No Delta do Parnaíba, lida com o caranguejo-uçá diz muito sobre capitalismo e vida

Caranguejeiro se contorce entre árvores do mangue para capturar caranguejo.
Lidar com caranguejos é capturá-los, e envolve movimentos de ação e percepção nos manguezais. (Foto: Lucas Coelho Pereira/Amazônia Latitude)
Caranguejos viraram mercadoria, mas eles se constituem por meio de sistemas que articulam humanos e não humanos, processos vitais de nascimento, crescimento e morte, e práticas de ação, percepção e cuidado

A tese de antropologia “Maré de lua: capitalismo, práticas e ecologias na lida com o caranguejo-uçá no Delta do Parnaíba” é resultado de 13 meses de convivência com catadores de caranguejo do Delta do Parnaíba, entre os anos de 2018 e 2020. O principal objetivo do trabalho é mostrar as práticas e dinâmicas implicadas nos engajamentos com o caranguejo-uçá a partir de diferentes momentos. Minha ênfase recai nas práticas de conversão do caranguejo-uçá em mercadoria.

Nesse processo, entra em ação um conjunto articulado de viventes, práticas e dinâmicas ecológico-políticas. Se, por um lado, o caranguejo é convertido em mercadoria capitalista classificada conforme normativas e critérios comerciais previamente estabelecidos, por outro ele se constitui por meio de sistemas de coatividade (Pitrou, 2017) que articulam humanos e não humanos; processos vitais de nascimento, crescimento e morte; e práticas de ação, percepção e cuidado envolvidas na sua captura e comércio.

No primeiro capítulo, acompanho os fluxos e ritmos da maré, bem como das sazonalidades de inverno e verão na composição do território vivenciado por meus anfitriões, tanto na comunidade do Torto, na Reserva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba, quando na cidade de Parnaíba, cujo município integra a Área de Proteção Ambiental do Delta do Parnaíba. Faço isso – de acompanhar os fluxos e ritmos da maré – a partir do diálogo com a noção de território pesqueiro, formulada pelo Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais. Interpelado por essa categoria, minha ideia nesse capítulo foi observar como viventes e práticas diversas (inclusive políticas e normativas) se articulam na conformação dos meios por onde circulei com meus interlocutores.

Caranguejo-açú em mangue do Delta do Parnaíba.

Mercadoria valiosa: não existe tecnologia para produzir caranguejos-uçá em cativeiro (Foto: Lucas Coelho Pereira/Amazônia Latitude)

Marés, mosquitos, muriçocas, unidades de conservação e seus instrumentos de gestão, apesar de parecerem desarticulados em um primeiro momento, apontam para as dinâmicas ecológicas e políticas que compõem os territórios no Delta e, assim, gestam a vida de caranguejos, caranguejeiros e manguezais.

No segundo capítulo, a lida com os caranguejos ganha lugar a partir das caminhadas nos mangues. Cada mangue é um mangue, como costumavam repetir meus amigos caranguejeiros e, assim sendo, cada mangue envolve formas distintas de se relacionar com as raízes, a lama e o próprio corpo. A noção de uma antropologia andarilha, como sugere Thiago Cardoso (2018), guia as narrativas apresentadas neste capítulo. Primeiro, mostro como o simples ato de caminhar sobre as raízes envolve práticas corporais e habilidades técnicas imprescindíveis a caranguejeiros e antropólogos aprendizes, como eu.

Vale ressaltar, contudo, que nós, humanos, não somos os únicos a nos movimentarmos: os caranguejos também o fazem. Assim, a segunda parte do capítulo 2 é sobre como o ciclo vital de nascimento, crescimento, ecdise, engorda e reprodução dos caranguejos se relaciona com os movimentos desses animais ao longo dos mangues.

Caranguejeiro se envereda por árvores de mangue no Delta do Parnaíba.

Os cuidados com o caranguejo transcendem a captura em si (Foto: Lucas Coelho Pereira/Amazônia Latitude)

Por fim, as caminhadas são acionadas para falarmos dos movimentos das próprias árvores de mangue no Delta ao longo da história, quando, em um passado de mais ou menos quarenta anos, os manguezais eram devastados para o plantio de arroz e os caranguejos eram considerados uma espécie de “praga agrícola”. Os movimentos e caminhadas – ao contar histórias dos mangues através dos tempos – falam também das lutas das comunidades pesqueiras do Delta pela garantia dos seus territórios.

No terceiro capítulo, lidar com caranguejos é capturá-los. Acompanho, então, os caranguejeiros em seus movimentos de ação e percepção nos manguezais. Desde o preparo das ferramentas e vestimentas, até os processos de educação da atenção, nos termos avançados por Ingold (2000; 2016) para a localização das galerias (ou tocas) de caranguejo.

Um conjunto de cuidados deve ser tomado no momento da captura e o “caranguejeiro que sabe trabalhar” – como me mostravam – atenta não apenas para os seus próprios movimentos, mas também para os diferentes trajetos dos caranguejos no interior de suas galerias, bem como para as artimanhas que eles fazem para se desvencilhar do catador.

Os cuidados com o caranguejo transcendem a captura em si. Caranguejos, vale destacar, são comercializados vivos. Mantê-los assim é um aspecto crucial dessa lida. No quarto capítulo, os dilemas em torno do transporte desses viventes ganha centralidade. Depois de capturados, caranguejos vivem, em média, de dois a três dias. O principal destino dos caranguejos capturados no Delta é o mercado consumidor das praias de Fortaleza, no Ceará.

Nesse contexto, a mortalidade dos caranguejos passou a ser um problema quando o comércio em torno desse crustáceo passou a envolver seu transporte interestadual, bastante fomentado pela indústria do turismo no nordeste brasileiro. Desde então, tecnologias de transporte foram desenvolvidas por órgãos ambientais com o objetivo de reduzir essas taxas (Legat e Puchnick-Legat, 2009). No capítulo 4, debruço-me sobre o histórico de desenvolvimento e implementação dessas tecnologias e as técnicas e processos envolvidos na conversão dos caranguejos em mercadorias padronizadas.

Caranguejo, ainda enlameado, capturado no Delta do Parnaíba

Enquanto viventes, os caranguejos só podem ser entendidos a partir dos processos vitais e ecológicos que lhes originam (Foto: Lucas Coelho Pereira/Amazônia Latitude)

Diferente dos bois, criados e abatidos em fazendas, ou mesmo de outros crustáceos, como os camarões-cinza – que podem ser produzidos em tanques instalados em áreas de manguezais, causando uma série de impactos e conflitos ambientais –, não existe tecnologia para produzir caranguejos-uçá em cativeiro. Trata-se de um “produto” exclusivamente extrativista, não padronizável por dinâmicas industriais que ousem apartá-los dos manguezais, aliená-los das paisagens multiespécies nas quais estão enredados (Tsing, 2019).

Enquanto viventes, os caranguejos só podem ser entendidos a partir dos processos vitais e ecológicos que lhes originam. Caranguejos e caranguejeiros estão emaranhados em várias relações que atravessam e transcendem o território (capítulo 1), os manguezais (capítulo 2), as práticas de captura (capítulo 3) e também as transformações dos crustáceos em produtos vendáveis e, consequentemente, dinheiro, como procurei apontar no capítulo 4.

Meus engajamentos com o mangue resultaram ainda na produção do filme etnográfico Amarrado, que está em exibição no III Festival Latino Americano de Filme Etnográfico até dia 30 de setembro.

No decorrer deste trabalho, procurei articular esses diferentes aspectos da lida com o caranguejo-uçá no Delta do Parnaíba. Lida que envolve tanto “produção” – pensada como emaranhamentos entre processos vitais (Pitrou, 2017; Fagundes, 2019), técnicos e comerciais – quanto constituição de territórios e formas específicas de se relacionar com humanos e outros mais que humanos. A ideia de uma lida, portanto, congrega múltiplas ecologias que vão desde a relação das pessoas com a terra e os manguezais até a cata e comercialização dos crustáceos.

Referências
Lucas Coelho Pereira é professor do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Doutor e mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília (PPGAS/DAN/UnB), com graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) ele atua nas áreas de antropologia e meio ambiente, território e territorialidades e antropologia urbana.
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