Amazônia: a farmácia de um mundo enfermo
Nada mais sábio do que confiar a salvaguarda do futuro nas mãos de um povo que soube plantar uma floresta milenar


Indígenas da aldeia Barranco Vermelho coletam da castanha-do-pará nas florestas da Terra Indígena Erikpatsa, do Povo Rikbaktsa. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.
Estamos diante da queima da mais importante biblioteca e mais completa farmácia de nosso milênio: a Amazônia. Em cada vinco microscópico da folha de uma árvore há o mais complexo dos livros ou o remédio mais eficaz para doenças que ainda desconhecemos. No interior de cada ouriço de castanha ou na terra preta mais profunda, há um museu com artefatos centenários depositados por animais e humanos tão sábios quanto o regime das chuvas. Hoje, são estes frutos da terra, as commodities disputadas pela indústria mundial alimentícia e farmacêutica. E certamente, serão uma das principais pepitas de ouro a serem negociadas nos balcões da Conferência das Partes (COP 30), que acontecerá em novembro de 2025 em Belém do Pará, no Brasil.
Um festivo almoço na Ilha do Combu com chefes de Estado chineses, estadunidenses e franceses, seguido pela degustação do chocolate feito do cacau legítimo da Amazônia, apresentará a um mundo, cuja alimentação está cada vez mais artificial e cancerígena, os insumos mais “puros” e saborosos da Região. Isto é, o mais nutritivo dos açaís será servido aos gringos, que o tomará misturado ao seu whey protein diante dos stories.
Este entusiasmo pelo consumo de produtos amazônicos lembra o auge da economia colonial da Amazônia, entre 1743 e 1745. Na ocasião, segundo o historiador paraense André José Santos Pompeu (2021), somente as ordens religiosas, sobretudo os missionários jesuítas, exportaram aproximadamente os incríveis números de 13.545 arrobas de cacau, enquanto comerciantes particulares exportaram mais de 181.394 arrobas da mais valiosa droga do sertão para abastecer os comércios e as boticas da Europa.
Introduzir a Amazônia no mercado mundial enquanto colônia exportadora de riquezas naturais a fim de ajudar a recuperar a economia de potências estrangeiras consideradas decadentes, como era Portugal em meados do século 18, desencadeou séculos de sobrecarga e exploração dos principais responsáveis pelo cultivo e extração destas (não tão antigas) drogas do sertão: os trabalhadores indígenas. Estes sujeitos, das mais diversas etnias, encontraram-se nas encruzilhadas do cotidiano difícil da História com outros povos de diferentes regiões de África, que foram trazidos à força como escravizados. E assim, entre conflitos, trocas e revoltas, formaram e moldaram as aldeias, vilas e mocambos que deram origem às cidades amazônicas onde vivemos hoje.
Estes povos e estas cidades atravessadoras de séculos de doenças coloniais, físicas, emocionais e espirituais nos fazem lembrar que, somente quem desenvolveu as poderosas tecnologias alimentares como a maniçoba; espirituais, como os terreiros; e políticas, como as ocupações por direitos inegociáveis, serão capazes de encabeçar com maestria a salvaguarda do futuro do mundo.
É este rio caudaloso de gentes especialistas em se recuperar de destroços, sobreviver a enfermidades e recriar realidades, como narram nossos avós, que saberão como reunir outros povos sobreviventes espalhados por desertos, oceanos, fronteiras e campos de guerra ao oriente ou ao sul deste mundo enfermo. Para então dizer aos senhores mercadores, isto é, àqueles que nos vendem dores e doenças, que a Amazônia é, sim, uma farmácia ao norte do Brasil, mas não estamos à venda.
Referências
Marcela Gomes Fonseca, nascida em Belém do Pará, é historiadora e escritora. Mestre em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará e doutoranda em História pela Unicamp. Recebeu menção honrosa pelo 2º lugar no Prêmio Nacional Capistrano de Abreu de História dos Sertões, promovido pelo Proprietas, com o trabalho “Quando a aldeia se torna vila”. É fundadora da Rodapé Oficina Editorial, editora independente focada em Estudos Amazônicos. É autora do livro de contos Nos sertões d’água da estrela maior (2024). Ocupa a cadeira nº 29 da Academia Izabelense de Letras, do município de Santa Izabel do Pará.
Montagem da página e acabamento: Alice Palmeira
Revisão e Edição: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón