis por sua circulação é se negar a ver as possibilidades de outras obras não menos importantes que não entraram em circuito nacional. Se todas as categorias descritas anteriormente não são analisadas, não se pode falar nem de sucesso e nem de insucesso.
Um único juízo crítico, tomado à revelia ou eleito à luz de dado conhecimento intelectual não parece ser suficiente para se chegar a esta ou àquela conclusão. Portanto, afirmar que uma obra alcançou status de clássico em detrimento de outras obras, em virtude de um critério eleito e não se questionar sobre tal fenômeno implica silenciar sobre as forças políticas, intelectuais, filosóficas e ideológicas que pensam o país, que pensam a produção científica, literária.
As pesquisas que hoje fazemos no campo da identidade e da alteridade sob viés literário, no sentido de apreender o pensamento social brasileiro em dado momento histórico, devem se permitir produzir senão respostas, possibilidades para além daquelas que já existem e que já se encontram encorpadas nos discursos que lemos. Não se trata de simples inovação, mas de pesquisa e de problemas que estão postos e que exigem posicionamentos políticos, epistemológicos e ideológicos.
Neste sentido, o mérito literário da obra indianista alencariana é inegável, não há dúvida de que se tornou um clássico. No entanto, sabemos também que não se deve somente à linguagem, à forma. Além da urbanização e da vida cultural que existe com e a partir do espírito citadino, a força dos grupos políticos-intelectuais permitiram a ela ser o que se tornou. Esse me parece ser um argumento plausível que justifica o ostracismo das obras norte em dado momento.
De outro ponto, o fato de ser clássico não legitima uma realidade complexa. No caso de Alencar, o autor expõe uma ideia e argumenta, mas não a torna possível nem no plano literário, nem fora dele, como pretendido. Ao adotar o índio alencariano como modelo completo, a intelectualidade brasileira esbarra na complexidade dessa cultura, por isso não avançou.
A imposição de um modelo único de representação do indígena brasileiro por meio da literatura desfigura o projeto de nação pretendida, sobretudo porque de um lado uma nação não se faz com heróis artificiais nem sem força política, por outro, porque tornou excludente o local e o regional, igualmente necessários para o projeto de nação. Havia muitos índios e muitas outras formas de representá-los que não àquela. Simá e Os Selvagens lançam, sem dúvida, uma fagulha contra a homogeneização pretendida.
A concordância com essa forma que se pretendeu absoluta, num contexto tão diverso como o indígena e que mantém em nosso século essa mesma heterogenia, é, no mínimo, arbitrária. Apropriando-me das palavras de Lilia Schwarz, diria que o índio de Alencar era “uma ideia fora do lugar”, fora da realidade brasileira. Na literatura e na vida real, os personagens são múltiplos e se revertem de fragmentos da vida social, o que lhes confere identidade.
Depois de atingir seu ápice, o indianismo fecha seu ciclo, como era de se esperar. Mais tarde, depois do processo de subjetivação do Romantismo da segunda fase, conhecida como mal do século, Castro Alves entra em cena. O projeto se realinha. O elemento esquecido, sublimado até então toma assento no cenário de nação. O índio cede lugar ao negro por razões que o próprio projeto liberal impõe.
No Realismo, estilo seguinte, a explosão machadiana e as questões de preconceito entram na ordem da nação. A literatura, portanto, não é apolítica. A própria separação em estilos e fases orienta-se para além de uma estética diferente, para contextos políticos e ideológicos diversos e divergentes, de onde ela retira ou não a matéria de que são feitas suas histórias, seus personagens e seu enredo.