Amazonia Now: O imaginário de um país colonial ainda é mais forte do que a pesquisa foi capaz de mostrar

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A soja na vizinhança: expansão das monoculturas pressiona comunidades e ambiente na região de Belterra. Foto: Gabriel Siqueira

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Painel de abertura do segundo dia do webinar Amazonia Now discutiu crises e as camadas históricas na floresta

No segundo dia do webinar ‘Amazônia agora: perspectivas de uma região em crise’, realizado na terça-feira (17), as complexas estruturas da região foram o tema do debate.

O primeiro painel tratou de conflito socioambiental na Amazônia e contou com a presença dos professores Susanna Hecht, da Universidade da Califórnia-Los Angeles, Edna Castro, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e Jeffrey Hoelle, da Universidade da Califórnia- Santa Bárbara. A mediação foi de Jessica Carey-Webb, do Conselho de Defesa de Recursos Naturais.

“Estou falando da perda de 80% das florestas originais”, disse Hecht, que iniciou as apresentações.

Sobre o caso do Brasil, em especial da Floresta Amazônica, a pesquisadora afirmou que a realidade que vinha se construindo se inverteu a partir da metade da década passada. “De 2004 a 2014, a taxa de desmatamento caiu mais de 70%. (…) Desde 2014 há um aumento muito rápido”.

Houve uma mudança agressiva de forças, que antes indicavam um movimento político de socioambientalismo em que os municípios se esforçavam para ficar mais verdes. “As organizações não eram demonizadas como agora e eram mais bem financiadas”.

A ampliação das commodities no mercado internacional também forçou uma mudança na estrutura do agronegócio, além de uma captura das políticas nas áreas rurais a partir dos anos 1990.

A demanda asiática por matéria prima, a não absorção de trabalho por outros setores da economia e a mudança de investimentos contribuíram para o aumento da exploração clandestina de ouro, madeira e outros minerais.

“Outro fator importante é que legalidade e ilegalidade estão diretamente relacionadas aos processos da Amazônia”, afirmou, e defendeu que o setor público retome o controle na região para enfrentar o aceleramento do aquecimento global.

Financeirização da terra

Para a professora Edna Castro, não é possível ignorar a existência de outras dinâmicas e atores, de um volume de capital investido muito maior do que em décadas anteriores — um reflexo da dinâmica do agronegócio no mundo. “Há mudanças significativas no uso da terra num espaço de tempo muito curto”.

A professora dividiu em três momentos o avanço das fronteiras agrícolas no Brasil. O primeiro foi no Nordeste, especificamente Bahia, Piauí e Maranhão, em direção à Amazônia; o segundo, no Mato Grosso do Sul e Goiás, em direção ao Oeste do Pará e Roraima; o terceiro, de Rondônia e Mato Grosso, em direção ao noroeste do Amazonas e ao Acre.

A mudança do mercado também alterou a dinâmica dos conflitos rurais. Enquanto nos anos 1960 e 1980 as tensões estavam relacionadas ao avanço da fronteira de pecuária, hoje são provenientes da ocupação da terra para o agronegócio.

“Os conflitos são com pescadores, ribeirinhos, territórios quilombolas e incidem em grande parte sobre as formas de trabalho e organização da vida, o uso comum do território”, disse.

Para a pesquisadora, esses processos são verificados em todos os grandes projetos, como abertura de estradas, mineração e hidrelétrica, entre outros. E acrescentou que a pandemia ressaltou as marcas da violência.

“Esses conflitos são em relação à expulsão da terra de camponeses, de ribeirinhos, com a pressão sobre os territórios indígenas e sobre as unidades de conservação. Esses três lugares sociais do conflito revelam como a ação das políticas do governo Bolsonaro se direcionam para onde vivem esses povos que têm formas de uso comum da terra. Não é por acaso, que as queimadas da Amazônia e o desmatamento incidem sobre esses territórios.”

Em estudo recente, Edna e sua equipe identificaram, na BR-103, que liga Cuiabá-MT a Santarem-PA, a ocupação das áreas pelo gado. Segundo o levantamento, são áreas de grupos que apoiam o presidente Jair Bolsonaro. E há uma evidente vulnerabilidade com relação às políticas anteriores e também aos políticos que foram enfraquecidos desde 2019.

A professora da UFPA afirmou que a mineração repete aspectos dos grandes projetos de hidrelétricas.

“São grandes empreendimentos que continuam mantendo a mesma estrutura do enclave. É uma reafirmação de um processo de permanência de uma lógica colonial e altamente extrativista”.

Para Edna, o financiamento para todas essas dinâmicas exige um grau de expertise que leva a atores bem entendidos do tema. “São bancos e linhas de crédito que financiam a pecuária, as commodities. Um indicador são os frigoríficos com alto indicador e alto índice de abate. Depois, as áreas desmatadas não necessariamente são para plantio. Viram pastos e áreas de reserva. Produção de commodities para o mercado exterior”.

O que produzimos?

As pessoas, no entanto, ‘acham o pasto lindo’. É o que investiga o professor Jeffrey Hoelle, participante do painel.

“Desmatamentos, queimadas, poluição dos rios, empoderamento de agroinvestidores, especulação da terra facilitada pelo governo Bolsonaro. Esses diferentes problemas são causados por ações explícitas das pessoas que se envolvem com ouro, especulação da terra, agricultura, que tem implicações ao longo tempo para a terra”, disse.

Para Hoelle, a floresta possui um contexto social e cultural imprescindível para os estudos e a produção de conhecimento. No imaginário, a floresta é vista historicamente como uma tela em branco, principalmente para os imigrantes e colonos.

“Eles querem pintar o seu destino nesta terra. E o que eles querem varia de acordo com o mercado”, afirmou.

O antropólogo defende outros usos para a floresta e o ambiente, já que os sistemas complexos que compõem o bioma e as sociedades são profundamente integrados.

“Os Estados Unidos têm que fazer mais do que dizer palavras bonitas. Precisamos incluir as pessoas para mudar a corrente de suprimentos. Estamos todos envolvidos nesse suprimento de ouro e de carne. Os Estados Unidos precisam consumir menos recursos. Devemos proteger nossa própria floresta. Por isso, entendo quando Bolsonaro fala ‘quem é você para falar o que eu devo fazer?’, porque nós precisamos mostrar pelo exemplo.

Hoelle também defendeu o apoio a instituições e pessoas que estão no front da luta pela floresta.

“Precisamos de novas maneiras, de novas soluções, de novas tecnologias para sair desse pensamento individualista de humanos como seres privilegiados sobre outras espécies e também sobre outros humanos. A humanidade se junta para que possamos adiar o fim do mundo”, afirma.

A destruição do Eldorado

“Há uma confluência. Você pode observar o preço das commodities e as diferenças, mas também há muito conservadorismo com a conservação na Amazônia. A região criou uma bolha regulatória. Eu veria isso como uma confluência e não como uma influência de um setor ou outro”, disse a professora Susanna.

“Não posso dizer que as dinâmicas são apenas em larga escala, mas quando você remove a regulamentação em diversos modos e desfinancia a capacidade de regular isso, você vê um desmatamento explosivo”.

Segundo Edna, é preciso entender a mentalidade de quem já desmatava antes da eleição de Bolsonaro, observar outros aspectos de imaginário do Eldorado e valorizar as discussões locais.

“Ficar preso em taxa de desmatamento é ficar num discurso amazônico vazio. É preciso pensar o amanhã, não do ponto de vista liberal, do conceito de desenvolvimento sustentável. É preciso recuperar os autores que vivem na Amazônia e que pensam a Amazônia. Eles são capazes de pensar. Nós da academia não escutamos, porque queremos nos focar nos efeitos do processo”, afirmou.

Sem entender esse ponto, Edna avalia que é a floresta é uma causa perdida e será totalmente destruída. “O imaginário de um país colonial é muito mais forte do que a nossa pesquisa até hoje foi capaz de mostrar”.

“Eu espero que os estudantes sejam capazes de entender o pensamento, os desejos mobilizados que são capazes de destruir a floresta. Aqueles que não desmatam, ficam quietos pois acham que é isso mesmo: ‘mato é atraso’. Desenvolvimento é o progresso, é a tecnologia. É uma causa perdida se não formos capazes de desenvolver uma interpretação para além daquilo que fomos capazes de construir até hoje”, crava.

A preocupação com as pessoas e os motivos pelos quais desmatam, para Hoelle, está na tarefa de ouvir as vontades e percepções das comunidades locais.

A professora Susanna Hecht concordou e alertou que há diversas peculiaridades nas populações do território amazônico. “Muito da ocupação da Amazônia não é indígena. Há quilombolas e migrantes, uma mistura muito grande de culturas”. É possível, de acordo com a pesquisadora, utilizar essas ocupações como ponto inicial para os direitos de reclamar a terra.

A pesquisadora acredita, além de pensar apenas o território, a pesquisa precisa olhar para direitos humanos e a terra como espaço transformação e de direitos políticos.

“As lutas que vivemos hoje já pensávamos ter vivido, mas são lutas pelas coisas mais elementares da vida”, disse a professora Edna, em referência às eleições nos Estados Unidos e aos movimentos na América Latina.

“Estamos diante de um desmonte e remonte de conceito, de linguagens”, afirmou.“É uma insurgência da linguagem, do pensamento, ver ao inverso do que é visto no campo hegemônico. Dá esperança no campo de ver o amanhã de uma forma diferente.”.

Acompanhe a cobertura completa do Amazonia Now neste link.

 

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