As asas e serpentes de Vicente Cecim em Andara

Vicente Cecim. Cobra e borboleta

A literatura visionária do meu pai, Vicente Cecim, é também uma literatura de beduíno: ver através do deserto o caminho de chegada que, sendo este uma miragem, força o viajante a retornar ao mesmo ponto de partida e, em se repetindo, o força a retornar diversas vezes ao mesmo ponto. 

Então, diante disso, o andar deixa de ser real e se torna um “Andara”, hipotético. Se esse “Andara” reflete uma ação passada anterior, que outra ação foi essa senão o próprio “andou”, que se diluiu por ser uma miragem, uma volta em si mesma? 

A consciência do viajante chegou depois da chegada, tendo a iludida impressão de já ter chegado, quando essa chegada nunca ocorreu. Mas algo nele, uma voz, diz que ele já andou antes de andar, como um simulacro. 

Vicente Cecim

Vicente Cecim/ Arquivo pessoal

Nele, essa voz diz que algo ocorreu num passado hipotético, mas o passado mais recente se diluiu, se desfez como névoa, se tornou rarefeito como o vento. Esta eterna volta em círculos faz com que o viajante tenha tido uma experiência antes da experiência real passada, pressentindo que viajou sem ter chegado ao ponto final. 

Mas viajou. Ocorreu um ato imemorial em sua consciência, um passado antes do passado recente que se torna imemorial por conta do ato passado recente ter se desfeito como poeira desértica diante de seus olhos incrédulos, olhos de espanto. 

Onde começou isso que eu fiz? “Tenho certeza de que isso que eu acabei de viver foi uma miragem”, ele diz. “Mas sinto que a jornada que comecei antes disso parece real”. “Parece”. Então, ele conclui, “eu Andara, apesar de que eu nunca andei”. 

Então, o beduíno também se pergunta, no oásis das ilusões: “Mas o que é Isso que me anda, que se anda, mas apenas sonha em andar?”


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E ele, em seu rumar e rumor nômade, prossegue seu ruminar: “E por que eu me pergunto por que ando? É esse perguntar já um modo próprio de andar? E me perguntar sobre esse modo de andar é ele próprio já um outro modo de andar?”

Toda a materialidade do andar físico se desfaz no ar e se dissipa como grãos de areia nas desérticas epifanias e faíscas do vento, e a materialidade daquele que fala também a ponto de se redescobrir como sendo uma sombra… somente uma voz que se pergunta, uma voz que se anda… 

A materialidade física do andar cede ou se descobre como linguagem, voz, vagar metafísico. O andar se torna Andara…

O beduíno, então, se torna autoconsciente dessa miragem e, adotando sua lucidez e sabedoria filosófica, descobre ser o camelo ou dromedário, algo também não físico, não real, mas uma miragem que se desfaz – pois o camelo e o dromedário morrem- , descobre que esse meio de locomoção pelo deserto pode ser trocado por algo leve e invisível: a Literatura. 

E mais: se dá conta de que esse deserto, essa espécie de amigo fiel de seus pensamentos solitários e de suas andanças, esse viajar distante, nada mais é do que a própria vida, a qual nada mais é do que uma metáfora, pois que cheia de miragens, nós e as coisas, as coisas e nós. 

A vida se converte numa experiência lúdica em que as coisas se repetem e o ponto de partida, assim como o ponto de chegada, são miragens. Então, quando o beduíno se espanta com essa descoberta, o camelo se torna o refratário, o médium pelo qual ele fala a literatura sobre o deserto, que nada mais é do que a vida, a região-metáfora. Então surge “Andara”. Então, surge Vicente Cecim.

Um beduíno tornado escritor ou um escritor que usou seus olhos de beduíno do Oriente Médio para sua escrita sobre o deserto da vida. Afinal, o modo de ver do meu pai, ele herdou dos olhos sírio-libaneses e italianos do meu avô Miguel Cecim, um outro beduíno que viu as leis lúdicas e estratégicas que regiam o futebol aparentemente real (outra miragem).

Mas, conhecendo meu pai como conheço, ele me revelou todos os mistérios desde criança. Nunca me escondeu nada, e sempre fez questão de me revelar, através de conversas entre pai e filho, as coisas minerais, terrenas e metafísicas com a generosidade habitual de um cuidadoso pai metafísico. 

O modo de dizer e ensinar a um filho como quem conta estórias de grãos de areia, revelando um outro tipo de noite e um outro tipo de dia das coisas, abre o caminho do onírico como passagem secreta e sagrada para a porta de um novo e um outro mundo, selando e sacralizando a eterna, etérea e enigmática relação pai & filho. Na passada de bastão através dos ensinamentos filosóficos, me deixa preparado para percorrer o deserto, já sabendo do segredo de ser tudo uma feliz e encantada miragem desértica.

Posso dizer que, quando “Andara” começou em 1979, quando da “A Asa e a Serpente”, começou como a primeira viagem do beduíno que esperava chegar ao ponto de chegada, mas desconfiava de que esse ponto de chegada era uma miragem. 

livro A Asa e A Serpente, de Vicente Cecim

Livro de Vicente Cecim

O livro “A Asa e a Serpente, escrito quando eu tinha oito anos, ainda guardava características do realismo fantástico com seu sargento Nazareno. No entanto, ali se notava um pequeno romance com novos aspectos: uma literatura fantasma (como meu pai gostava de se definir), um elemento inovador e insurgente que parece ir além do realismo fantástico, rompendo a conformidade e a materialidade da prosa, sucumbindo ao elemento novo da forma e do verso dentro do romance. 

Mas é literatura mais do que realista fantástica. É literatura fantasma porque assume as miragens que são os personagens, porque assume que a literatura, sabendo disso, passa a falar dela mesma, e assim passa a entrar no jogo autolúdico, diluindo as fronteiras entre real e ilusório, porque tudo é um jogo. 

Uma metaliteratura pode matar seus personagens quantas vezes quiser, infinitas vezes, desenredar o  enredo, pois aquele que escreve sabe ser tudo uma invenção, uma tentativa, uma viagem, sem ponto de partida ou chegada. 

O nomadismo desse modo originário de ser literário lança o enredo à autodissolução e, mais do que original (isso é apenas um adjetivo), trata-se de uma escrita originária, daí a escritura. 

É uma escrita que esfarela o real, mas dele jamais se desfaz. Pelo contrário, com ele dança e prepara a festa dos que são feitos de penumbra, daqueles que são passageiros. 

Em “Andara”, há uma festa dos que são miragens, num jogo lúdico celebrando os que são feitos de areia através da linguagem, que vaga e democratiza os modos de dizer dos seres de sombra, o modo arenoso e granulado de dizer a verdade. 

Não a verdade do que é, mas a verdade do que seria, pois os seres de “Andara” vivem no oásis de suas miragens como sendo seu próprio modo de ser, e vivem felizes nesse oásis e se banham nas areias dele como fossem feitas de água fria e recalcitrante após uma longa jornada pelas áridas dunas da vida – esta sombra que brinca de falar através de nós.

Os personagens de “Andara” são mais dignos de serem reconhecidos como seres,  manifestações. E, enquanto personagens diluídos em seres, sabem que são fantasmas. Puros seres de fala fantasma. Alegorias. Fantasmas ontológicos. 

A Asa e a Serpentejá possui o real diluído e ao mesmo tempo condensado, a total diluição do real viria a ocorrer depois, a se converter em poesia ontológica. Sendo ainda romance, a obra me atrai como a primeira obra de meu pai Vicente Cecim por revelar uma dimensão latente, subjacente e subterrânea do nosso existir: um aparente conflito entre nossa dimensão Celeste e nossa dimensão Terrena. Somos infinitos e finitos. 

Ascendemos pelo espírito (asa) e nos arruinamos pela carne (serpente), revelando o conflito originário presente na cosmovisão do paraíso. Somos assim, feitos dessa duplicidade. Mas isso não é claro para nós, de modo algum claro para aqueles que ainda não sabem que estão dormindo (os inocentes). 

Os que estão em tenso estado de vigília diurna, ainda acorrentados à plena luz do dia. Os que ainda precisam de um pássaro Bacurau para furar-lhes os olhos, para adentrarem a vigília noturna, o estar acordado no escuro, o estado de onisciência, o estado de transe e saber único e ofuscante clarividência. 

Mais: sermos asa e sermos serpentes é nossa condição na terra, nosso modo de existir. Acontece que este conflito não está fora de nós, está na carne. Vicente Cecim sabia disso, sabia ser este conflito, na verdade, um jogo muito íntimo de nosso ser. 

A asa e a serpente não são dois seres; são dois lados de uma mesma coisa, são como o dia e a noite. São o jogo de luz e escuro. São o subterrâneo morrendo e revivendo várias vezes, se vestindo de dia e se despindo de escuro novamente. São como as diversas mortes do sargento Nazareno, que revelam e desvelam essa dimensão da literatura fantasma de meu Pai. 

Essa dimensão do jogo fantasmagórico de nossa existência, no qual nada é fixo a não ser o movimento do viajante, o movimento em torno das miragens.  O dormir / acordar entre o dia e a noite. Carne / Alma. Asa / Serpente. Nosso modo de ser originário. O jogo das sombras. O correr das crianças feitas de segredo e sombras, com asas nos flancos e pés de serpente a sonhar que existem dia e noite, a brincar de carne e espírito. Essa volta em círculos do beduíno viajante que sabe que sempre “Andara”, mas que nunca andou, revela a fantasmagoria das miragens que são os personagens. Dissolução. Ruína. 

      Ruína que se revela no entredizer e no entrever da Penumbra. A fresta como modo de ver e dizer soprado. 

      O meio-olho de lagarto que vê a terra.

      O Olho que escuta. 

      O dizer com terra na boca.

      O céu demolido e acinzentado como escândalo noturno. 

      Modo de ser desmoronado, modo de ser noturno.

      Literatura de Ruína.

      Que sabe que pode se gastar sem se gastar. Ao Desenredar o enredo. 

É possível transfigurar ou demolir a literatura, amando-a, como Vicente Cecim. Sempre fez e sempre me demonstrou o profundo amor pela literatura pelo fato de ela ser uma outra vida, a vida do possível. É necessária uma coragem filosófica para realizar isso. 

A literatura pode ser metáfora pura que se assemelha à vida, o deserto metafórico em que vivemos. E, para aproximar meu pai de Platão: todos são sombras camufladas de luzes, aparências de real, pois todos passam pela avenida do sonho, e não param de passar, como um carnaval de sombras. E, no entanto, por que não jogar esse jogo feliz e ludicamente, tal como bem o fazem as crianças? As crianças conseguem brincar com os lagartos.

Nesse sentido, a dimensão que melhor reflete a literatura de Vicente Cecim seria a libertadora dimensão do onírico, no sentido de que algo não é apenas um sonho, mas joga esse jogo. Onírico maiúsculo porque não seria onírico como mera categoria ou adjetivo, mas essência e substância das próprias coisas. 

Na filosofia, costuma-se diferenciar entre o ontológico e o ôntico: enquanto o ontológico trata da dimensão do Ser (do que em geral é estável, do que em geral é), o ôntico trata da dimensão do ente (daquilo que é instável, daquilo que pode ser ou não ser ou que é mero fenômeno fugaz). Em “Andara”, o ontológico (a Asa) dialoga com o ôntico (a Serpente), o celestial dialoga com o terreno e o subterrâneo na dimensão do Onírico. 

Eis porque as aves, os calangos, os lagartos e as árvores não poderiam ficar de fora de “Andara”. Eis porque uma Amazônia exuberante não poderia ficar de fora: eles fazem parte do deserto da vida, das coisas que falam com voz humana. Os ônticos falam na dimensão do ontológico, falam na dimensão do ser. 

A eles é dada essa dignidade filosófica porque, afinal de contas, em “Andara” o humano não é uma dimensão exclusiva do homem — por diversas vezes eu e meu pai conversamos sobre isso, e ele me revelou com clareza essa visão — o humano é uma dimensão das coisas, e somente porque associamos o humano à nossa razão o tornamos, de forma mesquinha, uma dimensão exclusivamente nossa. 

Capa do livro "Viagem a Andara oO livro invisível"

Capa da obra “Viagem a Andara oO livro invisível”

Mas o ser humano vem de húmus, terra, e nos apropriamos indevidamente deste termo. Eis porque é dado voz aos seres e animais da terra, enquanto seres e animais de “Andara”, região-metáfora da Amazônia: trata-se de uma democracia da existência, ecologia profunda.

Sendo “Andara” o seio ontológico onde brota o telúrico, é “Andara” uma Amazônia transfigurada. A Amazônia não é uma parte da terra, é a Região Terra. Floresta ontológica. Floresta com o direito cósmico de dizer e se dizer. Libertada das amarras mecânicas da razão. Se em “Andara” a Terra é uma voz, é dada voz manifesta aos seus seres.

Assim como meu pai sempre me dera voz para falar sobre minhas percepções desde criança, me levando pela mão de encontro à literatura ecológica. 

Sabendo que meu pai, Vicente Cecim, sempre afirmara ou sempre demonstrou serem seus dois preferidos Franz Kafka (o maior de todos, segundo ele) e Samuel Beckett, eu diria que “Andara” é feita, ou seja, é uma teia de:

Kafka (por lhe revelar o absurdo, o labirinto de que são feitas as leis do real);

Beckett (por revelar o experimentalismo, a vanguarda, a miragem da volta em círculos, a protoliteratura);

– A filosofia da sabedoria oriental (por revelar o deserto de Sansara, a miragem).

Guimarães Rosa (por revelar que a linguagem é jogo lúdico).

Jean Giono (por revelar a simbiose entre o cósmico e o terreno). 

Juan Rulfo (por revelar um elemento próprio do deserto, o vento como modo de falar rarefeito e um modo de falar vagante e andarilho. Pedro Páramo é “o mais mágico de todos os livros”, isto está escrito por ele dentro do próprio livro e eu concordo).

Luís Buñuel (por revelar a dimensão ótica e subterrânea do surreal e do onírico).

Andrei Tarkovsky (pelo fato da fenomenologia do cinema de Tarkovsky revelar nossa capacidade de alterar nossa temporalidade, outra grande miragem).

No ano de 1979, quando morávamos na Rua da Apinages, em Belém, relembro ter sido o ano mais cósmico de minha vida, o ano mais intenso e mágico da minha infância e da infância dos meus irmãos, cheio de descobertas e experiências, olhando para trás. Coincidentemente, foi o ano em que nasceu “Andara” através de seu primeiro filho, a “A Asa e a Serpente

Foi o começo de tudo: foi o ano em que o beduíno Vicente Cecim descobriu ser tudo miragem, o camelo e o deserto, e os transformou em literatura, nas Escrituras de Andara, o Grande Livro Sagrado da Vida. 

Tenho por mim que, eu ter sentido esse ano como o ano mais cósmico da minha existência, tem a ver com o grande acontecimento da visão de uma força universal e cósmica a se manifestar através de meu pai. 

Como essa força cósmica do nascimento da viagem de “Andara ooO Livro Invisível”, em 1979, não iria reverberar em mim? Os grandes acontecimentos alteram as órbitas dos astros, alteram as rotas do universo, o Big Bang foi o grande olho que se abriu, foi o grande espanto que tudo gerou. 

Assim como meu pai, eu também sou um beduíno que já compreendeu ser tudo uma miragem. Minha literatura já está no caminho em que ele me enveredou, tentando abrir e ver meus novos caminhos, novas óticas, novas miragens, fundar novas estéticas. Serei mais um a contemplar o desfile das sombras na avenida. Viver a vertigem do ser. 

Viva a festa da miragem da vida!

Vivam as asas e as serpentes de Andara! Viva Vicente Franz Cecim! 

Pois Vicente Cecim continua a falar e a escrever entre nós!

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Arthur Cecim é escritor, filósofo e professor de Filosofia, autor do romance Habeas Asas, Sertão de Céu!, entre outros escritos.

 

       

 

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