Reconectando: Aparecida Vilaça reforça importância das ideias dos povos indígenas
Se fosse reescrever ‘Morte na floresta’, lançado no ano passado, Aparecida Vilaça faria tudo exatamente igual. Naquele momento, abril de 2020, a Covid-19 já estava tomando dimensões dramáticas. E a obra buscava apresentar perspectivas dos povos indígenas sobre as epidemias, além de oferecer outros modos de pensar e de buscar soluções.
“A esperança ali não teria sido dada por vacina ou pelas regras de saúde. Mas uma esperança baseada em ideias vindas dos povos indígenas”, diz a pesquisadora. “Continuo achando que se deve prestar atenção a essas ideias, faladas e publicadas por eles. Para mim, são a via possível da gente escapar dessa via sem saída em que a gente está se metendo em relação à nossa sobrevivência aqui na terra.”.
Aparecida é antropóloga e pesquisadora do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A entrevista para a Amazônia Latitude foi realizada em abril, às vésperas da instauração da CPI da Covid, quando o Brasil havia batido a marca de 360 mil mortos.
“Tem sido uma política de fato de negligência, de deixar morrer, principalmente com os menos favorecidos e com as populações que não estão localizadas nos grandes centros urbanos. Dentre elas, os indígenas”.
Seu livro “Paletó e eu – memórias do meu pai indígena”, um depoimento sobre a vida de seu pai Wari’ e sobre o luto, mostra um jeito simples de levar o conhecimento e a antropologia a públicos diversos.
“Uma das razões que me fez escrever o livro ‘Paletó e eu’, além de uma forma de lidar com meu luto, foi também porque eu queria que as pessoas conhecessem o Paletó. Porque ele era um homem extraordinário, uma pessoa de uma inteligência fora do comum, que viveu coisas diversas ao longo de muito tempo. E eu achei que essas histórias mereciam ser conhecidas por outras pessoas”, diz a pesquisadora.
Com um relato minucioso da realidade de Paletó, dos Wari’ e das mudanças ocorridas nas últimas décadas, “Paletó e eu”, que venceu o prêmio Casa de Las Américas em 2020, também cumpre a tarefa de registrar e explicar a identidade dos povos indígenas.
A ira contra a diferença
Embora os ataques tenham sido acentuados recentemente, a disputa pelas terras dos povos originários e as incansáveis tentativas de catequização carregam sentidos mais profundos do que o uso econômico.
“Isso desperta raiva, os indígenas com aquele território todo, ‘é muita terra’. O que é mentira, porque a terra para muitos povos não é suficiente, porque a base de subsistência deles é a terra. E a outra coisa que gera mal-estar da nossa civilização em relação aos indígenas é isso, porque esse regime de posse da terra parece atingir o coração do nosso sistema capitalista e de posse individual. Parece inconcebível”, afirma Aparecida.
A mera existência parece sinalizar para a sociedade e para esse ideário que outros modos de viver são possíveis, e essa visão no horizonte é lida como ameaça. “É como se não pudessem suportar essa visão”.
Popularizar narrativas
É para difundir esses pensamentos diferentes e garantir a pluralidade de modos de estar no mundo que a professora destaca o trabalho de lideranças de povos originários, como as falas e textos de Ailton Krenak, autor de “Ideias para adiar o fim do mundo”, e Davi Kopenawa, que escreveu “A queda do céu” com o antropólogo Bruce Albert.
“É um livro que apresenta para o público geral a visão de mundo yanomami. E é um projeto do Davi, que solicitou ao antropólogo que escrevesse. Ele tinha interesse que os brancos ouvissem o que ele tinha a dizer, porque estava preocupado com a destruição”, explica Aparecida.
“Eles estão se fazendo ouvir e o que estão falando está tendo repercussão. As pessoas têm uma certa sede pelas palavras dos indígenas”.
Pela memória de Cássio Freire Beda
A professora faz um registro em memória de Cássio Freire Béda, que morreu pela contaminação de mercúrio na região do Rio Tapajós, onde o garimpo causa danos gravíssimos à saúde das populações locais, incluindo os indígenas Munduruku. Com uma rápida deterioração do seu estado de saúde por causa do metal, Cássio morreu no dia 4 de abril.
“Ele resolveu lutar ao lado dos Munduruku pela definição de uma nova Terra Indígena e no combate aos invasores, e foi contaminado pelo mercúrio. Eu gostaria de lembrar o nome dele, que foi ativista até os seus últimos momentos. É muito forte o que está acontecendo”, diz Aparecida.
E para enfrentar as boiadas, é preciso comunicar. “Que essa morte desse rapaz, que sirva como alerta. Porque mesmo doente ele lutou para que as pessoas se preocupassem de fato com a contaminação por mercúrio”.
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Imagem em destaque: Fabricio Vinhas/Amazônia Latitude