Thaddeus Blanchette

Graduado em Português, Sociologia e Latin American Studies (University of Wisconsin-Madison), mestre em Antropologia Social e doutor em Antropologia Social. Atualmente, é professor de Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Caubóis e Índios: ‘Não tem esse problema em seu país’

Coluna Caubois e índios
Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude
Coluna Caubois e índios

Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude

Era uma vez um índio que virou cristão. Ele se transformou num cristão muito bom; ia à igreja, não fumava nem bebia, e ele era bom com todo mundo. Ele era um homem muito bom. E assim morreu. Primeiro, foi ao além dos índios, mas eles não o deixaram entrar, pois ele era cristão. Então foi ao céu, mas eles não o deixaram entrar, pois era índio. Então foi ao inferno, mas eles também não o deixaram entrar, pois ele era tão bom. Então ele voltou a viver e foi à Dança do Búfalo e às outras danças e ensinou suas crianças a fazer o mesmo. — História Othâkîwaki / Mesquakie (Fox)*, “Um rio sem fim”

Terras tradicionais e atuais do povo Othâkîwaki / Mesquakie (Fox)

Terras tradicionais e atuais do povo Othâkîwaki / Mesquakie (Fox)

Uma das maiores fábulas contadas no Brasil, acreditada por quase todo mundo independente de cor, raça, classe, gênero, ou região, é que nas terras atualmente controladas pelos Estados Unidos da América não têm mais índio. De acordo com esse mito, os povos indígenas de lá foram exterminados pelo “anglo-saxão”, povo mítico que supostamente difere-se do “luso-brasileiro” por sua acentuada aversão à miscigenação e seu caráter enfaticamente bélico. Talvez o exemplo mais recente desse mito apareceu nos noticiários brasileiros em dezembro de 2018, quando foi lembrado um pronunciamento de 1998, que saiu da boca do então deputado Jair Bolsonaro:

Até vale uma observação neste momento: realmente, a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e, hoje em dia, não tem esse problema em seu país — se bem que não prego que façam a mesma coisa com o índio brasileiro; recomendo apenas o que foi idealizado há alguns anos, que seja demarcar reservas indígenas em tamanho compatível com a população.

A “observação” do Bolsonaro é notável por duas razões. Em primeiro lugar, é absolutamente e empiricamente falsa. Em segundo, tanto quando foi falada em 1998 e, novamente, quando foi lembrada em 2018, quase nenhum brasileiro — da direita ou da esquerda, branco, negro, indígena, ou pardo — contestou sua suposta veracidade.

A falsidade da observação deve ser transparente a qualquer um que tem a capacidade mental de uma lesma relativamente brilhante. A história do contato dos povos indígenas da América do Norte (continente que contém Canadá, México, os EUA e os países da América Central e o Caribe) contempla uns cinco séculos de troca. Muita coisa aconteceu naqueles mais de 500 anos, mas as guerras que envolviam a cavalaria estadunidense e os vários povos indígenas das grandes planícies duraram apenas uns 50.

Hoje, existem 324 terras indígenas demarcadas nos EUA, com 574 governos indígenas. A população indígena declarada daquele país totaliza cerca de 9,7 milhões de pessoas — ou 2,9% dos EUA. Mais de dois milhões desse montante são oficialmente reconhecidos como “índios” pelo governo federal americano, recebendo benefícios e direitos como tais e sendo membros de “tribos” oficiais, que têm representação em todos os níveis do governo estadunidense.

Compare essa figura com a revelada por nosso último censo (amplamente reconhecido como o melhor até agora em termos de contagem de gente indígena), que contabilizou apenas 1.693.535 nativos no Brasil inteiro.

Mais importante, como no Brasil e nos outros países da América do Sul, esses povos conseguiram sobreviver meio milênio de genocídios planejados, muitos dos quais foram agenciados de forma soft por seus “amigos” no governo e nas igrejas, e não pela cavalaria. Eles adaptaram suas tradições, economias, e sistemas políticos. Não só sobreviveram: prosperaram. Hoje, a população indígena dos EUA é maior que a população humana daquelas terras em 1500. Esses povos têm lutado e lutam incansavelmente por seus direitos e territórios, às vezes, ainda hoje, desafiando a “cavalaria americana”, agora equipada com blindados e helicópteros.

Dessa forma, o assim-chamado “problema indígena” (resumido por um ativista anti-colonial como “os índios existem e isso é um problema”) ainda persiste e floresce em terras ianques. Nada indica que ele vai ser resolvido em algum ponto do futuro próximo.

Estranho, então, a duradoura crença brasileira que esse “problema” não existe nos EUA. Mais estranho ainda é a crença de pessoas como Bolsonaro que “demarcar reservas indígenas em tamanho compatível com a população” é uma proposta exclusivamente brasileira. Como discutiremos numa coluna futura, o Serviço de Proteção ao Índio brasileiro foi conscientemente modelado no Bureau of Indian Affairs americano e o atual sistema de terras indígenas, no Brasil, é muito menos compreensivo em termos de seus direitos e soberania que seu contraparte EUAmericano.

Mas o mais esquisito de tudo, para mim, é que a sobrevivência, lutas, e conquistas dos povos indígenas dos Estados Unidos é ignorada, quase por completa, pelos indígenas da América do Sul e seus aliados. Que o Bolsonaro conta fábulas, a gente até espera. Mas cadê a reação da “esquerda” brasileira à afirmação que não tem mais índio nos EUA? Afinal de contas, não temos problema algum em reconhecer os povos, pautas, e lideranças dos movimentos negros dos EUA. Seus escritores têm sido traduzidos para português. Seus heróis — pelo menos os mais públicos — são reconhecíveis. Assistimos a filmes sobre suas lutas. Se falo o nome “Angela Davis”, uma ampla gama de brasileiros vai reconhecer. No entanto, até hoje, nenhum pensador nativo EUAmericano tem sido traduzido no Brasil. Quase não existe reconhecimento algum, por parte dos brasileiros, que esses povos ainda existem e lutam.

Agora, se você for como a maioria de meus interlocutores brasileiros, quando levanto essa questão, sua reação provavelmente é algum variante das seguintes:

  1. Porque devo me preocupar com qualquer coisa dos EUA, país colonial?
  2. Precisamos nos concentrar em pensar sobre o Brasil e não temos tempo para pensar nas coisas de lá.

Ora, além de serem extremamente hipócritas (pois, afinal, brasileiro algum tem problema em “pensar sobre os Estados Unidos” quando está em seu interesse), essas reações perdem de vista dois pontos importantes. Primeiro, muitas das políticas do Brasil — e particularmente sua política econômica — copiam ou são profundamente influenciadas pelo colonialismo ianque. Conhecer e saber criticar essas influências é ponto necessário para combatê-las. A questão mais importante, porém, tange na própria práxis de resistência contra o colonialismo.

Acho que não há dúvida alguma que, atualmente, os EUA é o centro do sistema capitalista pós-moderno que periga extinguir a vida (ou, pelo menos, a vida humana) deste planeta. Quase todos nós estamos sendo despossuídos de nossas terras, tradições, costumes, e poder política por uma classe nova de bilionários — multinacionais, mas ancorada na economia política EUAmericana — que vejam nossas vidas como empecilhos para suas fortunas.

Os povos indígenas dos EUA não só vivem dentro desse mundo, estão literalmente na barriga da besta, lutando para sobrevivência desde antes os EUA existirem. E eles têm sido bem-sucedidos nesta empreitada. Alguns, inclusive, fazem parte da seleta turma das nações que têm ganho guerras contra os Estados Unidos.

Qualquer pessoa sensata, interessada em construir novas possibilidades para o futuro de nosso planeta, só há de concluir que existe algo de útil a ser apreendido com a experiências desses povos.

Para começar, a tese brasileira da “marca histórica”, que atualmente ameaça as vidas e terras indígenas no Brasil, lembra bastante a política de “terminação de direitos indígenas” que foi experimentada nos EUA na década de 1950. Não precisamos fazer hipótese sobre os efeitos da eliminação das direitas territoriais indígenas num cenário de expansão capitalista: podemos literalmente olhar os casos dos grupos EUAmericanos que foram “terminados” 70 anos atrás. Sob a mesma rubrica de “liberdade para o índio”, atualmente empregada pela bancada do boi, esses grupos perderam controle de suas terras, outrora garantidas pelo poder público, seguindo um ato desastroso do Congresso americano. Nenhum desses casos resultou em mais prosperidade ou liberdade para os povos indígenas afetados.

De maneira semelhante, o provável vencedor do Oscar para o melhor filme de 2023, “Assassinos da Lua das Flores“, reconta os resultados de uma corrida de petróleo em terras indígenas no estado de Oklahoma na década de 1920. Grupos amazonenses brasileiros que atualmente encaram grandes promessas de prosperidade, em troca de contratos de exploração dos recursos naturais de suas terras, devem prestar atenção nessa história.

Esta coluna, “Caubóis e Índios”, tem enfoque na apresentação de experiências dos povos nativos EUAmericanos (e, às vezes, canadenses) na luta pela sobrevivência após a conquista. Seu título refere-se a única imagem que o grosso dos brasileiros têm dos indígenas EUAmericanos: as “fantasias da raça mestre” (para empregar um termo do ativista indígena Ward Churchill), criadas por Hollywood sobre a conquista do “velho oeste”. O que quase ninguém em terras brasilis sabe, porém, é que muitos índios acabaram sendo caubóis — por motivos de sobrevivência econômica ou seguindo seu próprio gosto — sem nunca deixar de serem indígenas. É essa existência contínua, suas múltiplas lutas — às vezes sangrentas —, e suas contradições aparentes, e muitas vezes surreais, que a observação fajuta de Bolsonaro quer negar e que essa coluna vai explorar.

Nos próximos meses, falaremos sobre o novo cinema indígena, o movimento landback, a luta bem sucedida internacional para bloquear o oleoduto Keystone, os intelectuais do movimento (passado e presente) e dúzias de outros tópicos do “território indígena” nos EUA que podem interessar intelectuais e ativistas brasileiros e, acima de tudo, servir como inspiração para nossas próprias lutas. Também estou aberto a falar sobre quaisquer assuntos de interesse aos leitores neste sentido. É só enviar uma mensagem para o endereço [email protected].

 

*Para melhor orientar os leitores, cada número dessa coluna será acompanhado por um mapa, demonstrando as terras tradicionais e atuais de um povo referido no artigo. Começaremos com os Othâkîwaki / Mesquakie, ou os Fox, cuja história abre essa coluna como epígrafe.

 

Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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