Com saberes ancestrais, projeto restaura florestas queimadas na Amazônia
Iniciativa do Museu Paraense Emílio Goeldi quer transformar áreas degradadas pelo fogo em Floresta Social a partir do engajamento de comunidades atingidas.
O avanço gradativo sobre a natureza amazônica em prol de um crescimento econômico desigual e violento tem sido instrumento cruel de dominação, exploração e eliminação de diferentes territórios, culturas e saberes indígenas e tradicionais.
No entanto, o modelo de desenvolvimento socioambiental, concebido pelas populações tradicionais nas últimas décadas, iniciou um importante movimento contrário à exclusão social e à degradação do patrimônio natural da Amazônia. Houve valorização das populações tradicionais em seus próprios termos, formas de organização e modos de vida 1.
O reconhecimento e o respeito ao conhecimento “tradicional” tem possibilitado uma maior participação dessas populações nos processos políticos de decisão a partir de uma visão que prioriza a preservação, o desenvolvimento territorial e a construção de projetos coletivos.
Neste contexto, a implementação das Unidades de Conservação (UCs) de Uso Sustentável foi uma estratégia para a manutenção da biodiversidade, da integridade da floresta e dos seus serviços. Ela revelou a importância do protagonismo no uso e manejo dos recursos naturais por parte das comunidades locais. Citamos aqui indígenas, caboclos, castanheiros, seringueiros e quilombolas, entre outros, que manejam e protegem pelo menos 25% da Amazônia brasileira.
Assim, as Reservas Extrativista têm sido vistas como territórios coletivos protegidos que mantêm porções consideráveis de florestas íntegras, as quais guardam grande biodiversidade e representam um sumidouro de carbono importante para mitigar as mudanças climáticas, além de outros serviços como a geração de chuvas.
A floresta e seus recursos associados (e.g. rios e igarapés) garantem a subsistência de dezenas de milhares de pessoas e a reprodução social de culturas únicas, que vivem do extrativismo e de outras atividades. Desta forma, estes territórios-chave são fundamentais no contexto de sustentabilidade local e no atendimento das metas globais de sustentabilidade.
Contudo, novas ameaças desafiam a permanência e integridade destes territórios. A Reserva Extrativista (Resex) Tapajós Arapiuns está localizada no Oeste do Pará e no centro de uma das áreas mais vulneráveis às mudanças climáticas que tem sido impactada por incêndios florestais no contexto dos megaincêndios que ocorrem na Amazônia.
Desde a década de 1980, incêndios florestais intensos têm se tornado mais frequentes em todo o mundo, incluindo paisagens de floresta tropical úmida. Essas florestas representam 20% dos habitats globais os quais não são naturalmente adaptados ao fogo e, desta forma, são vulneráveis e se degradam com esta perturbação de origem antrópica 2.
As intensas mudanças no uso da terra, que implicam em taxas crescentes de desmatamento e de degradação florestal via extração de madeira, trouxeram para a região amazônica uma nova realidade marcada pelos grandes incêndios florestais. Juntamente, a Amazônia está experimentando um novo regime climático, marcado pela ocorrência de secas mais prolongadas e intensas com maior frequência3.
O resultado são incêndios florestais afetando todo o mosaico vegetacional, incluindo florestas maduras e bem preservadas, até pouco tempo consideradas incapazes de queimar. Durante o evento El Nino de 2015, em um único incêndio na região de entorno da área da Resex Tapajós-Arapiuns, cerca de 1 milhão de hectares de floresta foi degradado pelo fogo, matando mais de 2 bilhões de árvores4.
Sabe-se que o problema dos incêndios é resultado de uma complexa interação de fatores biofísicos e socioeconômicos presentes nas fronteiras de ocupação e compreender essa dinâmica nas comunidades é importante e pode ajudar na concepção de protocolos para melhorar o controle do fogo5.
Além de seus impactos no ciclo global do carbono, os incêndios florestais são prejudiciais aos ecossistemas florestais e às comunidades locais. Eles não apenas reduzem temporariamente a quantidade de biomassa viva, mas também afetam a composição das espécies, alteram os ciclos de água e nutrientes, aumentam o risco de inundações e ameaçam os meios de subsistência locais, queimando áreas de extrativismo, roças e residências.
Esses incêndios têm impactos devastadores na vida selvagem, pois os animais não conseguem escapar dos incêndios ou são ameaçados pela perda de habitat, alimento e abrigo. Florestas queimadas tornam-se mais vulneráveis a novos incêndios, criando uma espiral de degradação e vulnerabilidade social, com potenciais efeitos devastadores para territórios, comunidades e os serviços ecossistêmicos oferecidos pela floresta.
Entender o contexto ambiental e socioeconômico em que os incêndios ocorrem, bem como seus efeitos ecológicos, econômicos e sociais é fundamental para intervir de forma a garantir a persistência dos territórios-chave amazônicos.
Este conhecimento é fundamental para (1) identificar práticas buscando a redução do risco de incêndios (i.e. boas práticas de manejo), (2) elaborar modelos de restauração das florestas queimadas capazes de prover todos os serviços\benefícios necessários à reprodução social e à persistência da integridade dos territórios, (3) implementar projetos e unidades demonstrativas capazes de validar as ações, orientando programas e políticas em escala regional.
A importância da restauração neste contexto manifesta-se da noção de que: (1) florestas queimadas podem regenerar de forma muito lenta, tornando-se vulneráveis a novos incêndios, (2) mesmo regenerada em termos de biomassa, a floresta pode não mais conter o conjunto de espécies úteis associadas à segurança alimentar e\ou fonte de renda para as populações locais, incluindo recursos para as espécies de caça, (3) persistência e cuidado da floresta depende do seu valor de uso local.
Assim, o manejo da regeneração natural associada ao enriquecimento da floresta com espécies de árvores consideradas úteis pelas comunidades emerge como modelo de restauração capaz de recolocar a floresta que queimou novamente na vida e no futuro das pessoas, servindo também como elemento de empoderamento das comunidades locais como agroextrativistas capazes de planejar e alcançar o futuro desejado.
Embora as previsões para a Amazônia sejam catastróficas, há uma enorme carência de iniciativas incorporando o fogo como uma ameaça que veio para ficar. Portanto, assim como a conquista dos 22% dos territórios destinados às Terras Indígenas (TIs) e UCs de uso sustentável foi um importante avanço. Neste novo momento da Amazônia, em transição climática e mais vulnerável, urge a necessidade de empoderar as populações tradicionais para defender seus territórios e assegurar a sua reprodução.
Restaurando a Mata: um processo de construção coletiva e de troca de conhecimento
A restauração é uma construção social6, ou seja, o que se qualifica como restauração ou não depende de quais resultados são valorizados a partir das perspectivas dos atores sociais. Desta forma, a abordagem de restauração, baseada na equidade, tende a respeitar a pluralidade de valores na concepção e implementação de projetos de restauração de ecossistemas7.
Nesta abordagem, iniciativas de restauração colocam os atores mais vulneráveis e afetados pela degradação no centro da tomada de decisões, ao mesmo tempo em que promovem a restauração ecológica para o benefício das gerações atuais e futuras. Assim, as partes afetadas têm a oportunidade de participar de forma efetiva no desenho, implementação e monitoramento de projetos de restauração, incluindo a distribuição de custos e benefícios entre os atores.
Em 2019, o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) coordenou um projeto no âmbito da chamada CNPQ/Prevfogo-IBAMA8 que tinha como objetivo avaliar a percepção das comunidades locais sobre os efeitos dos incêndios florestais em seus territórios e construir um Plano de Restauração Florestal das aldeias.
A partir desta iniciativa pioneira, ficou claro para os atores envolvidos de que seriam necessárias ações concretas e imediatas focadas na restauração e no entendimento de todo o potencial deste instrumento no contexto de ameaça crescente de novos incêndios, incluindo o estabelecimento de uma unidade demonstrativa de restauração.
Nesta perspectiva, uma nova estratégia de ação foi incluída no projeto do MPEG no âmbito do CNPq/ Prevfogo: a iniciativa Restaurando a Mata, em parceria com o Instituto Iniciativa Amazônica (INIAMA) e o Instituto Clima e Sociedade (ICS).
Nessa iniciativa, buscou-se desenvolver uma ação no território tupinambá visando transformar florestas degradadas pelo fogo em Florestas Sociais (i.e. produtivas e de múltiplos valores para as populações locais), criando modelos de restauração a serem replicados em escala regional.
O modelo de restauração se baseia na percepção e no reconhecimento das comunidades de que é possível e necessário intervir nas florestas queimadas e avançar na visão atual que considera as florestas degradadas como áreas de difícil recuperação e de pouco valor ambiental e econômico.
O projeto apoia os indígenas tupinambá9 das aldeias Muratuba e Jauarituba na Resex Tapajós-Arapiuns na implementação de um Plano de Recuperação de florestas queimadas (degradadas pelo fogo) e um experimento piloto de recuperação florestal. O que era considerado “floresta degradada” passa a ser reconhecida como floresta social, ganhando valor e cuidado, e propiciando perspectiva de retorno econômico a curto e médio prazos.
Objetivamente, a Floresta Social deve (1) contribuir para a segurança alimentar via produtos de origem vegetal, mas também como habitat adequado para animais cinegéticos, (2) produzir produtos comercializáveis e fontes de matéria prima, (3) prover serviços ecossistêmicos de regulação associados ao clima, proteção de solo e nascentes, (4) servir como habitat complementar para a biodiversidade local, (5) reduzir o risco de novos incêndios, (6) servir de estoque de bens e serviços, diminuindo a pressão sob as áreas consideradas de conservação e também a vulnerabilidade das populações aos extremos climáticos, como os verões quentes e secos e (7) servir de instrumento de educação e empoderamento das comunidades locais.
A experiência do Museu Goeldi e do Iniama se inspira na prática histórica das populações tapajoaras em resolver seus problemas sociais e ambientais por meio de acordos sociais locais (acordos de pesca e outras regras locais de uso de recursos naturais), na capacidade de organização da sociedade local em defender seus territórios e no reconhecimento da sua identidade indígena exercida pelo Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA) e pelo Conselho Indígena Tupinambá da RESEX Tapajós Arapiuns (CITUPI), além de iniciativas envolvendo ecologia e manejo de florestas do leste da Amazônia, que vem sendo construídas ao longo das últimas décadas.
A partir da parceria com o Instituto Clima e Sociedade, objetivamente, pudemos apoiar a formação de dois grupos comunitários de “restauradores” (nas aldeias Muratuba e Jauarituba), com 11 e 8 participantes, respectivamente. Já foram implantadas duas Unidades Demonstrativas (UDs) de recuperação florestal de 25 hectares, em cada uma das aldeias. Nessas UDs, foram estabelecidas oito parcelas (1.250 m2 cada) com um modelo de restauração baseado no manejo da regeneração natural + enriquecimento florestal, com o plantio de mudas de espécies de valor econômico como cumaru (Dipteryx odorata (Aublet.)Willd), cupuaçu (Theobroma grandiflorum (Willd. ex Spreng.)K.Schum.), cacau (Theobroma cacao L.) e açaí (Euterpe oleracea, Mart.).
A equipe do projeto se empenhou na institucionalização do projeto e na articulação de parcerias com o objetivo de inserir nosso trabalho de restauração de florestas queimadas no plano nacional de conservação da biodiversidade e na estratégia regional de fortalecimento socioeconômico do agroextrativismo e de valorização da floresta. Para isso, buscou o respaldo do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMbio) e estabeleceu parcerias com o Sindicato dos Trabalhadores e Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém, Associação das Organizações da Reserva Tapajós-Arapiuns (Tapajoara), Cooperativa dos Trabalhadores Agroextrativista do Oeste do Pará e com o Projeto Saúde Alegria.
Essas parcerias buscam inserir a iniciativa nas estratégias nacionais de enfrentamento das mudanças climáticas e regionais de beneficiamento e comercialização de produtos florestais pensando no futuro dos territórios coletivos.
No nível local, a iniciativa é baseada em pactuação das ações e metas com os comunitários e em um protocolo específico de segurança individual, além de ser um instrumento de fortalecimento do trabalho coletivo. Numa primeira etapa, as ações envolveram: 1) formação das equipes; 2) seleção das áreas; 3) implantação das UDs, 3) manejo da regeneração natural e plantio de mudas; 4) tratos culturais e monitoramento.
De início, buscou-se trabalhar com indicadores que pudessem promover mudanças na trajetória da recuperação florestal, como erradicação de espécies invasoras, como tiririca (Scleria pterota C. Presl), maniva de veado (Manihot sp.), jurubebão (Solanum sp); controle de palmeiras altamente inflamáveis (espécies do gênero Attalea), manutenção de regenerantes e adultos de espécies dominantes nas florestas como cumaru, morototó (Scheflera morototoni (Aubl.) Maguire, Steyern & Frodin), parapará (Jacaranda copaia (Aubl.) D.Don), jatobá (Hymenaea parvifolia Huber), uxi (Endopleura uchi Huber), piquiá (Caryocar villosum (Aubl.) Pers. Buscou-se também o posterior plantio de espécies de interesse econômico.
Em paralelo, os comunitários são formados em técnicas de coleta de sementes e produção de mudas. Nesse processo, foram instaladas sementeiras e viveiros nas aldeias, com capacidade para a produção de 5 mil mudas.
Nas próximas etapas do projeto, será dada continuidade ao enriquecimento das florestas com espécies de valor sociocultural e econômico, para seguir na adaptação das práticas de manejo do enriquecimento e ampliar as áreas de florestas sociais.
Busca-se ainda dar suporte às associações locais de moradores agroextrativistas das comunidades Muratuba e Jauarituba para que estas possam conduzir a gestão dos projetos nessa linha. Espera-se que as organizações locais sejam fortalecidas para ampliar seu protagonismo e disseminar a sua experiência para outras áreas coletivas da Amazônia.
O trabalho com recuperação de florestas queimadas é urgente e necessário. Existem algumas implicações importantes do fogo como um fator de degradação da floresta tropical que não são suficientemente contabilizados nos esforços existentes na “Década das Nações Unidas para Restauração de Ecossistemas”.
Essas implicações, incluindo a gravidade e recorrência crescente de queimadas na Amazônia, certamente influenciam na eficácia da restauração após os incêndios florestais. As aldeias da etnia Tupinambá da Resex Tapajós Arapiuns estão enfrentando esse desafio. Apoiar essas iniciativas também é urgente e necessário.
ReferênciasIma Vieira é Doutora em Ecologia pela University of Stirling, Escócia. É pesquisadora titular do Museu Paraense Emilio Goeldi, onde atua nas áreas de ecologia de florestas, restauração ecológica e dinâmica de usos da terra na Amazônia. Tem atuação em várias entidades científicas e de políticas públicas no Brasil.
Cassio Pereira é Mestre em Agronomia pela Universidade Federal Rural da Amazônia, diretor do Instituto Iniciativa Amazônica, e desenvolve pesquisa-ação em recuperação de áreas degradadas, sistemas agroflorestais e atua em várias ações em prol de políticas públicas para a agricultura familiar.
Marcelo Tabarelli é Doutor em Ecologia pela Universidade de São Paulo-USP. É professor da Universidade Federal de Pernambuco-UFPE, onde desenvolve pesquisas na área de ecologia e conservação de plantas. Tem atuação junto a diversas entidades de conservação da biodiversidade e de vários Conselhos de entidades de Conservação e de Ciência.