As visagens da Amazônia nas produções de terror de Tanto Tupiassú

Os contos de Fernando Tupiassú – ou Tanto, como é conhecido nas redes sociais – nascem de uma familiaridade com as palavras que ele tem há muito tempo. Não houve um momento específico de escolha. A carreira de escritor surgiu naturalmente, como se sempre estivesse à sua espera: em pequenos textos compartilhados no Facebook, outros guardados como arquivo pessoal.

As palavras sempre estiveram ali. “Ultimamente eu tenho refletido muito que nunca houve um momento que eu parei e falei: ‘vou ser escritor’. Aconteceu naturalmente, sempre tive ideias e me sentava para escrevê-las”, explica Tanto. 

Este fluxo natural rendeu frutos em 2018, quando teve o primeiro livro publicado: “Ladir vai ao parque e outras histórias”. A obra, assim como praticamente todas as histórias de Tanto, se passa numa Amazônia paraense, cheia de seres fantásticos e visagens – gíria amazônica para “fantasma” – que se recusam a descansar depois de mortas. 

A cultura da contação de lendas urbanas no Pará e o dom de Fernando para a escrita o fizeram cultivar perfis com números expressivos nas redes sociais, montando uma verdadeira legião de fãs que acompanha fielmente as histórias compartilhadas por ele. 

Os fios no Twitter de histórias de terror com personagens já conhecidos do folclore amazônico alcançam milhares de pessoas e são um verdadeiro sucesso. Sucesso esse que também impactou o lançamento do segundo livro: “Dois mortos e a morte”. A obra foi lançada em abril deste ano pela Editora Rocco, que chegou a figurar o 4º lugar entre os 100 livros mais vendidos da loja virtual Amazon.  

A Revista Amazônia Latitude conversou com o escritor. Leia a entrevista!

Amazônia Latitude: Tanto, como foi o início de carreira? Pelo que percebi, não foi um começo tradicional. Iniciou pelas redes sociais até a publicação dos dois livros publicados?

Tanto Tupiassú: Eu comecei primeiro no Facebook. Mas lá eu sentia que tinha um alcance limitado e não havia troca de ideias entre mim e os leitores, era muito mais fechado. Foi depois de uma atualização do Twitter, a que permitiu os fios, que me surgiu a ideia de começar a compartilhar por lá.  Eu enxergo duas grandes vantagens nesse compartilhamento: a primeira é que você interage de fato com o público, como se você tivesse naquele exato momento numa roda no interior, sabe? Numa varanda de uma casa do interior, contando uma história de terror. Então, a cada passo que você dá, a cada novo pedaço da história que você libera, as pessoas vão vibrando. Elas vão demonstrando ansiedade, e há muito relato de pessoas dizendo: “nossa, eu me senti como se estivesse na casa da minha avó, onde a gente se sentava à noite para contar história”. Isso é muito legal! E outra coisa bacana é interagir com o público, porque à medida que você está contando a história, as pessoas começam a lançar teorias. As pessoas começam a dar opiniões, as pessoas começam a se manifestar e isso ajuda no processo de criação, porque você consegue de repente perceber que a história está chata ou que determinado ponto da dela está despertando uma grande atenção, e aí você consegue mudar o rumo naquele momento para atender aquelas manifestações. Essa interação é muito legal!

Amazônia Latitude: Você falou que o teu processo de escrita é bem natural. Essas ideias vêm do nada? Como acontece isso? Como é esse processo criativo? E como parou especificamente no terror? 

Tanto Tupiassú: É realmente muito natural, sabe? Eu comecei com essa prática de realmente ficar escrevendo, e ela se concentrou muito no Twitter, onde eu comecei a escrever, de fato, histórias de terror. Tu vais perguntar por que histórias de terror? Não sei! Eu acho que acontecem coisas na minha vida que acabam me levando para essa questão de histórias de visagem, histórias de fantasma, sobrenaturais, e eu acho também que você pode escrever sobre tudo, mas é algum gênero literário, de fato, que vai te escolher. Sobre de onde vêm essas histórias, algumas aconteceram comigo. Por exemplo, boa parte dos contos em “Dois mortos” são frutos de sonhos e pesadelos que eu já tive. É muito louca essa sensação de acordar e lembrar o que aconteceu no sonho. Mas, no Twitter, por exemplo, eu recebo muitas mensagens contando “causos”, então entra todo um trabalho de curadoria, porque, às vezes, as pessoas me mandam um fato e eu que tenho que criar todo o enredo, desde como começou até chegar àquele fato que a pessoa me contou e que serviu de base para história e a conclusão. Então, é um trabalho bem bacana de pegar uma história e criar em cima dessa história, sabe? É como se alguém me desse um capítulo de um livro e falasse: “olha, está aqui o capítulo”, e eu tivesse que recriar todo o livro.

Amazônia Latitude: Agora falando sobre teus números. É difícil vermos pessoas do Pará, da Amazônia como um todo, com essa receptividade na literatura nacional. Tiveste um livro que na pré-venda ficou em 1º lugar entre os mais vendidos, depois figurou o 4º entre os 100 mais vendidos. São números expressivos para qualquer escritor, mas vindo do Norte a gente sabe que tem uma carga ainda mais especial. Como foi isso para ti? Esse sentimento de estar conquistando esses espaços?

Tanto Tupiassú: Olha, eu acho que por mais que você tenha um perfil com muitos seguidores, com muita gente que te lê e que pede para você escrever e que diz que sente falta dos teus textos, gente que diz mesmo assim, “sou teu fã!”, bate muito medo. Então, o meu maior medo era dizer: “Meu Deus! E se ninguém comprar o livro? Se for um fracasso?”. Então, eu acho que mais do que felicidade, me deu um alívio muito grande quando eu vi as pessoas dizendo que já tinham comprado, aquele burburinho. Deu pra eu perceber: “Caramba! Está vendendo”. Nossa! Que coisa fantástica! Porque, além de tudo, quando o pessoal da Rocco me procurou pela primeira vez eu nem imaginava que seria assim. O livro entrou na pré-venda, com uma tiragem de 5 mil exemplares e esgotou tudinho! Estamos na 1ª reimpressão. Cara, eu fico assim nas nuvens! Ainda mais sendo escritor do Norte, que está fora daquele eixo, dos lugares por onde tudo passa.  Para mim é fantástico! Fantástica essa repercussão! É fantástico ter e ser um escritor do Norte entre os 100 livros mais vendidos da Amazon. Que chegou ao quarto mais vendido. Então, é uma coisa que eu não tenho como descrever, eu só consigo te descrever felicidade, porque acho que é uma porta que se abre para uma terra que tem tantos escritores bons.

Amazônia Latitude: Falando sobre essa questão da desvalorização das produções do Norte, como tu enfrentas esses desafios no dia a dia? Quais são eles?

Tanto Tupiassú: A Amazônia tem uma literatura fantástica, muita gente boa, mas que não possuem essa projeção lá fora. Você tem várias pessoas que trilham um caminho belíssimo, mas que não conseguem alcançar o público nacional por falta de apoio mesmo. Olha o Dalcídio Jurandir. Só conseguiu se projetar nacionalmente depois de ter ido para o Rio de Janeiro, teve que sair de Belém para conseguir ser publicado. Então acho que a gente tem que bater o pé mesmo, sabe? E dizer olha, tem muita gente boa aqui, sabe? Capaz de fazer, contar histórias sobre Belém, sobre o Pará, sobre o Marajó. E tem vários exemplos, a Maria Lúcia Medeiros, que tem contos que flertam com o Fantástico de uma forma maravilhosa. Tu tens o Haroldo Maranhão, que também é um excelente escritor. Esse contar história é uma coisa muito cultural nossa, por exemplo, todo mundo tem algum “causo”, alguma história que vai te contar em algum momento; essa questão das narrativas é muito nossa, coisa passada de geração mesmo e que a gente não consegue perceber em outros locais do Brasil. Praticamente todo mundo na Amazônia é um escritor, contador de história em potencial. E nem precisa ser só ficção, a gente vê nos arquivos dos jornais as crônicas sobre a Cabanagem são fantásticas e isso no século 19. Tem muita coisa legal por aí, a gente só precisa que esses espaços sejam abertos para a gente. 

Amazônia Latitude: Tu enxergas as criações literárias da Amazônia como um modo de resistência?

Tanto Tupiassú: Claro, com toda certeza! Contar e escrever histórias faz parte do nosso DNA amazônico. É praticamente uma forma de subverter essa dominação. Nossa história é muito recheada disso: de resistência. Primeiro, os portugueses chegam dizimando tudo; depois, os jesuítas querendo mudar tudo, apagar tudo; tem a questão do Brasil, que a gente não era brasileiro – às vezes ainda dizem que o Norte não é Brasil. Essa subvertência à dominação está muito ligada com essa contação de história. As pessoas não conhecem a gente, não conhecem a nossa cultura. Teve agora a série da Netflix, que apareceu a Matinta Pereira, e muita gente nem sabia quem era, e você sabe, aqui para gente, a Matinta Pereira é praticamente um ídolo, todo mundo conhece, sabe o que é, sabe identificar; mas lá para o Sul e Sudeste, não. O Tom Jobim cantava a Matinta Pererê, mas ninguém nem imaginava que ela era um ente folclórico nosso. Então, a gente vem resistindo há muito tempo e cada vez mais tem gente boa no Pará, muita produção literária legal e interessante, que não precisa ser americanizada, que se passa aqui na região, como nome de gente da região e então, é bem legal; mas também bem puxado.

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