Por baixo das pedras que o tempo virou

Editorial especial Modernismo
Montagem: Fabrício Vinhas
Editorial especial Modernismo

Montagem: Fabrício Vinhas

Mário de Andrade (1893-1945), um dos pais do Modernismo, também é considerado um dos principais intérpretes do Brasil. Na tentativa de contribuir à busca modernista pela ainda inaudita “identidade nacional”, o poeta jogou os holofotes sobre a Amazônia no início do século XX, com obras não-ficcionais, como o diário de viagem O Turista Aprendiz (1976), e ficcionais, como Macunaíma (1928). Para Mário, um paulista, suas expedições à região contribuíram para estudar as culturas brasileiras como um todo. No último poema do livro Clã do Jabuti (1927), publicado entre viagens etnográficas, ele descreve uma realidade multifacetada de vários brasis — e até de várias Amazônias:

“Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De sopetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito
longe de mim,
Na escuridão ativa da noite que caiu,
Um homem pálido, magro de cabelo escorrendo nos olhos
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu…”

Frente a essa alteridade, o poeta, ao lado de outros expoentes do Modernismo, reforçou a percepção de que a identidade nacional deveria ter um caráter múltiplo, incorporando culturas interioranas e de origem africana e indígena, historicamente desvalorizadas pelas classes dominantes. Foi um momento pivotal para a Amazônia, que, como escreve o pensador manauense Márcio Souza (1946-), foi escanteada desde a colonização: “Já se disse que hoje os deuses selvagens foram banidos da região, o status ontológico da Amazônia passou a ser traduzido pelo potencial de energia elétrica de uma cachoeira ou a viabilidade econômica de uma mina de manganês.”

Após um século da Semana de 22, marco do movimento modernista no Brasil, a leitura do momento adquiriu mais nuances. Os artistas, mesmo quando bem intencionados, não estavam imunes ao ditado da ensaísta francesa Anaïs Nin (1903-1977): “Não vemos as coisas como elas são, vemos as coisas como nós somos”. Com o passar do tempo, a história perpetuou o olhar de elites nacionais, principalmente paulistas – emergindo fortemente na época devido aos espólios do café –, sobre as culturas brasileiras, ao invés de valorizar o lugar de fala dos artistas regionais. Resultado: mais que uma Amazônia mítica, criou-se um lugar para a região amazônica dentro do Modernismo; já o nacionalismo gestado no movimento foi posteriormente moldado de acordo com as necessidades do poder vigente, adquirindo contornos ora falsos, ora doentes.

Esta edição especial busca desvendar o Modernismo tanto como corrente artística como disputa geopolítica, dando destaque às faces amazônicas do movimento, como Bruno de Menezes, Theodoro Braga, Eneida de Moraes e tantos outros, cuja considerável relevância foi marginalizada na narrativa protagonizada pelos titãs modernistas. Também pretende dar continuidade à investigação sobre o que significa uma “identidade brasileira”, e a suma importância da Amazônia neste quebra-cabeças. Afinal, o Modernismo apenas abriu um debate, e hoje oferece uma ponte de ligação para a interpretação do Brasil atual.

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