Obras Vivas: uma introdução sobre fotografia e arte

menina em barco no igarape das mulheres macapa

[RESUMO] Fotografar é construir narrativas nas quais os retratados terão maior ou menor grau de co-autoria quanto mais honesta e simétrica for a relação estabelecida com o mundo e as gentes. Entre a discussão da expressão uma imagem vale mais do que mil palavras e críticas ao fotojornalismo safári, autor relata a construção de sua obra e reflete sobre o que torna a fotografia uma arte.

Com as águas. Nunca contra elas. Nas águas: assim se fazem as muitas vidas amazônidas. “Esse rio é minha rua”, estampam os cartazes colados em praticamente todas as embarcações que atracam no Igarapé das Mulheres, em Macapá (AP), onde foi concluído meu parto como humano.

Aguardando a maré alta ou enfrentando corajosamente os banzeiros imensos na sizígia, os argonautas da Amazônia Oriental se deixam viver o Rio e seus regimes. Do alto das palafitas que permeiam as beiras ou lotam as ressacas que penetram as cidades de Macapá (AP) ou Belém (PA), num nítido exercício de demonstração de poderio, o Amazonas imenso é o sentido de tudo: fluxo e refluxo, sizígia, pororoca.

No encontro entre dois titãs que se põem a fazer amor alagando tudo, Amazonas e Atlântico, a vida segue o resfolegar dos amantes e se deixa enriquecer com seus frutos. Açaí nativo, pescada amarela e filhote, camarão no matapi. Os argonautas amazônidas se fazem devir em função do Rio e seus humores. É das águas que retiram o de-viver, que se avizinha, como já escrevi. É nas águas que se faz a vida, é das águas que se vive.

Seja em terra, ainda assim nas águas, como também já disse em outras oportunidades, é de outros morares, viveres, existires, que se fazem as vidas amazônidas. Casas e barcos são artefatos poéticos que manifestam o pacto milenar destas tantas e tão várias gentes com as gentes outras, todas elas, que povoam o cosmos. Principalmente o Rio. Já afirmei anteriormente e reitero: é cada vez mais imperativa a necessidade de mudarmos o paradigma do Brasil que desconhece as Amazônias e que, portanto, não Ama.

Quando Leandro Tocantins apresentou seu livro “O rio comanda a vida” (publicado em 1952) para Getúlio Vargas, teve de ouvir do então mandatário que seu projeto para o Brasil seria inverter a relação e fazer, através de sua atuação, com que o rio fosse comandado. Houve muitos projetos nesse sentido: usinas hidrelétricas, barragens, comportas, canalizações e estradas. Como um Fitzcarraldo, porém, o Estado e o capital deram “com os burros n’água”, para felicidade geral das muitas e mui ricas e diversas nações amazônidas.

Todos os projetos voltados para a Amazônia se valiam do paradigma “natureza versus cultura”, ou melhor, “cultura versus natureza”, em que o Homem — essa síntese de muitos possíveis associada geralmente ao patriarca branco — seria o senhor da vida e dominaria a “natureza”.

Esse paradigma está no cerne da cosmologia ocidental: desde o Antropocentrismo renascentista ao evolucionismo (na verdade, uma deturpação das teorias de Darwin, que nunca falou em evolução) e ao positivismo, encontramos traços do mito fundador do pensamento ocidental, resumido pela fórmula: “homem como superação da natureza”. Natureza igual a matéria inanimada, inerte e não reativa.

Esses projetos foram por água abaixo justamente por não se adaptarem como os seringueiros, quilombolas e retirantes, que se mudaram para o bioma ao longo do tempo. Eles aprenderam com os povos indígenas suas tecnologias e passaram a adotar, à sua maneira, conhecimentos e paradigmas sobre os ambientes e suas gentes, modificando sua relação com eles e influenciando, inclusive, sua organização social e cosmovisão. A água permeia, de fato, tudo nesses tecidos sociais. É seu Devir e se infiltra em cada desvão dessas cosmologias que, poeticamente, são essencialmente líquidas, mórficas, plásticas.

Passando a viver com as águas, em parceria com elas, as muitas gentes que ocuparam a Amazônia, com o passar do tempo, dedicaram-se a desenvolver estratégias como a dos povos ameríndios. Em lugar de superá-la ou domá-la, faziam contratos, pactos, acordos com a água e seus regimes e gentes, valendo-se dela a seu favor.
Foi por isso que me apaixonei desde sempre e é por isso que mais da metade de minha curta vida é dedicada a vislumbrar, qual um Orfeu extático nas muitas Florestas, sua beleza e complexidade; ouvir suas gentes e contemplar-lhes a fronte, negociando com elas.

Negociar é o ato mais respeitoso que se poderia esperar e, assim também, predar e deixar-se predar no idioma delas: reconhecer-lhes a humanidade em sua plenitude e olhá-las nos olhos, a fim de negociar por meio de xamanismo, agenciamento, feitiço, caça e mesmo guerra. É tudo o que a epistemologia ocidental não permite que se faça, pois somente se negocia com gentes, com humanos. Não se faz política com inumanos: a esses, o pensamento ocidental moderno burguês suplanta.

Max Weber lançou em seu precioso “A ética protestante de o espírito do capitalismo” as bases para uma investigação que pouco percorremos, não obstante tão rica seja essa seara. Sua leitura traz a passagem bíblica em que os homens, depois de buscar Deus a todo custo nos rios, bosques e lagos, sobem à montanha e, ao ter com Ele, ouvem que Ele não está na Terra. Weber correlaciona de maneira magistral esse episódio mitológico que conforma a origem e a justificativa para o capitalismo como artifício humano nas bases da cosmologia capitalista-burguesa-cristã. Sua razão de ser, seu DNA, é justamente a aniquilação total da natureza a fim de, convertendo-a em objetos manufaturados, manejar valores de troca e de uso para gerar riqueza.

Como Deus não mais está no mundo, provocando seu desencantamento, aos homens burgueses é facultado dilacerar, estripar, estuprar, domar a Natureza justamente para, nesse exercício de violação, fazerem-se humanos.

Tudo isso contribui para compreendermos uma das peças fundamentais da fotografia. Anuncio aqui que enquadro a fotografia como narrativa. Ela é discurso e, como tal, parte de um emissor (o ponto de vista, o viés do fotógrafo) para um receptor. Portanto, entender minimamente como se estrutura a cosmovisão dos observadores, receptores, da fotografia, é crucial para saber adverti-los a não projetar categorias equivocadas sobre elas. Adiante falarei sobre os riscos disso.

Vemos, pois, que é da origem cosmológica, estrutural, da cosmovisão ocidental que o fazer-se humano implica em obrigatoriamente negar todas as outras humanidades possíveis. Ao aniquilar todas as demais formas de vida e entes do cosmos, o fazer-se humano, desencantado, passa a se resumir exclusivamente a recursos como a voz passiva: aquilo a que se pode recorrer ao bel-prazer.

É temendo justamente a projeção dessa trama epistemológica às minhas fotografias, por não ter controle sobre a perspectiva do observador, que recorro às palavras, realizando, assim, a premissa (mais adiante detalhada) de que uma fotografia jamais valerá por sequer uma palavra e que, ao contrário, só poderá ser plenamente compreendida mediante mais de mil palavras.

Para chegar à explicação mais detalhada acerca disso, penso ser importante contextualizar a perspectiva predada e predante, como bem fazem Viveiros de Castro e Tânia Stolze de Lima, do autor das fotografias para que o leitor possa contemplá-las com os pés atrás, ao saber onde se funda o ponto cego dessa perspectiva e, assim, fazer a necessária crítica.

A fotografia surgiu para mim como um necessário suporte, sempre associada à escrita e à reflexão etnográfica sobre o flanar pelas beiras. Necessidade intrínseca de registrar a profusão de gentes e enredos apaixonantes e, com o tempo, desejo de formar uma narrativa sobre essas alteridades todas. No entanto, simplesmente capturar, qual um “Saturno” de Goya, um filho, além de me parecer indecoroso, resultou problemático, porque passei a preocupar-me com o julgamento que, à minha revelia e à revelia das Amazônias, poder-se-ia fazer dessas jaulas.

Qual um hediondo “Saturno”, o fotógrafo exercita de maneira pedante — e por vezes vil — o enclausuramento de fragmentos do Tempo. Devorando seus filhos, em 1/125 segundos, 1/250 ou 1/500 segundos, o fotógrafo realiza a triste máxima de Ovídio: tempus edax rerum, justamente ao tentar eternizá-lo. Capturando uma imagem, fenômeno, do mundo e imprimindo de maneira predatória sua perspectiva sobre o mesmo, o fotógrafo enjaula os filhos de Saturno, o que pode ser pior que deixá-lo que os devore – que é como as coisas devem ser.

Mais do que isso, o fotógrafo retrata o que ele vê: imprime sobre a película o mundo como ele deseja que seja narrado, pautando-o, estabelecendo o critérios e parâmetros pelos quais deve ser indexado… mas ai! Tal vão exercício de fazer-se a si mesmo “Saturno”, eternizando-se ao cristalizar-se enquanto foco narrativo, ao criar uma versão sua do mundo, é lida de infinitos modos por infinitos observadores.

Isso não seria um problema se as fotos em questão não retratassem o Diverso. Seria agradável tomar um brandy discutindo um fotograma de algum renomado fotógrafo contemporâneo em algum clube de jazz, versar sobre sua reprodutibilidade e implicações, a aura da foto enquanto artefato artístico, etc. se a fotografia incidisse sobre o Harlem ou algum café de Paris.

Contudo, quando ela incide sobre algo radicalmente diverso da epistéme ocidental, não fazer considerações meta-fotográficas e textuais pode implicar numa apropriação terrivelmente colonialista e assimétrica, que induz poder nas relações.

Uma vasta discussão acerca das relações de poder oriundas do fazer etnográfico pode ser consultada de maneira sublime no clássico “A experiência etnográfica” de James Clifford e no belíssimo “Writing culture” que Clifford organiza com Georde Marcus. De fato, Clifford acerta muito ao partir da problematização do uso da “objetiva” por Bronislaw Malinowski em seu “Argonautas do Pacífico Ocidental” e da narrativa de um etnógrafo polonês nas ilhas Tobriand e os leitores de sua obra, os destinatários dessa mensagem.

Digo tudo isso para registrar, de maneira enfática, que a fábula “uma imagem vale mais do que mil palavras” vai por água abaixo quando posicionamos o fazer fotográfico em seu devido lugar: caderno de campo não pode resumir a etnografia, assim como não apresenta ao observador quase nada do mundo retratado, apenas elementos que suas categorias culturalmente concebidas a priori lançam sobre ele.

Quando é da Diferença e toda sua riqueza que se trata, pressupor que os olhos destreinados saberão contemplar um registro fotográfico puro e simples é equivocado. Pareidolias! Os homens enxergam no mundo aquilo que ele reflete de suas categorias do entendimento; essas, essencialmente culturais, qual um personagem de Pirandello.

Assim, uma fotografia isolada que retrate uma casa ribeirinha, se contemplada por um leitor que nada conhece de Amazônia, fatalmente será lida nos registros equivocados e perigosos da pobreza, da escassez e da “falta de” (luz, saúde, educação ou conforto) que esse leitor foi previamente formado a lançar sobre tudo o que difere de seu apartamento na Vila Madalena, por mais bem-intencionado que seja ele.

Então, as mil palavras se convertem na mais perigosa falácia quando é de Diferença que se trata. Isto porque, ao suprimir as explicações conceituais a fotografia, se não for conceitual e abstrata, ou se não retratar algo familiar ao observador, apenas recria alegorias – e aqui Clifford é absolutamente crucial. Sobre Arte e Amazônia, recomendo a leitura da resenha que escrevi no blog Pneumotoráxico sobre a importante pintura do amazonense Cássio José da Silva: é de alegorias que se tratam as muitas “obras” que produzem uma versão “para inglês ver” das Amazônias.

Essa é a primeira consideração que julgo oportuna: sobre a fotografia em si, que se pretende Objetiva, cumpre salientar que ela apenas objetiva a subjetividade do observador. Em se tratando de relações assimétricas, aquelas que têm a diferença como pivô, ainda desprovidas do necessário aparato decolonial, os pré-conceitos do observador podem ser objetivados pela objetiva. Isso é muito perigoso por reiterar as assimetrias que, assim, são convertidas em artefato. Assim, é possível afirmar que cada imagem é que carece de mais de mil palavras para se fazer contemplar adequadamente.

Crianças brincam à beira do rio no Estaleiro do China, em Santana, no Amapá. Bruno Caporrino/Amazônia Latitude

Dos sentidos

Para a compreensão desse corolário, aqui apenas sucintamente explicitado, é importante abandonarmos a fetichização da fotografia como objeto artístico com valor per se. Esse é outro equívoco, menos perigoso, que eu não gostaria que permeasse a observação dessas modestas fotografias.

Assim como nos ensina Ferdinand Saussure (1857 – 1913), o significado, o valor, de um signo não reside nele, mas nas relações que ele instila, obriga e conforma dentro de um sistema. Em outras palavras, o sentido das palavras não está nelas (prova disso é que ler o dicionário de outro idioma não te faz pensar nesse idioma) mas sim nas relações que cada termo (palavra, conceito) proporciona.

O mesmo se dá com a fotografia. Se ela é objeto, é apenas enquanto produto de relações do fotógrafo, seu autor, com os homens, mulheres, crianças e outras e outros que se deixam fotografar com maior ou menor consentimento. Fotografia é estar-no-mundo e, assim, consagração de perspectiva: é o ponto de vista do fotógrafo que, recortando o mundo com sua objetiva, subjetiva a realidade fugaz a fim de converter seu simulacro (a fotografia) em narrativa.

É de narrativa que se trata quando versamos sobre fotografia. Que me perdoem Barthes e Sontag, mas a discussão não vai pela via da obra de arte e sua reprodutibilidade ou sua aura, seu punctum. Narrativa, a fotografia consiste numa apropriação do mundo por meio de um recorte, que é, por sua vez, produto de negociações mais ou menos claras (e, portanto, mais ou menos honestas) do fotógrafo com as gentes e entes que se deixam (ou não) retratar. E isso, senhoras e senhores, é disputa e poder. O real e verdadeiro poder está na legitimidade da narrativa, e a era da Pós-Verdade está aí para provar isso.

A perspectiva do fotógrafo é consagrada no instante exato da tomada (a obturação, o instante decisivo), ao manifestar sua posição e, portanto, relação com o mundo em que está inserido. Fotografar, para mim, além de produção de narrativa, é poder, porque é essencialmente produto de muitas e complexas negociações, sempre políticas, com o mundo e com quem se deixa incluir nessas narrativas.

Assim sendo, o ato de apontar a fálica e ameaçadora objetiva exige pudor, caso se queira ter ética. O respeito a quem se quer retratar também exige que essas negociações sejam claras – mesmo que tácitas. No meu caso, são fruto de diálogos que duram muitas horas ou dias: caderno de campo.

Essas premissas que meu estar-no-mundo potencializaram, ao permitir que meu olhar fosse impresso em nitrato de prata, se associam, por fim, ao axioma: fotografar é construir narrativas nas quais os retratados terão maior ou menor grau de co-autoria quanto mais honesta e simétrica (e nunca será plenamente simétrica) for a relação estabelecida com o mundo e as gentes.

São eles, afinal, que escolhem a pose, o ângulo, o que de si desejam que seja mostrado, quando as negociações, silentes e tácitas como uma dança, em que se enquadra e fotometra infinitas vezes sem clicar, perfazem a corte. Voltemos ao tema da seleção de fotografias que venho fazendo desde que pude me fazer realmente humano, ou seja, quando tive a honra de poder vir viver nas Amazônias.

Os muitos modos de viver com as águas, em acordo e consenso com as Amazônias, podem ser contemplados por meio da beleza de cidades como Afuá e das comunidades ribeirinhas, ressacas e vilas, em que casas e barcos interagem harmonicamente, elas mesmas obras de arte. O Rio comanda a vida que, nesses contextos, flui na labuta diária que instancia modos de produção da vida radicalmente diversos do citadino-burguês.

Nesse sentido, apaixonei-me desde o primeiro minuto pelas embarcações de madeira que consistem nos meios de vida de tantas gentes e comunidades. Persegui, assim, os carpinteiros que as levantam a partir da quilha, do talha-mar, e as perfazem como artistas sábios, com suas próprias mãos.

Feitas à mão, sem gabarito escrito ou planta que não aquela que está na mente do carpinteiro que, muitas vezes com a enxó, dá formas belíssimas à cavernames e apruma braçames com a maestria de um Deus que, criando barcos, realiza a poiesis em seu grau máximo. Poético manifestar de séculos de saberes socialmente construídos, cada lancha, canoa ou barco é um artefato artístico único desde seu nascimento, na madeira da floresta, até sua vida flutuante.

O arvoro do convés, a curva de uma roda de popa, a espessura de um vedove: do encaixe das falcas ao entalhe dos cavernames, passando pela forma e tamanho dum cadastrinho, revelam que é da mais fina arte que se trata.

Os carpinteiros navais da Amazônia costumam classificar as embarcações em obras vivas (a parte relativa ao casco, aquela que fica abaixo da linha d ́água ou em contato direto com ela) e as obras mortas que, ironicamente, são as estruturas que se encontram sobre o convés e onde se passa toda a vida.

Com as águas, nunca contra as águas, as vidas amazônidas realizam-se, vivas, na água, no singrá-las perene; e é nas obras mortas que se vive. E realmente se vive à bordo: mais do que meios utilitários de transporte que comunicam comunidades e vilas, cidades e municípios por meio das águas, as embarcações, feitas à mão para flutuar, valendo-se da própria resistência da água (e não lutando contra a água), são casas e moradas: lares.

Assim, há mais de dez anos fotografo embarcações, portos, beiras, igarapés, rios, casas e, sobretudo, estaleiros, a fim de construir uma narrativa própria sobre esse universo que as embarcações tão bem sintetizam.
De estaleiro em estaleiro, em Macapá (sobretudo no estaleiro do Sargento) ou em Santana (estaleiro do Seu China e os estaleiros do Elesbão), no Amapá, passando por Breves e Afuá, no Pará, dediquei meus dias a estar com esses carpinteiros e a ter a honra de vê-los levantar obras de arte.

Desejando imprimir-me nesse universo tão significativo (que dá sentido à minha existência), senti, logo nos primeiros meses, a necessidade de fotografar tudo isso a fim de construir uma narrativa pessoal sobre tudo isso. Sabendo, desde sempre, que essa narrativa é uma entre tantas, assumi o máximo possível meu ponto de vista, demarcando-o, a fim de documentar não somente o mundo amazônico e suas gentes e barcos, mas também minha posição nesses cenários. Assumindo não tanto as glórias, mas, sobretudo, a responsabilidade pelo teor da narrativa.

Além do safári

Apaixonado por fotografia desde muito cedo, pude contar com a sorte de lançar mão de uma preciosa Zeiss Ikon Contaflex de 1957 e, obtendo as películas, oito anos nas beiras e estaleiros do Amapá e do Pará, fora os anos vividos no Amazonas, onde as técnicas e feitios das embarcações são diversos e instigantes. Assim, optei por construir essa narrativa sobre os artistas e argonautas em preto e branco, usando película 35mm e, sobre isso, faço algumas considerações.

É importante manifestar que a opção pela fotografia analógica em preto e branco não se deveu ao intuito de relegar ao passado da teleológica história ocidental os viveres e fazeres amazônicos. Digo isso, porque essa parece ser a tendência de alguns fotógrafos, o que é muito perigoso, pois reitera pré-conceitos evolucionistas bastante refutáveis sobre a Amazônia.

É como se fazer fotografia sobre a Amazônia fosse ir a um safári em que “primitivos, antepassados, ancestrais, animais, selva” e gentes — a tudo isso associado — se deixariam fotografar como fósseis vivos de um mundo marcado pela “falta-de”, involução e “primitividade”.

Uma vez mais, voltamos à falaciosa e perigosa premissa, segundo a qual a imagem bastaria, dispensando palavras. Pareidolias são extremamente perigosas: o exercício inato ao olhar humano que, qual um polvo, lança ao mundo seu estômago para só então devorá-lo, pode implicar, como geralmente implica, na concretização de preconceitos.

É por isso que, para mim, fotografar nunca esteve dissociado de refletir sobre esta prática como um exercício bastante visível de fenomenologia e, devo ser sincero, dizer que este é um exercício bastante condenável, perigoso e problemático. Para mim, podemos falar sobre fotografia quando vemos a defesa de Kant em “Crítica da Razão Pura” de que os homens somente enxergam do mundo aquilo que ele reflete das categorias projetadas, num constante exercício à la Procusto de cortar pés e cabeças a fim de encaixar as vítimas em camas de tamanho predeterminado.

Esta é a razão de ser tão perigoso deixar o objeto fotográfico falar como um autômato, sem a intervenção de seu autor e sem a supervisão do texto: incapaz e inimputável, a fotografia não pode ser Arte sem texto. Não quando se trata da Diferença e se tem em mente o olhar como predação e contra-predação.

Esta deve ser epistemológica e, portanto, politicamente responsável pelo produto de seus relacionamentos com o mundo e suas gentes. Estando a Diferença entre o autor e tudo o que ele retrata, isso é mais urgente pela contemplação dessas fotos também se dar numa relação assimétrica. Em se tratando de narrativa, trata-se de poder e, assim, interpor o texto a fim de pautar o olhar do observador é obrigatório. Claro, no caso de se desejar manter alguma ética na relação com a Diferença fotografada.

“Veja como são pobres!”, “é hilário ver antenas de TV em casas flutuantes no meio da selva: progresso e primitivos convivem juntos na selva virgem”, “quis mostrar como os índios são amigos dos animais, por serem mais natureza e sempre os mostrei com seus bichos silvestres de estimação”. Essas são afirmações que se pode constatar a cada exposição ou premiação que conta com fotografias da Amazônia ou, pior, nos comentários que sobre essas fotografias se faz em redes sociais.

Os fotógrafos, infelizmente, não ficam livres, porque, perdoem-me a franqueza, parece que fotografar tornou-se ofício dos que não querem ler, resumindo-se a um registro mecânico de imagem sobre imagem, reiterando estereótipos que agradem ao destinatário e clichês que sabidamente produzem prêmios.

Aos que acham que exagero, lanço uma reflexão. A alteridade é o pivô das premiações em fotografia desde sempre. Contudo, basta que se pegue o catálogo de qualquer premiação para se ver uma fotografia de criança indígena sem etnia identificada, feita sem autorização do grupo, ou uma foto de algum morador de rua de rosto gretado, exageradamente envelhecido e dramatizado em camadas e camadas de photoshop, a fim de causar o assombro diante da diferença (sempre associada a escassez, pobreza, falta de).

É uma crítica inconveniente? É. No entanto, é mais inconveniente constatar os estragos feitos ao movimento indígena com a reiteração irresponsável de estereótipos manifestos em fotografias que circulam sem identificar a etnia, a relação com a imagem, suas lutas e reivindicações etc.

A alteridade, humana e não-humana parece ser o prato principal da fotografia de safári que confunde fotojornalismo com o foto-shownarlismo, nos termos Árbex Jr. Digo tudo isso, enfim, para afirmar que a escolha pelas tomadas em filme 35 mm preto e branco se deve a um esforço de harmonização entre a narrativa construída, seus personagens e o contexto. A poética que busco criar com a narrativa fotográfica se centra nas Obras Vivas e seus artífices, nos viveres sobre/com as águas amazônidas e no poético fazer à mão embarcações e casas de madeira.

Minha fotografia é feita à mão. Assim como o carpinteiro naval imprime na Itaúba Amarela a forma dum talhamar, busquei imprimir sobre haletos de prata sua imagem, depois revelada à mão.

Artífices relacionando-se, sentei-me com Walmir e China, Amiraldo e todos os carpinteiros que me contemplaram com a honra de acompanhar um pouco de seu trabalho. Expliquei-lhes como a imagem se imprimia no negativo, levei a eles as fotografias reveladas e discutimos bastante sobre embarcações e, claro, mulheres, que sempre perpassam todo o universo dos barcos: pois é para elas que são feitos.

Dona Nazaré no estaleiro em Breves, no Pará. Bruno Caporrino/Amazônia Latitude

Assim, as tomadas que venho compilando no portfólio Obras Vivas, que já passou das mil fotos, são todas feitas à mão, na relação com os homens e mulheres que, juntamente comigo, fazendo um pacto tácito ao sorrir para mim depois de pedir que eu os fotografasse, constroem essa narrativa. É a elas e eles que quero creditadas essas histórias, das quais sou apenas o narrador último por ser o que ficou com a missão de pedir ao saudoso Tuguo Ogava (in memoriam) que as revelasse. Quase que por ser o que ficou com a bola (a câmera).

Por fim, gostaria de registrar também que a opção pela fotografia analógica em preto e branco atende, além de várias premissas estéticas, de ordem epistemológica e ideológica, a mais uma permissa, também afeita a esse campo. Já que falei no Crítica da Razão Pura de Kant, gostaria de lançar mão da bela metáfora a que ele recorre quando versa sobre as limitações impostas pelas categorias do entendimento quando se projetam no mundo para apreendê-lo convertendo noumenom, a coisa em si, em fenômeno: a pomba voa justamente por conta da resistência que o ar oferece à suas asas; a pomba voa justamente por haver gravidade, portanto.

É somente no manejo de limites que se faz o viver. É justamente reconhecendo a inexorabilidade da morte que se faz um bom viver e é assim que os muitos viveres amazônicos se realizam: reconhecendo os limites, os humores, o tempo e a temporalidade, o clima e as intempéries que as Amazônias lhes apresentam.

Com as águas, e não contra elas. Sobre as águas, e não barrando-as ou canalizando-as. O próprio existir em ressacas e beiras, sobre palafitas, na Veneza marajoara do meu coração que é Afuá, revela a realização dessa postura diante do mundo: as águas sobem, no fluxo e refluxo das marés, o rio se comporta como “é de seu ser”. Longe de fitzcarraldianamente tentar barrá-lo, essas gentes todas sempre foram sábias para consolidar regimes de conhecimentos e de relações calcados no pacto respeitoso com os limites impostos pelo Rio.

Flutuar não é outra coisa além disso: valer-se do empuxo da água, da gravidade, justamente, para flutuar e não sucumbir. É reconhecer na raiz desse ato um risco iminente e, tendo a coragem de lavrar obras de arte flutuantes que singram marés e pororocas, banzeiros como os da Foz do Amazonas, sair em busca dos peixes que a lançante der. E queiram Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e Iara que dê.

Por isso, fotografar com uma Zeiss Ikon Contaflex de 1957, cuja objetiva me obriga a posicionar-me e reposicionar-me, afastar-me, agachar-me, ajoelhar-me, e sobretudo, aproximar-me, cuja objetiva não pode ser intercambiada, sem flash, sem zoom, implica em negociar com as gentes e os cenários as condições para que, de minha negociação resultem posicionamentos possíveis e necessários ao recorte em que consistirá a narrativa.

Por isso faço fotografia analógica 35 mm: só possuir uma película com 36 poses, rezar para o suor do rosto não ter paralisado o fotômetro de selênio que sofre com a umidade e o calor; cuidar para que o retratado não se mova, por mais descontraído que quisesse que estivesse, porque a luminosidade é baixa e, assim, deve-se abrir bastante a objetiva e usar velocidade mínima; usar um equipamento que só permite 5 velocidades de obturação; contar com a sorte de ir a São Paulo duas vezes por ano e conseguir ter tempo de entregar as películas para o saudoso senhor Ogava e ter tempo de recebê-las (e depois contar com sua generosidade de enviar por correio, quase que exclusivamente). Todos esses pequenos desafios fazem parte da resistência necessária ao fazer artístico que essas modestas fotografias visam documentar, é disso que se faz seu singrar.

Contar com as limitações impostas pelo sistema é condição essencial à produção do sentido. Voltando à Saussure, não é na fotografia que está o sentido, mas nas relações que ela consagra e, outrossim, é nas limitações do sistema de termos que se ancora o sentido.

Jogar implica justamente em manejar as regras sem quebrá-las. É aí que está a beleza de qualquer esporte. Assim também com o fazer e pilotar embarcações e fotografá-las: é de pactos que se trata, sempre.

Cuido ter me alongado demais e peço perdão às leitoras e leitores por isso e, se ainda estiverem aí, reitero: a rigor, é de palavras que se faz a fotografia como narrativa. Como técnica que é, ela se torna arte somente na medida em que realiza premissas estético-filosóficas. Até então, qualquer radar de velocidade ou câmera de segurança também são fotografia. Viram arte quando se faz arte disso. A falácia da imagem valendo mil palavras fica muito mais clara quando apontamos as objetivas para a bela, rica, imprescindível e apaixonante Diferença e podemos contemplar as Amazônias um pouco mais de perto.

Bruno Walter Caporrino é cientista social pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Atuou como indigenista em diversos projetos. Fotógrafo amador, dedica-se à fotografia preto e branco analógica e ao portfólio Obras Vivas há dez anos.
Imagem em destaque: Embarcação no Igarapé das Mulheres, em Macapá (AP). 2012. Bruno Caporrino/Divulgação/Amazônia Latitude

 

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