A Vida é Selvagem

‘Temos que parar com essa fúria de meter asfalto e cimento em cima de tudo’

Ilustração de uma onça pintada mordendo um padre em uma floresta e uma cobra curando o padre.
"A redenção" 2022, acrílica sobre tela 1mx1m, exposição Nhe'ē Porã, Museu da Língua Portuguesa. Pintura: Daiara Tukano

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A vida é selvagem. Esse é um elemento essencial para um pensamento que tem me provocado: como a ideia de que a vida é selvagem poderia incidir sobre a produção do pensamento urbanístico hoje? É uma convocatória a uma rebelião do ponto de vista epistemológico, de colaborar com a produção de vida. Quando falo que a vida é selvagem, quero chamar a atenção para uma potência de existir que tem uma poética esquecida, abandonada pelas escolas, formadoras de profissionais que perpetuam a lógica de que a civilização é urbana, de que tudo fora das cidades é bárbaro, primitivo – e que a gente pode tacar fogo.

Como atravessar o muro das cidades? Quais possíveis implicações poderiam existir entre comunidades humanas que vivem na floresta e as que estão enclausuradas nas metrópoles? Pois se a gente conseguir fazer com que continue existindo florestas no mundo, existirão comunidades dentro delas. Eu vi um número que a World Wide Fund for Nature (WWF) publicou em um relatório, dizendo que 1,4 bilhão de pessoas no mundo dependem da floresta, no sentido de ter uma economia ligada a ela. Não é a turma das madeireiras, não: é uma economia que supõe que os humanos que vivem ali precisam de floresta para viver.

A antropóloga Lux Vidal escreveu um trabalho muito importante sobre habitações indígenas, no qual relaciona materiais e conceitos que organizam a ideia de habitat equilibrado com o entorno, com a terra, o Sol, a Lua e as estrelas. Um habitat que está integrado ao cosmos, diferente desse implante que as cidades viraram no mundo. Aí eu me pergunto: como fazer a floresta existir em nós, em nossas casas, em nossos quintais? Podemos provocar o surgimento de uma experiência de florestania começando por contestar essa ordem urbana sanitária ao dizer: eu vou deixar o meu quintal cheio de mato, quero estudar a gramática dele. Como eu acho no meio do mato um ipê, uma peroba rosa, um jacarandá? E se eu tivesse um buritizeiro no quintal?

Temos que parar com essa fúria de meter asfalto e cimento em cima de tudo. Nossos córregos estão sem respirar, porque uma mentalidade de catacumba, agravada com a política do marco sanitário, acha que tem que meter uma placa de concreto em cima de qualquer riacho, como se fosse uma vergonha ter água correndo ali. A sinuosidade do corpo dos rios é insuportável para a mente reta, concreta e ereta de quem planeja o urbano. Hoje, na maior parte do tempo, o planejamento urbano é feito contra a paisagem. Como reconverter o tecido urbano industrial em tecido urbano natural, trazendo a natureza para o centro e transformando as cidades por dentro?

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Ailton Krenak é líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta, escritor, e doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Protagonizou uma das cenas mais marcantes da Assembleia Constituinte, em 1987, quando pintou o rosto com jenipapo para protestar contra os ataques aos direitos indígenas. Participou da União dos Povos Indígenas, que se transformou na Aliança dos Povos da Floresta, junto com David Kopenawa Yanomami e Chico Mendes. Fundou a ONG Núcleo de Cultura Indígena. Com seu povo na região do Rio Doce, enfrentou os efeitos do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG). Como escritor, lançou “Ideias para adiar o fim do mundo”, “O amanhã não está à venda” e “A vida não é útil”.
Daiara Tukano (ilustração), ou Duhigô, é artista visual, muralista, comunicadora, professora e mestre em Direito Humanos pela Universidade de Brasília (UNB). Ativista pelos direitos indígenas, coordenou a Rádio Yandê, primeira web rádio indígena do Brasil. Em 2020, tornou-se a artista indígena a ter o maior mural de arte urbana do mundo, com a pintura de mais de 1.000 m² no histórico Edifício Levy, no Centro de Belo Horizonte (MG).

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