José Manuyama

Professor de origem indígena Kukama em Iquitos, na Amazônia peruana. É um intelectual em movimento, protagonista de lutas cidadãs na comunidade onde vive.

Sem água não há democracia: a terceira marcha pela vida em Iquitos

Mesmo com protestos, Iquitos, na Amazônia peruana, segue sofrendo com a água envenenada por mineração ilegal

Mulher participa da Marcha pela Vida na Jirón Próspero, em Iquitos
Mulher participa da Marcha pela Vida. Foto: Forum Solidaridad Perú
Mulher participa da Marcha pela Vida na Jirón Próspero, em Iquitos

Marcha pela Vida. Foto: Fórum Solidaridad Perú.

Graças ao comitê da água e a uma grande coalizão cidadã, mais de 10 mil pessoas se reuniram na tradicional Praça 28 de Iquitos. Não bastassem as duas grandes marchas anteriores realizadas no final de 2023 para que as autoridades competentes evitassem esta terceira, assumindo as responsabilidades por anos de impunidade e envenenamento do rio Nanay pela mineração ilegal.

Entretanto, infelizmente hoje, no mês de março de 2024, há ainda mais dragas nesse rio do que havia no ano passado. E não há nada que mova todos os órgãos regionais e nacionais envolvidos na questão, uma inanição vergonhosa e condenável que não deixa outra coisa a fazer senão confrontá-los publicamente diante de tamanha falta de capacidade e ética para assumir suas funções.

Não ficou por aí: o governo de Dina Boluarte, ao invés de mudar a pessoa que concedeu uma concessão de mineração no rio Nanay — claramente irregular — a recompensou, designando-a para o cargo de vice-ministro de Minas e Energia do Peru.

Terceira Marcha pela Vida na Calle Napo, em Iquitos

Terceira Marcha pela Vida na Calle Napo, em Iquitos. Foto: Fórum Solidaridad Perú

Hoje, a Amazônia está mais ameaçada do que nunca.

A terceira marcha pela água ocorreu no dia 21 de março de 2024, diante da cegueira e do desprezo das próprias funções institucionais das principais autoridades nacionais e regionais, sejam elas a presidente da República, os ministros da Defesa e do Interior, o governador de Loreto, o procurador nacional, entre outros.

A mineração ilegal não existe apenas por causa de alguns operadores inescrupulosos, mas por causa da colaboração maliciosa de muitas autoridades negligentes com essas atividades criminosas. Esse é o paradoxo da democracia de papel, da democracia de telas de celulares, das ditaduras disfarçadas de Estado de Direito.

Democraticamente, podemos dizer que há inseguranças de todos os tipos. Quando uma autoridade faz o que quer e não ouve as pessoas, deixando-as à deriva, não há democracia. Essa palavra se torna uma frase desprovida de conteúdo real e serve apenas para fingir e justificar uma formalidade enganosa.

Além de exigir atenção às comunidades do rio Nanay na luta contra a mineração na floresta amazônica, tivemos que exigir a revogação da emenda da Lei Florestal, amplamente golpista contra as florestas e a água do Peru inteiro, que foi aprovada de forma fraudulenta por um Congresso rejeitado pela população e onde muitos legisladores são denunciados ou investigados pelo Ministério Público peruano por todo tipo de crimes.

Mulher protesta na Jirón Próspero, em Iquitos

Mulher protesta na Jirón Próspero, em Iquitos. Foto: Fórum Solidaridad Perú

Na terceira passeata, Iquitos está se tornando um centro cívico para a defesa do território, das florestas, dos rios e da democracia, tão massacrados por maus congressistas, um Poder Executivo servil a interesses obscuros e órgãos regionais contaminados pela corrupção e por gestões ruins.

A chamada Amazônia de herança ancestral está à margem da democracia grega, pois tradicionalmente, em geral, a convivência é baseada na igualdade, sem as hierarquias e castas tão tradicionais no mundo ocidental ou em outras culturas, aspecto que foi estudado pelo antropólogo Jorge Gasché.

Essa igualdade foi substituída pelo discriminatório sistema de classes, hoje dominante, e que impede avançar para uma verdadeira democracia e uma sociedade integrada. Antes que essa condição cultural original se desvaneça, ela deve ser a base para uma verdadeira democratização do país a partir do coração da selva.

Senhora participa da Marcha pela Vida na Calle Napo, em Iquitos.

Senhora participa da Marcha pela Vida na Calle Napo, em Iquitos. Foto: Fórum Solidaridad Perú

Foi uma honra compartilhar os mesmos anseios, esperanças e reivindicações com crianças, adolescentes, jovens, adultos, homens e mulheres, religiosos, ecologistas, ambientalistas, esportistas, professores, pais e mães de família, “amazonistas”, como o bispo do Vicariato de Iquitos, Miguel Ángel Cadenas, que se tornou um homem de coração da floresta, um exemplo digno e muito alinhado com as diretrizes traçadas pelo Papa Francisco, que também poderíamos dizer que é “charapa1Termo utilizado para se referir a uma pessoa natural da região amazônica do Peru” por sua exortação apostólica em Querida Amazônia e parafraseando ainda João Paulo II: “Sem criação não há fé”. De fato, diversas pessoas se sentiram convocadas pelo clamor desesperado por água e vida. A “Casa Comum” nos une.

Em várias partes do Peru e do mundo foram programadas ações de protesto em homenagem ao Dia Mundial da Água. Não menos importante, porque esse dia é, na prática, o “Dia Mundial do Funeral da Água”, devido à situação de abuso da água em todo o globo. E mais ainda na Panamazônia, onde os povos indígenas, os ribeirinhos e a sustentabilidade da floresta sobrevivem sob o ataque do extrativismo formal e dos flagelos ilegais, cúmplices de uma parte do aparato estatal que boicota qualquer esforço para combater o colapso de um dos últimos redutos arbóreos do planeta, tão importante para o equilíbrio da vida como a conhecemos.

As coisas estão tão de ponta-cabeça no Peru e em toda a Amazônia continental que esse respiro cidadão do povo de Loreto merece ser reforçado. Isso não é suficiente para nossa sobrevivência territorial cultural, ofuscada pelo racismo herdado, cujos traços ecológicos e florestãos de comunhão com a natureza podem fazer muito bem para a humanidade do futuro.

José Manuyama na Terceira Marcha pela Vida em Iquitos

José Manuyama protesta na Terceira Marcha pela Vida, em Iquitos. Foto: Fórum Solidaridad Perú

Morrer de câncer aos 40 anos de idade é algo que não deveria acontecer, mas acontece em casos individuais e em grande número. Para a humanidade, entrar em colapso antes do tempo por causa de um câncer evitável, como a economia irracional, é um aborto do ser humano como espécie.

Sem saúde, não há futuro. A vida simples “aguacina2Termo usado pelo autor para correlacionar a comunhão de uma pessoa com a água, assim como o conceito de florestania (com a floresta) e cidadania (com a cidade)” é compatível com um minimalismo econômico para o qual devemos migrar. A água é o espelho do futuro. Sem floresta não há água, sem água não há vida. Sem água saudável, não há democracia, porque não há direitos humanos. Esse é o grande êxodo cultural e político que precisamos enfrentar.

Devemos ter nossos treinadores prontos para voltar a caminhar como um rio de gente por um novo povo de valores amazônicos, de bondade entre os seres humanos e outros seres vivos, para erradicar todas as economias insalubres e criminosas do território amazônico, para recuperar o Estado sequestrado por grupos de poder que não se importam com a destruição do futuro para ganhar, mesmo que o presente seja de imundície. E não descansaremos até alcançarmos uma região livre de mineração e de economias criminosas. Pão com dignidade e uma verdadeira democratização do nosso país.

O Peru precisa urgentemente de um novo governo e Congresso Nacional e, a nível regional, de um novo governador, e sempre sob vigilância cidadã para continuar na linha de nossas melhores aspirações humanas, restaurar a racionalidade nas nossas convivências, e resgatar a nossa sociedade do colapso social e ambiental com o qual acordamos todos os dias.

 

Clique aqui para acessar a versão em espanhol.

José Manuyama é professor de origem indígena Kukama em Iquitos, cidade na Amazônia peruana. É um intelectual em movimento, protagonista de lutas cidadãs na comunidade onde vive. Também é uma das personagens do documentário Pisar Suavemente na Terra, dirigido por Marcos Colón, no qual lideranças indígenas narram as ameaças do capitalismo aos seus territórios.

Edição: Alice Palmeira
Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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