Resenha: O amanhã não está à venda

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O amanhã não está à venda
Autor: Ailton Krenak
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2020

Em “Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise”, o antropólogo, sociólogo e filósofo francês Bruno Latour convida seus leitores a despertarem para o colapso socioambiental que se avizinha, propondo caminhos de transformação. Desde o início da pandemia de Covid-19, a comunidade científica vem demonstrando a relação entre a destruição de sistemas ecológicos e o surgimento de doenças que ameaçam parte da humanidade.

Por crise, compreende-se a chegada a um estágio onde velhas práticas já não são capazes de solucionar novos problemas. Embora seja tratada costumeiramente como passageira, já que, ao longo da história, variadas crises foram superadas pela capacidade humana de adaptação, a chamada crise sanitária é mais grave, pois não se restringe ao novo coronavírus. Exige mudança radical para que novas pandemias não sejam experimentadas num futuro próximo, uma vez que está embutida numa “mutação ecológica duradoura e irreversível”, conforme descreve Latour. O modo com que nos relacionamos com o planeta nos tornou vítimas de pandemias. Se quisermos sobreviver, precisamos mudar.

Apesar das muitas denúncias dos ambientalistas e das greves estudantis ao redor do globo, iniciados pela ativista Greta Thunberg, seguimos céticos e apáticos à perspectiva de se mudar a ordem das coisas e, também, com certo desinteresse em abandonar o conforto do consumo irrefletido. Políticos ao redor do planeta continuam determinados em recuperar os níveis de produção pré-crise, apostando no crescimento infinito, embalados pela velha cantilena que dizia ser impossível desacelerar ou redirecionar o sistema econômico.

Quarentenado com sua família na aldeia Krenak, Ailton Alves Lacerda Krenak, jornalista, ativista socioambiental e uma das mais importantes lideranças do movimento indígena no Brasil, que organizou a Aliança dos Povos da Floresta, participou da criação da União das Nações Indígenas (UNI) e, ao lado de Chico Mendes, defendeu os direitos indígenas na Constituição de 1988, inicia seu mais recente livro abordando as complexidades do isolamento social, imposto pela pandemia.

Segundo o autor, o confinamento que mobiliza o mundo trouxe um novo paradigma para o horizonte: se antes eram os povos indígenas que corriam risco de serem extintos, hoje, o perigo ameaça todos. Mesmo que haja uma redistribuição desigual da vulnerabilidade, ninguém está a salvo. Até mesmo aqueles que fazem manifestação em seus carros importados pedindo a volta de seus empregados ao trabalho, se forem pegos pelo vírus, podem morrer. “Com ou sem Land Rover”, satiriza Krenak, com sua peculiar acidez.

Ailton foi consultado por engenheiros empenhados em recuperar o rio Doce, que, em 05 de novembro de 2015, foi atravessado pelo lixo da indústria mineradora, após rompimento de barragem na tragédia criminosa de Mariana, afetando 1,6 milhão de pessoas que viviam na bacia desse rio. O pensador foi categórico em apontar a necessidade de suspender todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio. Sua sugestão, como esperado, foi de imediato desconsiderada, por acreditarem impossível de se realizar, já que o mundo não pode parar. E o mundo parou.

Na cosmogonia krenakiana, essa interrupção forçada é nada menos do que um silenciamento materno. A mãe Terra, esse organismo vivo de que somos fruto, da qual a chamada “civilização” costuma se distinguir na tentativa de separar humanidade e o restante da natureza, nos cala em uma espécie de educação na marra. Não se trata de vingança, diz Boaventura de Souza Santos em “A cruel pedagogia do vírus”, mas de autodefesa.

É fato: a ameaça de precisarmos ser socorridos por máquinas respiratórias, aparatos inventados para mediar nossa relação com o planeta, nos faz valorizar este equipamento biológico que nos permite respirar livremente.

Nessa suspensão à qual fomos submetidos, ao menos temporariamente, fomos interrompidos da aceleração e automatismo que dominava nossas vidas, onde os anos já não começavam nem terminavam, apenas se emendavam, como Eliane Brum sintetizou, retomando a reflexão de Byung-Chul Han em famoso ensaio. Nessa hiperatividade doentia, nos tornamos cegos e surdos para a mudança climática em curso, que, embora se apresente como o maior desafio da história humana, ainda não se tornou uma preocupação de igual tamanho.

Vale lembrar que os poucos que despertaram atenção para o assunto só o fizeram depois que cientistas apresentaram documentos garantindo que essas mudanças estavam acontecendo. Antes disso, diversos povos, cujas culturas são regidas pelos ciclos da natureza, já denunciavam que a terra passava por transformações que ameaçavam sua possibilidade de viver conforme suas tradições. Em vez de serem ouvidos, entretanto, continuaram sofrendo reiterados processos de violência lenta.

A despeito de estarmos constantemente conectados, ainda mais diante da atual impossibilidade de encontros presenciais, seguimos absolutamente alheios à realidade do planeta (e de nós mesmos); seja porque nos centramos em nossas demandas práticas individuais e cotidianas, seja porque nos acostumamos a silenciar nossa capacidade de sentir (incluindo o uso de fármacos). Aguardamos, desejosos, que a pandemia acabe e que possamos voltar à vida normal. Em seu livro, Krenak torce para que isso não aconteça, pois, se voltarmos à normalidade, é porque não valeu de nada a perda de centenas de milhares de pessoas em todo planeta.

Passa longe de ser a ordem do dia nas nossas preocupações, por exemplo, o crescimento assustador do desmatamento na Amazônia desde que a pandemia começou, justamente no período que antecede as secas, que é quando aumentam as queimadas — como acontece agora, fazendo com que a região acelere sua caminhada em direção à desertificação. Aqui, não nos referimos apenas à perda de suas vastas biodiversidade e variedade cultural, como se a defesa da floresta viva fosse mero capricho dos ambientalistas e humanistas, mas ao fato dela desempenhar um importante papel na regulação das chuvas em toda a América do Sul e no clima do planeta. Para se ter uma ideia, as árvores da bacia amazônica transpiram 20 bilhões de toneladas de água por dia, o que mostra que a floresta de pé é fundamental para a sobrevivência da humanidade.

A parte boa é que não é como o novo coronavírus, ainda sem conhecimento sólido ou resposta elaborada. O abundante conhecimento científico sobre a floresta permite interromper sua extinção e recuperá-la com ganhos econômicos. Para isso, é preciso empregar nova abordagem, abandonando o pragmatismo reducionista e inconsequente que nos trouxe até aqui. É possível harmonizar os interesses da sociedade contemporânea com uma Amazônia vigorosa se agirmos com inteligência e mantivermos o compromisso com a vida, unindo o uso dos recursos naturais com a reconstrução ecológica da floresta.

Se, apesar das evidências científicas, não formos capazes de agir, ou se esperarmos tempo demais, é provável que cheguemos ao ponto do não-retorno e “tenhamos que lidar com prejuízos incompreensíveis para quem sempre teve sombra e água fresca providos graciosamente pela grande floresta”, como advertiu o cientista Antonio Nobre, autor do relatório “Futuro Climático da Amazônia”, publicado em 2014.

O inacreditável é que continuamos vendendo o amanhã como se, na última hora, um salvador pudesse garantir nossa sobrevivência, sem que todos tivéssemos que nos comprometer pessoalmente com esse problema. Essa alienação, no entanto, não impede a corrosão do nosso futuro comum, assim como a negação dos nossos gritos existenciais não os impede de realizarem estragos dentro de nós, como bem ressaltou Brum.

Como se percebe, até o momento não foi possível criar uma conscientização com base apenas na informação. Segundo Krenak, em fala que se aproxima de Paulo Freire, no discurso que fez no Festival CineEco 2018, em Portugal, a educação depende de um sentido afetivo. Não é possível incutir nada na cabeça das pessoas sem tocá-las no coração. Espera-se que a pandemia seja capaz de nos sensibilizar, pois uma coisa é a morte de desconhecidos à distância, outra é tomar consciência da própria perecibilidade que traz morte de perto.

As ilusões de que o mundo pode ser controlado pelos humanos e de que a tecnologia pode solucionar tudo se desfizeram diante dos nossos olhos. Nesse sentido, “O amanhã não está à venda” alerta para o ridículo que é continuar contando com o futuro esgotando o que resta dos recursos naturais. A pandemia é uma pequena amostra do que o futuro nos reserva, caso não modifiquemos nossa relação com o consumo, ou, como diria Latour, caso não abandonemos a produção como único princípio de relação com o mundo.

Apesar do peso do assunto e da urgência da discussão, Krenak, muito elogiado por seu penúltimo livro, “Ideias para adiar o fim do mundo”, segue com seu típico bom humor e uma renovada ironia. Para compreender os fenômenos que afetam a humanidade e encontrar formas de transpô-los, é preciso abrir espaço para as mais variadas contribuições intelectuais, incluindo as de indígenas que, fazendo coro a Antonio Ioris, “sabem como viver sem esgotar o planeta e sem produzir iniquidades”. Leia Krenak. Divulgue Krenak. Já passou da hora de superarmos nossos preconceitos e de nos disponibilizarmos a aprender com saberes não ocidentalocêntricos, produzidos nas mais diversas regiões e culturas do mundo. Nunca é tarde para descolonizar o pensamento.

 

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