A outra Amazônia no diário de Roger Casement

[RESUMO] Inspirada pela ‘história dos de baixo’, a primeira das duas partes da reflexão discute a Amazônia que se revela nas páginas de “Diário da Amazônia de Roger Casement”, de 2016, composta de exploração de recursos naturais e imposição de trabalho forçado.

Nossa incursão tem como propósito fazer uma leitura, ainda que superficial, do “Diário da Amazônia de Roger Casement”, organizado por Laura P. Z. Izarra e Mariana Bolfarine e publicado pela Editora da Universidade de São Paulo em 2016.

O irlandês Roger Casement (1864-1916) registrou, enquanto cônsul-geral britânico, as condições miseráveis de trabalho de indígenas e caucheiros no entremeio de Putumayo. Seus relatos, produzidos em viagens às fronteiras entre Brasil, Colômbia e Peru, mostram uma Amazônia cuja história é pouco conhecida do público, principalmente seu real retrato geográfico, político, econômico e cultural.

Essa Amazônia, como registra Euclides da Cunha, no início do século passado, estava à margem da história e se apresentava bem mais profunda do que os registros governamentais faziam-na parecer ao público leitor e a quem faziam chegar os registros oficiais.

Iniciamos nossa reflexão com Eric Hobsbawn, que trata do vazio constituído por longos anos a partir do silenciamento daqueles que ficaram de fora dos acontecimentos históricos. Nestes últimos, afinal, figuravam apenas os eminentes nomes das classes dominantes como instrutores e protagonistas, para registros e deleite de um ínfima parcela de interessados em biografias. Se não eram personalidades, se não estavam nos círculos oficiais do poder, não mereciam respaldo dos historiadores, observa Hobsbawm em “A história de baixo para cima”.

Esse duradouro escamoteamento, menosprezo ou “apagamento” das massas se dá por ordem política ou por motivações de (des)interesse dos próprios historiadores, visto que a história, por muito tempo, limitou-se aos registros dos governantes e dos fatos históricos, uma vez que as atividades dos pobres pouco ou nunca incomodavam ou ameaçavam a ordem social.

As pessoas comuns, lembra Hobsbawm, aceitavam a sua condição subalterna e vez por outra limitavam-se ao combate contra os opressores com quem mantinham contato mais direto, quase nunca se rebelavam contra os reis e imperadores, vistos quase sempre como justos.

É, porém, a partir do momento em que as pessoas comuns passam a ter importância na concretização de acontecimentos sociais e políticos, como os movimentos pré e pós-Revolução Francesa, nos fins do século XIX, que os feitos populares passam a ser objetos de interesse dos historiadores.

Inicialmente, na atenção dada ao povo por Jules Michelet e depois com a propriedade de Georges Lefebvre no trato dos acontecimentos inscritos em “O grande medo de 1789”, que dá destaque aos movimentos coletivos dos franceses, amedrontados por boatos de ameaças de invasões de suas propriedades e massacres. Entretanto, Hobsbawn observa que a maior atenção dirigida às massas populares se dá na segunda metade do século XX, no pós-Segunda Guerra.

Na convergência que Eric Hobsbawm apresenta sobre esse deslocamento do olhar para além das classes dominantes, com atenção para as classes populares, Jim Sharpe, em “A história vista de baixo”, argumenta que ao dar voz às classes dominantes, isto é, ao ceder lugar à história das elites, apenas um lado dos acontecimentos foi registrado e levado ao conhecimento das sociedades. Apenas foram registrados os feitos dos poderosos e seus discursos, daqueles que detinham poder e portanto se fizeram os detentores da história, dos acontecimentos e até mesmo da verdade; para Michel Foucault, do poder e do saber. As narrativas sobre os modos de vida dos de baixo, como indica Sharpe, passam então aos interesses da História Social, o que permite que sejam exploradas as experiências ignoradas e dadas como sem importância de homens e mulheres comuns.

Entretanto, se cabe a lembrança por justiça, devemos dizer que Edward Palmer Thompson, em “Costumes em comum” fez-se o maior visibilizador dos de baixo, das massas e seus modos de vida, ao buscar compreender não só as questões que se imbricam nas experiências culturais e cotidianas do povo — vistos em registros de costumes em almanaques, mais tarde assegurados no conceito de cultura — mas também ao adentrar em caminhos já trilhados, a vasculhar o passado nos percursos dos séculos XVIII e XIX, para, segundo ele, fazer emergirem camponeses, artesãos, mineiros, manufatureiros, tecelões, aprendizes das mais diversas artes domésticas e agrícolas, no encalço da transmissão das tradições populares de geração a geração, em contraponto a uma cultura conservadora aprendida/apreendida sob normas e regras impostas por governos, sacerdotes, comerciantes e empregadores.

No início do século XX (1904-1905), após a cobertura da Guerra de Canudos, que rendeu “Os Sertões” (1902), Euclides da Cunha visita a Amazônia, em direção ao Alto Purus, e registra um território que chama de “terra sem história”, uma região inóspita, ainda por ser desvendada — e quiçá descoberta — pelos brasileiros de outras regiões do país, que a conheciam apenas pelos escritos de jornais e registros dos viajantes, até mesmo Euclides, diante do assombro do que via, primeiro em Belém, a capital paraense. Depois, em Manaus, terras amazonenses.

Em “À margem da história”, de Euclides, os seringueiros, na figura de Judas-Asveros, homens esquecidos, “relegados se acham à borda do rio solitário, que no próprio volver de suas águas é o primeiro a fugir, eternamente, àqueles tristes e desfrequentados rincões. […] Não murmura. Não reza. […] um excomungado pela própria distância que o afasta dos homens”; os caucheiros, “os aventurosos sertanistas que batiam atrevidamente aqueles rincões ignorados […] transpondo os Andes e suportando todos os climas da Terra, dos litorais adustos do pacífico às punas enregeladas das cordilheiras” são apresentados como homens que desafiam as matas e suas adversidades para produzir e sobreviver.

Os relatos dos Judas-Asvero, no sábado de Aleluia, encerram a imagem do homem visto por da Cunha, sem voz e à margem da história, e cujas histórias careciam ser escritas por aqueles do poder, uma vez que, maioria analfabetos, sequer dispunham de conhecimento para registrar seus dias e noites nas matas amazônicas.

Hobsbawm, Sharpe e Thompson fazem ver e emergir o perfil e as vozes dos subalternos e grupos de camponeses ingleses principalmente em fins do século XVIII e do percurso de todo o século XIX, sem deixar escaparem aqueles ainda invisíveis do século XX, com destaque às personagens como as que Sharpe faz referência, no caso em questão, os soldados. Da Cunha registra personagens brasileiros escondidos nas matas amazônicas, em fronteiras do Peru, Colômbia e Brasil, e não menos distante os de territórios venezuelanos, nas mesmas condições das personagens registradas pelos três historiadores citados, embora com perfis diferentes — caucheiros e seringueiros, homens separados da civilização, escondidos entre os rios e as matas em busca da sorte grande, mas despossuídos de quaisquer direitos ou espaço de fala. O direito que possuíam era o do silêncio, do sofrimento e, para alguns outros, da semiescravidão.

Durante suas atividades de cônsul-geral britânico, Roger Casement viu a miséria das populações de indígenas e caucheiros no Putumayo. O irlandês registrou na fronteira uma Amazônia cuja história é pouco conhecida do público, a não ser os poucos interessados pelos estudos desse pedaço de Brasil que ainda é povoado por ditos e mitos e menos visto no seu real retrato geográfico, político, econômico e cultural.

A Amazônia – e por que não as Amazônias? – registrada por Casement encontra eco nos escritos de jornalistas e vários romancistas dissociados do poder e dos discursos do poder do início do século XX, que buscaram registrar e denunciar as condições subumanas de homens e mulheres que viviam nas matas, entre seringais e cauchos, produzindo riqueza para senhores dos seringais, em condições precárias, de miséria, escravidão e até mesmo abandono.

Esse era o quadro dos indígenas e seringueiros que trabalhavam para a empresa peruana Peruvian Amazon Company.

Entre os romancistas está José Eustasio Rivera, detentor de um vasto material de pesquisa in loco. O autor se inspirou em Joseph Conrad — com quem Casement manteve contato quando esteve no Congo —, que escreveu “O coração das trevas” (1902) após viver no país como funcionário da marinha mercante belga, no qual aponta as atrocidades do governo da Bélgica em terras africanas no reinado de Leopoldo II.

Rivera segue o mesmo trajeto: registra e denuncia as condições de abandono e semiescravidão de homens e mulheres da Amazônia nas duas primeiras décadas do século passado. Sua denúncia é apresentada no romance “La Vorágine” (1924), obra que mereceu densa observação do professor da Universidade Califórnia em Davis, Leopoldo M. Bernucci, em “Paraíso suspeito: a voragem amazônica” (Edusp, 2017).
A leitura que Bernucci empreende, no contexto de “La Vorágine”, permite entender a história de uma parte da Amazônia escondida nos relatos que enaltecem o que chamam de boom da borracha, período de enriquecimento dos senhores da borracha e de embelezamento, no caso brasileiro, das duas principais cidades do início do século passado, Belém e Manaus.

Os teatros Amazonas e da Paz dizem muito desse período. Praças, ruas, portos, prédios e todo um conjunto de transformações de infraestrutura permitiram às duas capitais da Amazônia brasileira disputar com seus pares no Sudeste-Sul os concertos vindos das terras europeias para embalar os gostos das elites endinheiradas. Estas últimas apegadas aos gostos e costumes europeus, inclusive franceses. Além disso, se ainda cabia a adjetivação de paraíso perdido, no auge da borracha, a Amazônia alimentava o sonho daqueles que buscavam a riqueza, quiçá o domínio, a glória e a fama, dentro e fora do território brasileiro.

Contudo, não só de glória e luxo viveu a Amazônia no ciclo da borracha. Diferente daquela ornada pelo ouro negro, uma outra Amazônia se fez do “inferno verde” ao “paraíso perdido”. Marco Aurélio Paiva, em “O papagaio e o fonógrafo: os prosadores de ficção na Amazônia”, diz que essas representações extremadas entre o paraíso e o inferno indicavam uma impossibilidade de sobrevida de qualquer projeto civilizador. Não por acaso a Amazônia vive mais de promessas, de boas intenções e de discursos dúbios do que de políticas concretas de desenvolvimento. Se cabia ver esse pedaço de terra como o Eldorado, paraíso terreno, também era permitido o pensamento de um espaço inóspito, de gente de tez acanhada e sem cultura, uma “terra sem história”, observa Paiva. Foi justamente nesse vasto e inóspito pedaço de terra, onde homens sem história se escondiam, que Roger Casement parou para perceber, ver, registrar e narrar o que viu e ouviu.

Casement não fez registro apenas dos homens em condição de escravidão na Amazônia. Antes de chegar à região, esteve na Nigéria, onde serviu como espécie de espião, produzindo relatórios sobre movimento de armas e armamentos para as colônias francesas da África Ocidental. Já como cônsul britânico, entre 1895 e 1904, no Congo, assistiu à exploração dos povos daquele país, inclusive indígenas, homens, mulheres e crianças, sob as mais cruéis torturas, mutilações e assassinatos, no trabalho de coleta e produção do látex, de cujas observações, em 1904, resultou o “Relatório Casement” ou “Correspondência e Relatório do Cônsul de Sua Majestade no Boma a respeito da Administração do Estado Independente do Congo”.

Nesse texto, em que sabia do risco para sua pessoa de acusações e injúrias, o irlandês certifica a exploração a que eram submetidos os indígenas no Congo, um feudo do rei Leopoldo II. A denúncia que Casement fez provocou reações na opinião pública da sociedade belga, o que obrigou uma reforma urgente na administração política da então colônia africana a partir da Associação para Reforma do Congo, organizada por Casement, pelo ativista Edmund Dene Morel e pela historiadora Alice Stopford Green.

Antes de chegar ao Brasil, com a saúde fragilizada, pede licença do trabalho por um período de dezoito meses e, nesse entremeio, profere palestra na Biblioteca Nacional da Irlanda, onde defende a ideia de que o nome Brasil teria origens holandesas. Foram as pesquisas no recesso do trabalho que certamente despertaram o interesse de Casement pelo Brasil, o que o trouxe para estas bandas em 1906, como cônsul britânico em Santos, no litoral paulista, com transferência no ano seguinte para Belém, no Pará, e finalmente como cônsul-geral da Grã-Bretanha e Irlanda no Rio de Janeiro, em 1908.

Durante os seis anos que esteve no Brasil, fez duas viagens, entre 1910 e 1911, à fronteira com Colômbia e Peru, com o intuito, a princípio, de investigar as denúncias de extração ilegal da borracha e as condições de trabalho de súditos britânicos contratados em Barbados. Sua perspicácia e seu interesse humanista adquirido no Congo o levaram adiante.

Passou a ouvir relatos de trabalho escravo na região peruana do Putumayo, que transformou em um relatório sobre a realidade dos povos indígenas, entre eles os Huitoto, Bora, Andoque e Ocaina, que tiveram direitos violados e corpos entregues a abusos, torturas e escravidão. O relatório, que envolveu diretamente a Companhia Peruana da Amazônia, fez personagens como o barão peruano do caucho, Julio César Arana, dono do império Casa Arana da borracha, ser denunciado e confrontado pelas práticas de terror e desumanidade impostas a milhares de índios e trabalhadores, mulheres, homens e crianças, nas brenhas amazônicas, longe dos olhares das autoridades peruanas.

A outra Amazônia vista por Casement

Em prefácio para a primeira edição em português do “Diário da Amazônia de Roger Casement”, o presidente da Irlanda, Michael D. Higgins, identifica Casement como “poeta, humanista e patriota irlandês” e destaca a importância do trabalho desse humanista para a revelação – e denúncia – da “escravidão e dos terríveis crimes perpetrados contra a população indígena do Putumayo pela Peruvian Amazon Company em sua busca dos lucros obtidos com “Sua Majestade, a Borracha”.

Para o líder irlandês, o “Diário da Amazônia de Roger Casement” é valioso por muitas razões, entre elas o fato de “ser uma fonte primária que aborda um importante capítulo da história da Amazônia”. Também porque revela “o que ocorre quando o lucro e o mercado estão autorizados a operar sem restrições ou preocupações com as pessoas, com o ambiente natural e com o bem comum”. E visa “registrar o crescente papel exercido pela sociedade civil, passando a atuar em um espaço que, até então, era amplamente dominado pelas vozes do colonialismo e do imperialismo, com a crença interesseira de que o ‘progresso’ e a exploração dos recursos naturais de um país só poderiam trazer consequências positivas para os povos e países colonizados”.

Ainda, a propósito da importância de Casement e de seus escritos para a Amazônia e para o próprio pensamento humanitário, o presidente lembra do trabalho empreendido pelo escritor peruano e prêmio Nobel de 2010, Mario Vargas Llosa, em “O sonho do celta”, no qual narra a saga de Casement no Congo e em outras terras por onde se fez presente e atuante.

Higgins considera a importância do seu conterrâneo patriota para o pensamento humanitário numa época em que “atitudes humanitárias não eram nem populares, nem sensatas”, o que coloca Casement entre os que demonstram “profundo comprometimento com os valores universais de respeito pela dignidade humana e pelos direitos individuais, bem como por seu compromisso com o desenvolvimento de condições de trabalho e com a ética nos negócios”.

Angus Mitchell, biógrafo de Casement, no texto de Introdução do “Diário”, observa que, ao contrário do viajante Alexandre Rodrigues Ferreira em sua viagem filosófica, Casement não objetivava uma aventura pela Amazônia e nem estava interessado em classificar as maravilhas da fauna e da flora, mas em mapear a paisagem da desumanidade e questionar as atividades coloniais e seu poder financeiro. Sua abordagem, considera Mitchell, resgatou, deliberadamente, a voz indígena e a deslocou para o centro de seu relato investigativo. No ver do biógrafo, Casement descreveu em detalhes, de forma sincera e angustiante, a tragédia resultante da cultura de terror imposta por uma empresa anglo-peruana de extração da borracha, que preferiu de forma vergonhosa o lucro às pessoas.

As organizadoras do livro, Laura P. Z. Izarra e Mariana Bolfarine, consideram que os escritos de Casement sensíveis à percepção dos efeitos da violência na condição humana e registram um capítulo triste e relevante da humanidade em plena época de modernização e expansão dos impérios. O autor, cujo legado de luta pelos direitos humanos e pelo fim da escravidão no mundo atlântico, mostra ainda o olhar do estrangeiro magnetizado pela diferença e sua percepção da sociedade local, cuja violência estava gravada nas cicatrizes dos corpos dos indígenas.

De acordo com as duas pesquisadoras, os relatórios de Casement sobre Putumayo colocaram em xeque a utopia presente na história das grandes navegações e nas tradições fenícia e irlandesa do Braaz ou Hy Brasil. Izarra e Bolfarine lembram que a obra provoca reflexões sobre as percepções pessoais aguçadas de um oficial do Império que, em terras tropicais a serviço do governo inglês, defendeu os interesses dos nativos e denunciou a violência contra eles. Casement reconheceu a dimensão satânica da participação direta da Grã-Bretanha nas violações humanitárias cometidas na África e na América do Sul, observam as organizadoras.

O “Diário da Amazônia de Roger Casement” se localiza notadamente no início do século passado, por volta de 1910, tempo que “marca as primeiras acusações massivas de tortura, escravidão e extermínio nos seringais da região dos rios Caquetá e Putumayo do lado colombiano ou, do lado brasileiro, dos rios Japurá e Içá, respectivamente”. Essas acusações, lembra o professor Leopoldo Bernucci em “Reinado do terror: tortura na Amazônia durante o ciclo da borracha, haviam sido levadas ao conhecimento público e dos governos através de jornais e outros meios de informação peruanos e brasileiros, como no Jornal do Commercio de Manaus, mas que em certo tom foram colocadas ao descrédito e à indiferença das autoridades.

Nas dez partes do Diário, Casement faz um itinerário de viagem do Pará a Iquitos, no Peru, até a região de Putumayo, e de seu retorno de Iquitos à Grã-Bretanha, em que apresenta minuciosamente tudo o que via e ouvia. Marca o início em 8 de agosto de 1910, em terras paraenses a caminho do Peru, com carta escrita ao amigo Bulmer. Encerra as anotações em 6 de dezembro do mesmo ano, com relatos da despedida de Iquitos e rumo à Europa, onde esperava encontrar alguma providência contra tudo o que ouviu e viu em Putumayo.

amazônia roger casement

No texto de Casement, outra Amazônia se revela nos diversos focos de exploração dos recursos e da mão de obra escrava

A leitura

Na primeira parte, A Viagem ao Putumayo, (registro sem data, mas, segundo as organizadoras, escrito por Casement), registra a chegada ao Amazonas e confere as seguintes impressões:

“[…] O olhar cai sobre fileiras intermináveis de árvores que emparedam um vasto fluxo de águas descoloridas e, por trás das árvores, não se escondem regiões do desconhecido – no sentido humano – nem tribos estranhas ainda não descobertas, nem a sensação de mistério, nem memoriais lendários de um período passado de habitação humana. O índio desapareceu sem deixar traços. Pelo menos é assim no Brasil – no Peru e na Bolívia ainda é diferente.”

As impressões iniciais de Casement contrastam com as narrativas de outros viajantes, nas quais os nativos – indígenas – são as personagens centrais do espetáculo das raças, para espanto e deleite do olhar observador. Se a ausência dos índios parece causar espanto e até mesmo incomoda o cônsul, não lhe escapam as observações sobre os costumes da vida urbana em povoados distantes da capital, destoando até mesmo dos registros de outros viajantes que passaram pela região, em cujos escritos, até mesmo aqueles captados no fim dos mil e oitocentos, revelam “incivilidade” do homem amazônico, Entretanto, a realidade para Casement no início do século XX é outra:

“Mesmo o mais atrasado dos povoados brasileiros, a 3.200 quilômetros de distância do Pará, tem sua imitação barata da vida de cidade na foz do Amazonas: bares, bilhares e cafés, colarinhos brancos e até chapéus vindos de Paris, enquanto o povo – os que na África poderiam, de fato, ser chamados de “nativos” – é ali representado, em proporções diversas de mistura de sangue importado com o tronco aborígene, por canoeiros, lenhadores, extratores de borracha e outros ainda mais indolentes que, vestidos de calças e camisa, esperam as notícias políticas da capital, juntamente com os jornais provincianos do Pará e de Manaus, discutem o último escândalo social ou pecadilho moral dos amigos, servem como jurados, celebram “festas” e votam para deputado e senador.”

Em 8 de agosto escreve ao amigo Bulmer sobre a longa viagem que fará do Pará ao Peru: “uns 4.800 quilômetros pelo rio”. E lembra: “Estarei no meio da floresta durante quatro meses a fio, talvez por seis meses – e não creio que receberei cartas por muitos meses, pois estarei longe de postos e da civilização o tempo todo”.

Nos dias em que esteve no Pará, Casement observou o comportamento do povo e das autoridades políticas, mas principalmente os movimentos do governo com relação a sua chegada à região e com as questões indígenas, o que não passa despercebido em carta escrita ao amigo Gerald Sydney Spicer:

“O Pará continua o mesmo – os jornais daqui, por falar nisso, receberam um telegrama de Londres dizendo que “a imprensa daquela capital aplaudiu o ato do governo de mandar o cônsul britânico no Rio de Janeiro” nessa viagem a Putumayo – assim, presumo que algo deve ter sido mencionado no parlamento. […] Um telegrama do Rio afirmava que o governo havia escolhido o tenente-coronel Rondon para chefe do Serviço de Proteção aos Índios da Floresta. Isso diz respeito às tribos brasileiras – e creio que Rondon é homem muito capaz. É bom ver que uma dessas repúblicas começa a perceber seus deveres e responsabilidades para com as tribos indígenas […]”.

Do Pará, Casement segue rumo ao Amazonas para, de lá, chegar ao Peru e integrar a Comissão de averiguação no país andino. Em relatos, menciona as dificuldades para chegar a Iquitos por causa da insuficiência de alimentos e da falta de transporte que lhes desse condições de viagem, juntamente com os companheiros da Comissão. Em viagem para Iquitos, a bordo do SS Huayna, conversa com senhor Víctor Israel, comerciante de Iquitos, e começa a colher informações importantes sobre as condições de trabalho forçado dos indígenas.

Anota: “Ele é o único passageiro do Huayna que fala bem inglês e com quem tenho algo em comum”. E prossegue: “Já havia tocado no assunto várias vezes, mas nunca de maneira tão completa como na noite passada, e suas observações mostram bem claramente o que a Comissão da Peruvian Amazon Company tem de enfrentar. Vou anotar tudo enquanto está fresco na memória”. Considera a situação da mão de obra escrava e barata, segundo o qual devido “[…] a impossibilidade de encontrar ou trazer trabalhadores, coisa que no Brasil, como já mencionei, deve-se principalmente à política fiscal do governo, que torna as necessidades básicas da vida um verdadeiro luxo”.

As barreiras legais enfrentadas pelos barões da borracha para contratar mão de obra fácil dificultavam o trabalho nas matas onde havia os cauchos. Por isso, o trabalho indígena pareceu a solução fácil e barata, porque “Havia ainda “inumeráveis tribos selvagens” ao longo dos vários afluentes do Amazonas, tais como o Caquetá, o Napo, o Ucayali e o Putumayo – e aí começou imediatamente a explicar as possibilidades de explorá-las, e deu como exemplo o caso de Julio Arana como um dos resultados de maior sucesso”.

“Essas tribos em estado primitivo não eram úteis para ninguém – não serviam para o homem branco e, antes de ser possível retirar qualquer coisa de seus rios, tinham de ser conquistadas e postas para trabalhar. Era preciso dinheiro para garantir as exportações necessárias a fim de atingir os objetivos. O governo peruano daria uma concessão da região conquistada e encorajaria sua ocupação. Era o único método para subjugar a Montaña – a grande região de floresta, cruzada por muitos rios que se estendem das florestas dos Andes até a fronteira do Brasil – toda essa região tem borracha, mas não tem mão de obra, a não ser as tribos indígenas, e a única maneira de começar a exploração é forçar os índios a trabalhar.”

Na passagem por Tabatinga, ouve do capitão Buston a informação de que, em março de 1910, “as autoridades estavam capturando todos os índios e cholos jovens a fim de mandá-los para a região do rio Napo e do Putumayo, em recrutamento forçado, apertados como carneiros em pequenos barcos. […] Para escapar ao aprisionamento, contou-me o capitão, muitos dos homens do lugar tinham fugido para a floresta”. E anota, conforme as informações do capitão,

“[…] a captura de índios, nativos, ou cholos habitantes de Iquitos, para as chamadas necessidades “públicas”, é feita abertamente. Ele afirma que homens eram mandados para o Putumayo, até 150, apinhados em barcos minúsculos como o Melita, ancorado ao lado do Esperanza. Eram agarrados nas ruas de Iquitos, recebiam a primeira de três mudas de uniformes de algodão azul, eram levados para treinamento e depois mandados para a “fronteira”. O barco Liberal, de propriedade de Arana (de má fama, segundo os jornais que li a respeito da questão do Putumayo).”

A viagem segue como um rico laboratório de informações que Casement vai anotando sem perder os detalhes do que ouve e vê. Lamenta que, embora esteja sob ordens do governo, não constitui uma comissão com autoridade para investigar de fato tudo o que ouve. Apesar disso, considera que há espaço, embora superficial, para descobertas. “Estamos enfrentando quatrocentos anos da conduta dos sul-americanos com os povos conquistados”.

Em 31 de agosto relata a estadia no Peru e o encontro com o prefeito da província de Loreto, “um tal doutor Paz Soldán, que recentemente foi nomeado para suceder o prefeito Zapata, mencionado mais de uma vez nas denúncias de Hardenburg. […] Zapata é suspeito de ter sido subornado pelos irmãos Arana”. E do prefeito escreve “um homem aparentemente correto, embora de modo algum familiarizado com a verdadeira situação do vasto território que deve governar”. Na conversa com o político, descobre que havia uma certa familiaridade entre o governo peruano e os irmãos Arana: “Foi somente então que deu a entender que o ‘comisario’, ou o magistrado que representava oficialmente o Peru no Putumayo, era um tal señor Burga, cunhado de Pablo Zumaeta” (Zumaeta era cunhado de Julio César Arana).

Em 12 de setembro, escreve ao ministro das Relações Exteriores e relata sobre as informações que colheu ao longo da viagem para Iquitos e na sua permanência no Peru. Escreve: “[…] De modo geral, as declarações feitas aqui em Iquitos são doentias e confirmam o caráter infame do tratamento dado aos índios, alegado por Hardenburg. […] Acredito que tenho a Comissão toda do meu lado e que agora chegaremos à região de Putumayo mais instruídos e com uma visão muito mais clara da situação”.

E confidencia: “Estamos todos sendo muito cautelosos e agindo em segredo (como se fôssemos nós os criminosos), pois é óbvio que os canalhas estão suspeitando de nós, principalmente de mim. […] Putumayo é “um livro lacrado”; mesmo em Iquitos é surpreendente como quase todos parecem estar ou com medo ou “envolvidos”.

Joaquim Onésimo Ferreira Barbosa é Doutor e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação Sociedade – PPGSCA e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
Esta é a primeira parte do artigo. Leia a segunda aqui. As imagens foram cedidas pelo cineasta Aurélio Michiles. Imagem em destaque: Indígenas no Putumayo. Divulgação/Amazônia Latitude.

 

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