Manaus: Literatura marginal desafia normas do mercado editorial tradicional

Aritana Tibira, representante da literatura marginal
Aritana Tibira. Foto: Jane Uchôa.
Aritana Tibira, representante da literatura marginal

Aritana Tibira. Foto: Jane Uchôa.

Movimento sociocultural nascido em meio à ditadura civil-militar que assolava o Brasil nos anos 1970, a literatura marginal subverte os valores tradicionais e institucionais da escrita e das artes. Identificada por uma linguagem coloquial, direta e espontânea, esse tipo de literatura engajada politicamente aborda temas dos cotidianos urbanos das grandes cidades, com teor erótico e humorístico. Em Manaus, a drag queen e escritora Aritana Tibira escreve histórias que se passam em bairros periféricos da cidade. São contos de violência, boemia e horror que estão presentes na trilogia “Dejetos”, publicada em 2023.

“Minha escrita nasce do incômodo de não me ver representada nas histórias que lia. Tenho o hábito desde a adolescência e, especificamente, gosto de literatura de horror e terror. São histórias desse gênero que costumo retratar em minhas narrativas. Em grande parte, as histórias se passam em bairros periféricos da cidade de Manaus. Então é comum as pessoas que me lêem enxergarem a Compensa, o Manoa, o Terminal 3, além de gírias próprias da nossa região. São questões que conheço, vivencio, e não via representadas”, diz Tibira.

Por ser uma autora independente e fora do mercado editorial tradicional, marca da literatura marginal, Tibira produz de maneira artesanal seus próprios livretos ou fanzines, publicações de poucas tiragens e feitas a baixo custo. As obras são vendidas em bares e praças da capital do Amazonas. “Sou responsável pelos textos, diagramação e revisão. Para desenhar as artes das capas, geralmente eu convido alguma amiga ou amigo. Imprimo as cópias numa gráfica. Depois, grampeio e coloco em plásticos de presente. Muitas vezes, vendo em bares”, conta.

Márcia Antonelli é transcritora, autora de crônicas, contos, novelas, ensaios, prosas e haicais. Ela é uma das célebres figuras que transitam pelas ruas vendendo seus livretos. Segundo ela, é a única mulher trans da cidade escrevendo e publicando histórias que falam sobre urbanidade e personagens invisibilizados pela sociedade, como os loucos, as prostitutas e as travestis. “Aqueles personagens que transitam ali pelo baixo meretrício… Gosto muito de explorar essa atmosfera de Manaus, aquela atmosfera bem do submundo mesmo”, relata.

Os trabalhos de Antonelli já foram adaptados para o audiovisual, com o curta-metragem “O Desentupidor”, baseado no conto “O Desentupidor de Fossas”. Ela publica suas obras também de maneira autônoma, com poucas tiragens. “Todas as minhas publicações são independentes. Eu mesma digito em casa, aí peço para um amigo fazer a diagramação. Outro amigo faz a capa. Corro lá na xerox para imprimir e saio para vender. É assim que funciona”, descreve.

Antonelli aponta que a linguagem libertária de suas obras não faz o “perfil” das grandes editoras, que considera responsáveis por podar a liberdade artística dos autores: “Se eu fosse publicar por uma editora tradicional, o que já aconteceu comigo, eles não publicam. Mandei alguns escritos meus para uma editora da região há muito tempo, e eles simplesmente pediram para eu fazer mudanças de expressões, nomes, palavrões.”

Uma representante do segmento tradicional é a Editora Valer, de Manaus, que atua há mais de 30 anos no mercado editorial. A companhia tem como compromisso publicar temas e autores amazônicos. No entanto, de acordo com a coordenadora editorial Neize Teixeira, os critérios de publicação não excluem outros temas ou autores fora dessa linha.

“Para publicar na Valer, é necessário que a proposta se adeque às suas linhas editoriais, que seu Conselho Editorial a aprove e que tenha qualidade. Normalmente, recebemos a proposta do autor e fazemos a avaliação. Hoje, aceitamos propostas que sejam interessantes para as necessidades dos nossos leitores, que contribuam para o reconhecimento da nossa região e que tragam alguma contribuição para a reflexão sobre o nosso tempo”, confirma Teixeira.

Sobre a valorização da diversidade, a editora assume a postura de que as obras e autores são únicos. “A diversidade se espalha por todos os lugares, e cada voz é singular, daí a individualidade do autor na sua plenitude, no redemoinho deste mundo, que é diverso”, ressalta a coordenadora.

Para o escritor independente com dificuldade de publicação, a representante da Valer aconselha que ele deve acreditar que seu trabalho é relevante e necessário. Então procurar uma editora para conversar sobre o que faz. “Digo que não é nada fácil se fazer um bom autor e uma boa obra: a caminhada é muito longa e exigente. Para publicar, é preciso muito trabalho, muita leitura e, até mesmo, desapego de si. O autor importa muito pouco. A obra é tudo”, avalia.

Desafios e oportunidades

Márcia Antonelli. Foto: Arquivo pessoal.

Márcia Antonelli. Foto: Arquivo pessoal.

Este ano, Márcia Antonelli vai publicar, pela Editora Transe, a antologia “O Desentupidor de Fossas e Outras Histórias”, por meio do edital Identidade Cultural Demais Linguagens, do Conselho Municipal de Cultura da Prefeitura de Manaus, por meio da Lei Paulo Gustavo. Antes, não tinha condições financeiras de publicar uma obra fora dos meios alternativos e de baixo custo que utilizava.

“Publiquei os livros anteriores, mas foi numa gráfica de fundo de quintal mesmo, com impressão mínima de 200 a 300 exemplares. Não vinham com o selo da Biblioteca Nacional… Já essa edição do ‘Desentupidor de Fossas’ deve chegar a quase mil exemplares. Mas é por meio de editais e concursos que eu consigo publicar dessa forma. Dispondo do meu próprio bolso para publicar é muito complicado”, ressalta Antonelli.

Essa vai ser sua primeira experiência com uma publicação tradicional, iniciativa que parte de uma editora independente. Para a escritora, o critério de escolha de obras em Manaus não abraça a literatura marginal. “Precisamos mais do que nunca de editoras com essa iniciativa que abre espaço para escritores na proposta de literatura independente. Assim, o autor fica mais à vontade para poder escrever. Tem muita gente que escreve nessa linha da literatura marginal e não tem espaço aqui. A literatura que tem espaço é elitista e academicista. Já a minha foge desses padrões”, reforça.

De acordo com Aritana Tibira, a dificuldade de adentrar no mercado editorial advém do alto valor que precisaria desembolsar para publicar suas obras. Ela avalia que a produção e venda do fanzine é uma possibilidade mais democrática e livre, tanto para o artista quanto para o público: “É um lucro ínfimo que algumas editoras proporcionam para autores e autoras”.

Tibira cita outros caminhos que possibilitam a difusão da literatura marginal, feita principalmente por pessoas LGBTQIAPN+, como clubes de leitura, redes sociais e eventos. “Felizmente, por eu ser uma drag queen escritora, algumas pessoas e coletivos ficam curiosas para conhecer meu trabalho. É gratificante receber os feedbacks e críticas construtivas”, reflete.

Da margem ao centro

Mostra Teia. Foto: Linda Bivar.

Autoras reunidas na terceira edição da mostra Teia, em dezembro de 2023. Foto: Linda Bivar.

Intitulada Teia, a Mostra Literária de Fanzines, está sediada há quase três meses na Galeria do Largo, no centro de Manaus. Este é um movimento inédito na capital, com o objetivo de promover a leitura de fanzines e livretos de autores independentes da cidade.

Com curadoria de Márcia Antonelli, escritores, poetas e cronistas marginais apresentam e recitam suas obras de forma gratuita e aberta ao público num local que tradicionalmente seria elitizado. “Foi um avanço, porque algum tempo atrás jamais se pensou em levar a literatura de rua para espaços assim. O público da galeria é diferente do que transita nas ruas e nos bares. Mais erudito, eu diria”, celebra. E complementa: “Essa ocupação valoriza muito nosso trabalho e mostra para um público diferente a proposta da literatura marginal.”

Produção: Nicoly Ambrosio
Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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