Edição impressa: para entender o Dia do Fogo

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[DESTAQUE] Este texto é um destaque do artigo “Para entender o Dia do Fogo”, publicado na edição impressa da Amazônia Latitude. Com um minucioso levantamento de dados e contexto histórico, a autora aponta que o Dia do Fogo, ação de produtores rurais do sul do Pará que repercutiu internacionalmente em 2019, foi também resultado de um processo

No dia 10 de agosto de 2019, um anúncio que circulava em jornais e à boca pequena em cidades próximas da BR-163, no Pará, virou realidade. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) confirmariam um aumento de 300% dos focos de incêndio em Novo Progresso, também no Pará, que chegaram a 124. Era o ‘Dia do Fogo’.

A data ganhou o nome por uma série de queimadas criminosas praticadas por fazendeiros no entorno da BR-163, no Pará — com anúncio. Em 5 de agosto, uma liderança rural não identificada deu entrevista ao jornal Folha do Progresso. “Precisamos mostrar para o presidente (Jair Bolsonaro) que queremos trabalhar e o único jeito é derrubando. Para formar e limpar nossas pastagens é com fogo”, dizia o texto.

Para chegar a esse episódio, no entanto, a pesquisadora Raimunda Monteiro diz que, a partir de 2016, todo o sistema de proteção ambiental, de territórios indígenas e de povos tradicionais e de projetos de assentamento e agroflorestais está sob ataque de setores historicamente beneficiados da apropriação de terras públicas e da conivência ou ausência do Estado.

E além: historicamente, esse tipo de atuação em relação ao tema ambiental e aos povos originários não difere do que tem sido adotado há 60 anos, desde a construção da rodovia Belém-Brasília. A exploração de recursos naturais e o comércio de commodities tiveram, a partir da década de 1960, suporte garantido pelos projetos de infraestrutura do governo.

Décadas de incentivo

Nos dois primeiros anos da década de 1970, houve um súbito aumento da atuação das empresas mineradoras na Amazônia e a transferência de parques mineradores, até então situados no sul, para a Amazônia. Na seguinte escala: o Pará, que possuía 58 projetos de exploração de bauxita em 1970, viu o número subir para 331 no ano seguinte, segundo dados do I Anuário Mineral Brasileiro, publicado em 1972.

No início do século XX, existiam ainda imensos garimpos de ouro a céu aberto no Mato Grosso e no Pará, na bacia do Tapajós (a maior bacia aurífera do país), bem como em Roraima, em Rondônia, no Amapá e no território das Guianas. Ao lado das empresas multinacionais que aumentam sua territorialização na Amazônia com projetos formais, ainda se proliferam garimpos manuais, porém, cada vez menos em áreas públicas, como predominou até meados da década passada.

Além da mineração, outras atividades, como a agropecuária, expandiram suas fronteiras para a Amazônia, repetindo a dinâmica de ocupação do setor. Além disso, destaca-se a apropriação da terra pública. “O uso extensivo e com baixa produtividade, em geral com desperdício e alto custo ambiental, é uma das razões da migração das atividades em busca de novos estoques e áreas”.

Um outro aspecto é o lugar dos trabalhadores rurais e agricultores considerados ‘atrasados’ nos centros produtivos do Centro-Sul, que se deslocaram para a Amazônia e tornaram-se os desbravadores da floresta.

Enquanto a disputa por terras foi se acirrando, Raimunda narra o conflito que também se acentuou ao longo dos anos. A luta socioambiental, narra a pesquisadora, levou as vidas de pessoas como Ademir Federicci, Dorothy Stang e o ativista Brasília.

A maioria não vive e nem investe nos Estados que os abrigam, não estabelecendo laços de conhecimento e nem lastros de compromissos com as sociedades locais
Progressos e reveses

Na contramão da atuação histórica do Estado, o Governo Federal, no fim do período FHC e nos mandatos de Lula, garantiu algum progresso nos temas de governança ambiental e do Plano Amazônia Sustentável. Esse modo de atuar, que geraria outros planos de sustentabilidade, teria de lidar com a pujança dos grãos vinda do Centro-Oeste do país.

Por adesão voluntária ou pragmática às normativas, diversos agentes adotaram essas práticas, mas os setores refratários ganharam força nos governos posteriores com a visão de que os sistemas regulatórios até ali estabelecidos eram obstáculos para o progresso. E a mobilização veio de grandes produtores rurais que, em sua maioria, não são da Amazônia.

“Com exceção de oligarquias do Marajó e raros remanescentes dos sistemas de aviamento de castanhais e seringais, os setores capitalistas que detêm a maior fatia do capital fundiário dos estados da Amazônia são famílias do Centro-Sul do país, com poder político sobre parlamentares de seus estados e dos estados que abriga seus negócios. A maioria não vive e nem investe nos Estados que os abrigam, não estabelecendo laços de conhecimento e nem lastros de compromissos com as sociedades locais”.

E sempre há uma repetição da dinâmica dos megaprojetos: quando os estoques de ativos e recursos são demandados pelo mercado, os Estados são capturados, os orçamentos públicos financiam a estrutura dos empreendimentos e as populações locais movimentam as engrenagens desse saque.

Mais retrocessos

Com a eleição de Jair Bolsonaro, os episódios se multiplicaram. “Desfaça tudo essas reservas”, gritos de ordem contra a fiscalização e outros episódios, como a recente operação da Polícia Federal contra o ministro do Meio Ambiente, sinalizam que a Amazônia segue sob ataques mais intensos do que aqueles historicamente registrados.

“A Amazônia não sobreviverá à escala do ataque em curso caso não seja interrompida essa reedição das piores caçadas sobre os seus recursos e sobre as populações que contribuem para a conservação de seus serviços ambientais”, diz a pesquisadora.

Ou seja, o ‘Dia do Fogo’ foi resultado de uma acefalia institucional e política do momento, mas é um entre os graves ataques que a floresta tem sofrido há décadas.

Este artigo é um destaque. Leia o texto completo na edição impressa da revista ou aqui.

 

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