Roteiros da Amazônia com Jorge Bodanzky #1: Evandro Carreira, o senador profeta
Na estreia da coluna ‘Roteiros da Amazônia’, produzida em parceria de Jorge Bodanzky com a redação da revista, revisitamos o arquivo do cineasta, que tem mais de 50 anos de carreira, para revelar histórias sobre os personagens mais icônicos registrados pelo diretor. Centrada nas humanidades ambientais, a Amazônia Latitude tem a satisfação de contar memórias e lembrar das pessoas que têm passado pela jornada de Bodanzky.
“Eu diria que todos os meus trabalhos na Amazônia são encontros. Todos os trabalhos se baseiam em pessoas, são encontros que tenho a felicidade de registrar”, lembrou o diretor durante a conversa sobre a estreia da coluna, registrada em live.
Na conversa, apresentada pelo professor Marcos Colón, Bodanzky falou sobre sua trajetória no cinema, impressões do ofício de retratar Amazônia em diferentes tempos e dividiu um pouco dos seus encontros com o senador Evandro Carreira, personagem deste primeiro material.
A parafernália
Sentado na Praça da Polícia, em Manaus, em 2006, o ex-senador Evandro Carreira fala sobre “Terceiro Milênio”, de 1981, que protagonizou. Nos diversos registros em que aparece, sua fala é um espetáculo peculiar: gesticula de maneira enérgica, fecha os olhos e sinaliza um transe ao emendar um raciocínio no outro, antes de concluir com um grito e dedo indicador em riste. “Esse filme eu vejo como um intróito da nossa grande mensagem que ainda não foi dada, Bodanzky!”.
Quem está atrás da câmera e serve de meio para Evandro e o mundo que ele pretende alcançar é o próprio Jorge Bodanzky. Na ocasião, o cineasta e sua equipe entrevistavam o político durante a primeira edição da Mostra Amazônica de Cinema Etnográfico, em 2006. O encontro entre os dois era mais um nos 27 anos desde o primeiro contato em São Paulo, que desaguaria nas filmagens do média metragem “Jari”, em 1979.
Evandro das Neves Carreira nasceu em Manaus, em 1927, filho de Tocandira Baltu Carreira e de Inácia das Neves Carreira. Estudou na Faculdade de Direito do Amazonas, que concluiu em 1958. Em outubro daquele ano, começou sua carreira política. Conhecido pela oratória teatral, o político foi filiado a partidos diversos e conseguiu algumas vagas de suplente. Quando filiado ao Movimento Democrático Brasileiro, elegeu-se para um mandato de senador pelo Amazonas que durou de 1975 a 1983.
O programa que levou para o gabinete ficou conhecido como “recado amazonense”. Eram seis pontos: “(…) respeito absoluto à selva, racionalização da fauna ictiológica, valorização da produção regional, respeito absoluto à lei da Zona Franca, mudança do centro de decisão da política amazônica de Belém para Manaus e defesa de uma política hidroviária articulada com a rodoviária.”, diz o texto da FGV.
Do estúdio ao Jari
No fim da década de 70, Bodanzky e Wolf Gauer, parceiro de muitas produções, tinham um estúdio de som. “Um dia, bate na porta lá o Evandro, se apresentando com um cartão de visita. ‘Aqui está um senador da República!’, e eu disse ‘certo, em que posso ajudar?’”, lembra o diretor.
Evandro daria uma entrevista à TV Bandeirantes e sabia que Bodanzky tinha um filme com imagens de fogo. “Ele disse: preciso desse fogo, queria que atrás de mim fosse projetado um grande fogaréu, eu vou falar sobre a devastação da amazônia. Muito histriônico.”
Apesar do estranhamento, o diretor concordou, e surgiu ali uma simpatia mútua. Ato contínuo, o senador disse que estava indo ao Projeto Jari, porque presidia a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito da Amazônia. “E nós vamos conhecer”, carimbou.
Polêmico, o Jari consiste numa imensa área de floresta às margens do rio homônimo que foi ‘limpa’ para a instalação de duas estruturas. Uma para gerar energia e outra para o objetivo da empreitada de Daniel Ludwig, o bilionário que a bancou para produzir celulose. Já nas imagens do filme ‘Jari’, o então senador pelo MDB caminha entre as “babilônias”.
“Se Daniel Ludwig teve condições de trazer estas duas babilônias, compreendeu, do Japão, a 25 mil quilômetros de distância, por que não temos capacidade empresarial de fazer uma fazenda aquática, viveiros de peixe nos lagos naturais nossos?”, dizia o senador aos interlocutores.
“Esse homem está mostrando que é possível aproveitar a várzea, por que não estamos fazendo isso? Por quê? Isso talvez seja um desafio a nós brasileiros, compreendeu? De partirmos para empreendimentos na Amazônia neste sentido. Agora, atendendo à vocação dela, talvez isso aqui não atenda, a vocação da Amazônia não seja produzir celulose, mas seja produzir arroz, produzir peixe. Aí é que é. É melhor do que nós colocarmos 2, 3 ou 4 bilhões de dólares numa bombinha atômica, num projeto nuclear. Por que não investigar a biota amazônica? Por que não dá recurso pra Marinha desenvolver um projeto fluvial na Amazônia? Que a Amazônia é água, não é um continente, é uma Polinésia, um arquipélago”.
A empreitada de Daniel Ludwig era um enclave estrangeiro, ninguém entrava, não se sabia o que estava acontecendo. Sabia-se que o bilionário havia mandado transportar as duas fábricas do Japão ao Brasil e assentou-as em milhares de toras de maçaranduba, que continuam lá. Foi a oportunidade de Bodanzky
“Aquelas coisas de Brasília, ligou de noite e disse ‘Amanhã cedo estamos saindo’. Por sorte, eu tinha umas latas de filme que sempre sobravam das produções da tevê alemã. Pegamos um avião e fomos para Brasília. De lá, pegamos um Búfalo [avião utilizado pela Força Aérea Brasileira] e fomos para Jari com um grupo de deputados e senadores que faziam parte dessa comissão, sem saber como ia funcionar”, lembra o diretor.
A comissão era uma celebração do progresso e do desenvolvimento do Brasil. Um dia inteiro de abraços e apertos de mão que que não diziam nada. “E o Evandro disse ‘vocês vão ficar, tem um amigo meu engenheiro que vai mostrar como funcionar aqui’. E ficamos lá, Wolf Gauer e eu”.
O resultado da estadia, apesar das poucas latas de filme, rendeu ‘Jari’ (1979), que apresentou o projeto para o mundo. Nos dois anos seguintes, o político seria o eixo narrativo de ‘Terceiro Milênio’ (1981), que acompanha uma visita do senador às suas bases eleitorais em campanha para o governo do Amazonas, que ele não venceu.
Profeta e vigarista
“Profeta e vigarista, ele dizia, ele se desenhava dessa forma. Mas ele falava sério ‘eu sou um misto de profeta e vigarista’. Ao mesmo tempo que ele tinha esse lado articulador, manipulador, ele tinha também esse lado profético. E quando falava dos projetos da várzea, era uma coisa factível, viável. Tanto é que já está acontecendo”, afirma David Pennington em uma das entrevistas com Arthur Virgílio Neto.
“Ele tinha uma locadora, morava numa casa que tinha em frente uma locadora de vídeo. E tinha um enorme cartaz dizendo ‘só os militares salvam a Amazônia’”, diz Bodanzky na entrevista com Virgílio.
De volta à praça da Polícia em 2006, Evandro convida para ver a placa e vaticina: “Estou pedindo a militarização da Amazônia! Só o que pode salvar a Amazônia brasileira é a militarização. Acabar com governador, deputado, essa canalha toda que só faz roubar e aviltar o eleitor, compreendeu?”.
Morto em 2015, aos 88 anos, o ex-senador anteviu em sua trajetória os mais variados tipos de questões que estão no debate em 2020, como a soberania na Amazônia, soluções sustentáveis e decisões políticas.
“Ele é a Amazônia. Ele é de lá. Tudo o que ele fala, ele fala da experiência dele, com propriedade. Não é um cara de fora que ‘tá falando. Ele vivenciava aquilo tudo intensamente e ao mesmo tempo estava em Brasília como político, com todas as loucuras, erros e acertos que tem na política. Então é muito interessante você observar como era a questão política”, diz Bodanzky.
“Quando terminou o filme, a gente o levou num congresso e deu o nome de Terceiro Milênio, porque achei que aquilo que ele falava iria acontecer no terceiro milênio. Imagine falar em terceiro milênio em 1980? E acontece exatamente aquilo que ele falou”, completa.
“Há uma noção de nacionalismo, e o nacionalismo é uma coisa complicada. Há uma noção de nacionalismo, de preservação pelo nacionalismo, preservar a terra pra nós, mas acho que falta aí uma compreensão maior de que, por exemplo, se você não desenvolver economias sustentáveis na Amazônia, você não preservará a Amazônia”, avaliou Arthur Virgílio Neto, hoje prefeito de Manaus, que estava no barco de Terceiro Milênio.
“Você simplesmente verá ela se estiolar, se gastar. Creio que é uma cruzada que a gente tem que fazer, o momento é disso, me sinto responsável por fazer minha parte, tenho procurado fazer. E aqui também. Porque a profecia se cumpriu. Eu sou uma esfinge. decifra-me ou te devoro. Não decifraram. E podem ser devorados. Podem ser devorados”.
A frase da esfinge foi um delírio de Evandro na proa do barco em Terceiro Milênio, e Bodanzky considera o fragmento a obra-prima do discurso carreirístico.
“Ele senta na proa do barco, pega uma cuia de água e começa a delirar, dizendo que a Amazônia é como uma esfinge”.
“É uma nova esfinge, indagando o homem do futuro. Pedindo uma decifração dessa realidade potamográfica que é a Amazônia. Ou tu me inventarias, ou tu me investigas, ou tu me decifras, homem do terceiro milênio, ou eu te devorarei. Com a devastação, com o deserto e com o inferno que será a futura Amazônia, que só poderá ser preservada se um dia o Amazonas tiver um governador capacitado para tanto.”
Compreendeu?