As cheias do Juruá e o impacto em Carauari, no Amazonas

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[RESUMO] Autor conta como as cheias em Carauari forçam a mudança dos hábitos tradicionais de ribeirinhos e reflete sobre as relações do homem com a natureza

Escrevo esse relato baseado naquilo que vi, ouvi e senti numa viagem de campo pelas comunidades ribeirinhas da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Uacari e da Reserva Extrativista (Resex) Médio Juruá, no município de Carauari, no Amazonas, a cerca de 780 km de Manaus. Foram 45 comunidades visitadas, em uma jornada que ocorreu entre os dias 6 e 12 de abril de 2021, para realização de cadastros de assistência técnica e extensão rural pelo Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal do Amazonas (Idam). 

O deslocamento tinha o objetivo de realizar o encontro de órgãos que articulam políticas públicas com as comunidades ribeirinhas da região, o que ainda não havia ocorrido ao longo do último ano por causa da Covid-19. Adotamos todas as precauções necessárias para o momento que estamos vivendo, e todos os integrantes da equipe realizaram testagem e obtiveram resultado negativo para a doença. 

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Barcos ancorados na comunidade Santo Antônio do Brito, RDS Uacari. Arquivo pessoal/David Franklin/Amazônia Latitude

Assim como a expedição, o Médio Juruá é formado pela coalização entre diversas organizações dos setores público e privado e da sociedade civil organizada. A organização social e o empoderamento comunitário são características singulares no Médio Juruá, cuja construção é marcada pelo Movimento Eclesial de Base (MEB) e o Conselho Nacional de Extrativistas (CNS), pela criação de entidades como a Associação dos Produtores Rurais de Carauari (ASPROC) e a Associação de Moradores(as) Agroextrativistas da RDS Uacari (AMARU). E também pela governança policêntrica, com diálogo entre diferentes atores, envolvendo setor empresarial e poder público nos níveis municipal, estadual e federal; organizações da sociedade civil locais, regionais e internacionais; e outras organizações que colaboram com o território.

Nesse território, catalisador de sensações, é possível sentir a Amazônia entranhada na biodiversidade, na riqueza dos povos da floresta, nos produtos da sociobiodiversidade e nas lutas de classe por um desenvolvimento sustentável participativo e protagonizado pelas populações tradicionais.

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Região alagada no Médio Juruá. Arquivo pessoal/David Franklin/Amazônia Latitude

Na região, os povos ribeirinhos trabalham com agricultura, principalmente de mandioca, coleta de sementes para a produção de óleos vegetais, extração de látex da seringa para a borracha, manejo de pirarucu e coleta de açaí, entre outras atividades. Essa atuação diversa de mulheres e homens do Médio Juruá expressa a polivalência dos ribeirinhos na Amazônia [2].

As atividades socioprodutivas das comunidades ribeirinhas na Amazônia ainda perpassam por outro delimitador: a dualidade paisagística provocada pela sazonalidade dos rios. O rio é agente regulador e central da vida ribeirinha [3], além de ser meio de transporte e de estabelecimentos dos fluxos e fixos. É o movimento de subida e descida dos rios que definirá o sucesso ou fracasso das atividades socioprodutivas na região. Dessa forma, é a água que dá o ritmo da vida na região.

Durante a viagem de campo, pudemos observar como uma grande inundação, conhecida popularmente como cheia, afeta o cotidiano ribeirinho. No dia 10 de abril, segundo a Defesa Civil do Amazonas, a cidade de Carauari reconheceu a situação de emergência e que já não conseguia assistir as vítimas de desastres com os próprios recursos.

Por conta da subida rápida dos rios, várias comunidades das regiões de várzea tiveram que coletar mandioca às pressas. Logo foram organizados sistemas de trabalho em conjunto, chamados de puxirum, onde toda a comunidade auxilia no processo produtivo da mandioca para otimizar o tempo de produção da farinha.

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Inundação de 2021 na RDS Uacari. Arquivo pessoal/David Franklin/Amazônia Latitude

Entretanto, mesmo diante dos ajustes para reduzir os impactos da inundação no cotidiano social e produtivo das comunidades, não foi possível evitar que o rio inundasse residências ribeirinhas e palafitas e retirasse centenas de pessoas de suas casas, levando-as para a moradia de familiares em terra firme ou para a própria sede do município de Carauari, escolas e centros comunitários.

Ou que vivessem dentro de suas residências em marombas construídas acima do assoalho das casas para elevar eletrodomésticos, camas e outros objetos.

O dano na produção, provocado pela inundação nas comunidades ribeirinhas de Carauari, passou de R$7,2 milhões, de acordo com agricultores familiares ribeirinhos. As informações foram coletadas por meio de visitas dos agricultores ribeirinhos até a sede do Idam. Os dados foram processados por técnicos e levaram em conta os valores atuais praticados em Carauari.

Entre as principais culturas impactadas pela inundação de 2021, estão mandioca e banana, que representam mais da metade das perdas de produção.

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Agricultores perderam produção, apesar das tentativas de organizar a colheita e o processamento. Arquivo pessoal/David Franklin/Amazônia Latitude

Outro produto de cultivo tradicional que merece destaque nesse processo de perda é a coleta de sementes oleaginosas, como a andiroba (Carapa guianensis) e o murumuru (Astrocaryum murumuru). Ambas sofrem os impactos desse evento climático em Carauari. Manoel Cunha, liderança social em Carauari e gestor da Resex Médio Juruá pelo ICMBio, diz que as chuvas demoraram a ocorrer em Carauari, reduzindo a frutificação da andiroba. Mas, em janeiro de 2021, houve um acúmulo enorme de chuva, aumentando exponencialmente o nível do rio e levando os frutos de murumuru a caírem na água.

Para minimizar os impactos gerados pela cheia extrema, as organizações sociais de Carauari, por meio do Fórum do Território do Médio Juruá, realizaram uma campanha de doações de alimentos que conseguiu chegar a todas as famílias ribeirinhas impactadas.

Porém, essas populações precisam de respostas mais eficazes do poder público para redução de sua vulnerabilidade social causada pela inundação e a pandemia. E, sobretudo, para possibilitar a criação de estratégias adaptativas que aumentem a resiliências das populações ribeirinhas locais.

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Ruas alagadas em Carauari, Amazonas. Arquivo pessoal/David Franklin/Amazônia Latitude

O Médio Juruá é um território de belezas naturais incríveis, com um acúmulo social enorme desencadeado pela organização e pelas lutas em defesa da vida ribeirinha, da conservação da biodiversidade e do desenvolvimento sustentável. Em Carauari, é possível sentir de maneira mais clara como a sustentabilidade pode existir nas realidades locais e no modo de vida entrelaçado à organização social e ao diálogo entre diferentes atores de níveis distintos.

Nas discussões, análises técnicas e nas mudanças paisagísticas, fica claro como um evento extremo climático ocorrido em 2021, gera impactos significativos na vida das populações ribeirinhas na Amazônia, tornando os hábitos e costumes que existem há décadas entre o homem e o movimento das águas, insuficientes a essa nova conjuntura socioambiental.

Em meio às crises sanitária e política que o Brasil vivencia, além do desmonte da política ambiental brasileira e dos efeitos da mudança climática global nos sistemas socioecológicos ribeirinhos na Amazônia, a organização social em Carauari e empoderamento comunitário são sinais de esperança.

Assim como o movimento das águas dita o ritmo na vida nas comunidades, modificando formas de produção, relações sociais e com a própria natureza, o encontro com o Médio Juruá se torna agente de (re)construção técnica e pessoal daqueles que bebem da fonte de luta, resistência e resiliência encarnada nas águas do Médio Juruá.

Notas e referências

David Franklin da Silva Guimarães é doutorando em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas. Engenheiro Florestal no Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Amazonas (Idam).
Imagem em destaque: cheia do rio Juruá em Carauari, no Amazonas. David Franklin/Arquivo pessoal/Amazônia Latitude

 

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